
Pesquisa reflete o protagonismo das mulheres no cenário atual da medicina e realça necessidade de ampliar vagas de Residência Médica e regulamentar instituições de graduação

No dia 30 de abril, a Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) sediou o evento de lançamento da Demografia Médica no Brasil 2025 (DMB 2025), o mais completo levantamento sobre a oferta, a formação, a distribuição e o exercício da profissão médica no País. A pesquisa, realizada pelo Departamento de Medicina Preventiva (DMP) desde 2010, está em sua 7ª edição e recebeu financiamento inédito do Ministério da Saúde.
Reunindo 10 estudos independentes e 22 pesquisadores, a DMB também conta com a colaboração da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), da Associação Médica Brasileira (AMB), do Ministério da Educação (MEC) e da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp). Neste ano, o trabalho inclui projeções para a próxima década e avalia, adicionalmente, dados sobre a produção de cirurgias, os vínculos empregatícios e a renda dos médicos.
Hoje, a média nacional é de 2,98 médicos por mil habitantes, ainda abaixo da média dos países da OCDE, de 3,7 profissionais. Há, entretanto, muitas disparidades regionais. Por exemplo, no Norte, a taxa é de 1,7 médicos para cada mil pessoas; enquanto no Sudeste é de 3,77. Também é grande a desigualdade no acesso a especialistas.
Quanto ao ensino, o destaque é que houve um crescimento de faculdades de 252 para 448 nos últimos 10 anos, com 2,5 mil novas vagas por ano. Mais de 90% da abertura se deu em faculdades privadas, e há mais de 180 processos no MEC para abertura de cursos novos, o que levanta preocupações quanto à necessidade de avaliações da qualidade.
A pesquisa mostra ainda que, pela primeira vez na história da Medicina no Brasil, as mulheres se tornam maioria entre os médicos no País, representando 50,9% do contingente total e um aumento de 10% em relação à DMB 2010. Projeções indicam que este percentual chegará a 56% até 2035. “É uma mudança histórica […] que nos convoca a construir um sistema de saúde mais equânime e diverso”, ressalta Eloisa Bonfá, atual Diretora da FMUSP e primeira mulher a ocupar o cargo.
Na graduação, a presença feminina também lidera: as mulheres correspondem a 61,8% do total de graduandos. Em contrapartida, elas dominam o ranking de apenas 20% das especialidades médicas. Segundo o Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, este resultado revela que “a medicina ainda é um espaço muito masculino, em relação ao reconhecimento profissional […] e à progressão de carreira”, e aponta que há novos desafios para o mercado de trabalho equalizar, verdadeiramente, o protagonismo feminino.
Além de construir um panorama atualizado da Residência Médica e da graduação, um dos destaques do trabalho é o Atlas da Demografia Médica, que compila informações atualizadas sobre a atuação dos médicos nas 27 unidades da Federação e nas 55 especialidades reconhecidas.
“O material é fundamental não apenas para descrever o cenário atual, mas para orientar políticas públicas que indiquem um futuro mais justo para a medicina no Brasil” – Eloisa Bonfá
Segundo Felipe Proenço, secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), o documento deve ser uma ferramenta de fomento a políticas de distribuição e inserção dos trabalhadores, como programas de incentivo e suporte a profissionais em áreas remotas e iniciativas regulatórias da formação médica. “A educação precisa passar por mudanças para estar vinculada às necessidades do SUS”, afirma.
Principais dados

O Brasil possui 635.706 médicos, uma média de 2,98 médicos para cada 1000 habitantes. Apesar do crescimento numérico, há desigualdades alarmantes na distribuição destes profissionais no território: 58% dos médicos atuam em municípios com mais de 500 mil habitantes, onde vive 31% da população brasileira. Outros 31% da população vive em cidades com menos de 50 mil habitantes, que contam com apenas 8% dos médicos.
A expectativa é de que o país supere 1,15 milhão de médicos até 2035 — chegando a uma média de 5,2 médicos para 1000 habitantes. Mário Scheffer, coordenador da DMB, explica que a previsão é positiva, mas preocupa a possibilidade de super concentração de profissionais em grandes cidades do Sul e Sudeste e potencial saturação do mercado de trabalho nesses locais.
Especialização crescente, mas concentrada
O trabalho conclui que especialistas correspondem a 59% do total de médicos registrados no Brasil, apenas 3% abaixo da média da OCDE. Porém, há uma concentração expressiva nas capitais e na rede privada. “Ainda existem municípios sem um único médico de família”, pontua Bonfá. Um desafio enfrentado é a redução drástica de empregos formais — somente 33% do total de médicos são contratados via CLT e servidores públicos.

Em relação à Residência Médica, o levantamento indicou que há 48 mil residentes no país, e a ociosidade de vagas diminuiu: atualmente, há 19,2% de não ocupação; em 2021, este número chegava a 31,8%. Apesar de existirem programas em mais de 1000 instituições, menos de 10% delas concentram mais da metade dos residentes.
Os dados indicam que o local de conclusão da Residência é o maior indicativo de fixação do médico — e com a oferta centralizada em grandes centros urbanos, é comum que profissionais graduados no interior migrem para a especialização e não retornem à região de origem, ampliando a desigualdade. “Precisamos pensar em planos de carreira e maior fixação de médicos no SUS”, comenta Scheffer. Ele acrescenta que é necessário ampliar vagas em especialidades estratégicas para o SUS, onde ainda há lacunas.

O déficit de vagas é um dado grave: em 2024, 32.000 médicos se formaram, mas havia apenas 16.000 vagas de residência em 2025. Tal descompasso provoca efeitos adversos, como o excesso de generalistas e o aumento da comercialização de pós-graduações lato sensu (PGLS) — cursos heterogêneos e desregularizados que comumente mimetizam o título de especialidades médicas. “A PGLS pode ser um instrumento de educação, desde que regulamentada, mas jamais será substitutiva do modelo de especialização”, afirma Scheffer.

O Ministro da Saúde relata que o ponto de inflexão para este cenário foi uma alteração no Programa Mais Médicos. O artigo 5 da Lei previa uma vaga de Residência Médica para cada egresso da graduação, mas sua revogação em 2016 interrompeu esforços de ampliação. O levantamento evidencia a urgência de retomar o crescimento de vagas, mas César Eduardo Fernandes, presidente da AMB, reitera que “é preciso ter o arcabouço necessário para que essas vagas garantam uma boa formação”.
Cirurgias no país
A DMB aponta que mais de 19% dos cirurgiões atuam exclusivamente no sistema privado e 8% apenas no SUS, enquanto 73% atuam em ambos. Scheffer também afirma que há grande discrepância no que se refere à tecnologia: no SUS, são realizadas mais cirurgias de via aberta do que em vídeo, o que altera o risco do procedimento e a qualidade da recuperação do paciente.
Pacientes com plano de saúde também realizam, proporcionalmente, mais cirurgias que os atendidos no sistema público. Cirurgiões gerais, anestesiologistas e produção de cirurgias – Schaffer, 2025
Frente a essa desigualdade, Padilha comenta que o maior desafio enfrentado atualmente pelo SUS é garantir atendimento especializado em tempo adequado. O represamento da pandemia gerou atrasos retrospectivos em cirurgias, exames, e acompanhamento de doenças crônicas, que ainda causam enorme pressão no sistema público. “Não daremos conta de aumentar a capacidade de resolver problemas sem fortalecer a atenção primária em saúde”, realça.
Em coletiva de imprensa, o Ministro discutiu parcerias com instituições privadas que estão sendo desenvolvidas para reduzir o tempo de espera, especialmente para o diagnóstico e tratamento de câncer. “Precisamos enfrentar um gargalo importante no tratamento [do câncer]: o diagnóstico”, aponta. A ideia é aproveitar a capacidade instalada — muitas vezes ociosa — dos hospitais e ambulatórios privados.
Desafios na graduação
Há 448 escolas de medicina em funcionamento no Brasil, dentre as quais 196 foram inauguradas na última década. Foram mais de 28 mil novas vagas abertas, sendo 92% de instituições privadas e 11 mil da expansão de faculdades já existentes. Além disso, mais de 184 processos no MEC pedem abertura de novas escolas e 110 pedem aumento de vagas.
Os pesquisadores demonstram apreensão com este novo ciclo de expansão e com a judicialização do movimento, em detrimento da consolidação de políticas regulatórias. Em média, as instituições privadas têm o dobro de alunos por docente, enquanto os docentes de universidades públicas têm mais dedicação exclusiva e mais doutorados.
“A abertura indiscriminada de escolas médicas sem avaliação robusta de qualidade compromete a qualidade do sistema de saúde”
Eloisa Bonfá
“Precisamos pensar na formação e na capacidade dessas privadas, […] e na pertinência de continuar abrindo cursos e vagas [de maneira irrestrita]”, diz Scheffer. O perfil dos docentes e das escolas médicas – Imagem: Scheffer, 2025
Neste cenário, o Enamed (Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica) surge como uma tentativa de avaliação em escala nacional, que permita a regulação dos cursos de medicina. A proposta é realizar testes de progresso, que comparem o desempenho anual de estudantes em diferentes instituições de ensino.
“Poderemos identificar instituições que não estão formando [seus alunos] adequadamente pela nota do aluno no teste; se a instituição não está formando bem, ela não pode abrir um novo vestibular”, explica Padilha em coletiva. A nota do concluinte também servirá como acesso à programas de Residência.
O presidente da AMB reafirma a importância de avaliar as Universidades para a segurança dos pacientes. “Estamos muito preocupados com o egresso e precisamos mensurar a qualidade”, conclui. “Não é uma batalha apenas numérica: precisamos de mais médicos qualificados e resolutivos”.
Acesse aqui o estudo na íntegra.
*Estagiária com orientação de Luiza Caires