
“Em que momento o Peru se fodeu?”
Eu não sabia nada sobre o Peru. Na verdade, mal sabia sobre o Brasil. Mas algo naquela pergunta ecoou dentro de mim como uma espécie de convocação. Era como se alguém tivesse finalmente formulado o desconforto que eu carregava em silêncio — aquele sentimento opaco de que as coisas estavam erradas há tanto tempo que ninguém mais se lembrava de quando começaram a se desviar.
A literatura de Vargas Llosa não era confortável. Não era feita para consolar, mas para acender uma febre. Seus personagens eram feridos, seus narradores, vigilantes. Seus enredos pulavam no tempo, misturavam vozes, cortavam cenas como quem recorta uma memória. E eu, menino do sertão, aprendi a duvidar lendo aquelas páginas. Aprendi que a história de um país não está apenas nos livros de escola, mas nas conversas de bar, nas ordens ditadas por chefes anônimos, nos silêncios dos vencidos.
Vargas Llosa me ensinou que a política é uma forma de ficção — e que, muitas vezes, é a pior delas. Porque nela se finge normalidade, se impõe a violência com vocabulário técnico, e se apaga o rastro do mal sob a capa da estabilidade. No mundo que ele escrevia, a corrupção não era exceção, mas método; o autoritarismo não vinha com botas, mas com relatórios.
Se Gabriel García Márquez me ensinou que a realidade pode ser encantada, Vargas Llosa me ensinou que o encantamento é, por vezes, uma distração perigosa. Ele me deu o olhar crítico — não o cínico, mas o que recusa a superfície. A literatura, em suas mãos, era uma lâmina: cortava com beleza e precisão.
Hoje, tantos anos depois daquela leitura inaugural, entendo que Vargas Llosa não me ofereceu respostas. Ele me ensinou a amar as perguntas difíceis. A desconfiar das versões oficiais. A perceber que há algo de profundamente literário na própria realidade política da América Latina: somos feitos de golpes, de heróis cínicos, de revoluções fracassadas e de esperanças reincidentes.
E eu, que nunca conheci Vargas Llosa, me atrevo a dizer que ele me conheceu. Não pelo nome, mas pelo sintoma. Eu sou um dos tantos latino-americanos que leram suas palavras com sede de entender seu país, e terminaram o livro compreendendo mais a si mesmos.
Porque a literatura, como dizia outro mestre, talvez seja o mais íntimo dos espelhos — aquele no qual, ao nos vermos, descobrimos que somos feitos também de outros. E ao nos reconhecermos, deixamos de estar sozinhos.
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