
Desde que o Supremo Tribunal Federal passou a punir com penas drásticas os culpados pelo atentado à democracia ocorrido em 8 de janeiro de 2023, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, o bolsonarismo apelou para duas narrativas convergentes. A primeira é de que o País estaria submetido a uma ditadura judicial. A segunda é que os vândalos que atacaram o Palácio do Planalto, o Senado, a Câmara dos Deputados e o plenário do próprio Supremo não seriam extremistas nem defensores de uma ditadura, mas cidadãos que só exigiam o respeito à Constituição e defendiam um país sem “repressões infundadas”.
Agindo assim, o bolsonarismo embaralhou o triste acontecimento de 8 de janeiro de 2023, forjando um conjunto de histórias de que necessitava para defender a liberdade de expressão e pensamento, os direitos fundamentais e a aprovação, pelo Congresso, de um projeto de lei que anistia afrontadores do Estado de Direito já condenados. Em suas entrelinhas, esse projeto beneficia o ex-presidente Jair Bolsonaro, que foi tornado inelegível pelo Superior Tribunal Eleitoral por ter sido condenado à inelegibilidade por propaganda irregular e ilegal no pleito de 2022. Desse modo, ele poderia candidatar-se outra vez para a presidência da República, no pleito de 2026, mantendo um clima de radicalização política que já dura cerca de oito anos.
Entre as diferentes implicações dessa estratégia, duas merecem destaque. Uma delas diz respeito ao impacto disruptivo sobre as instituições democráticas decorrentes da perspectiva política a um só tempo oportunista, rasteira e sombria do bolsonarismo. Incapaz de compreender que a democracia implica responsabilidades, deveres e convivência fundada nos princípios da liberdade e da responsabilidade individuais, o bolsonarismo confunde Estado com governo; processo deliberativo com decisionismo; e enforcement of law com opressão, ódio e vitimização dos condenados pelos tribunais por atentados antidemocráticos.
Autoritário e desonesto por princípio, o bolsonarismo também mistura divergências políticas com intolerância, radicalização e desprezo aos mais elementares direitos fundamentais. Igualmente, despreza a ideia de democracia como locus de diálogo, discordância e prevalecimento da regra de maioria e enfatiza dogmatismo e conflitos ideológicos com base no princípio de quem não é amigo é inimigo e, como tal, tem de ser destruído antes que destrua seus adversários. E até hoje, depois de ter nomeado para funções um número expressivo de militares da ativa e/ou reformados das Forças Armadas, encara sua ascensão acidental ao Palácio do Planalto como se ela lhe tivesse permitido delinear a ordem constitucional conforme seus desejos, seus interesses pessoais e familiares e seus projetos de permanência no poder a qualquer preço.
A outra implicação diz respeito ao projeto de lei da anistia. Em termos técnico-jurídicos, seu objetivo formal é desresponsabilizar quem investiu contra o regime democrático e a ordem constitucional no triste e tenso dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Em termos políticos, no entanto, seu verdadeiro objetivo é, como já foi dito, recolocar Bolsonaro na eleição presidencial de 2026.
O problema desse projeto é que, longe de ser um mecanismo de pacificação na vida política do País, a anistia, se for concedida, consagrará uma ética perversa – a de que os fins justificam quaisquer meios. Ao assegurar a impunidade para quem desprezou a Constituição e tentou dar um golpe de Estado, a anistia apenas banaliza transgressões políticas baseadas na violência. Esse é um problema grave e antigo, que já foi evidenciado na década de 1980, após a queda da ditadura militar, quando oficiais das Forças Armadas não foram processados e enquadrados pelos diversos crimes e barbaridades que cometeram naquele período.
A leniência com que foram então tratados no retorno do País à democracia estimulou oficiais do Exército, Marinha e Aeronáutica a continuar acreditando que detinham um poder moderador nos mesmos moldes do que fora previsto pela Constituição outorgada em 1824. Foi justamente essa crença inteiramente improcedente que lhes permitiu, ao longo dos dois últimos séculos, desestabilizar as instituições democráticas quando seus interesses, vontades e pretensões não eram atendidos.
É por isso que, apesar de a ordem jurídica em vigor prever mecanismos de controle que limitam o exercício do poder no País, dirigentes eleitos nos períodos democráticos carecem de força quando precisam enquadrar oficiais das Forças Armadas que desprezam a Constituição que juraram cumprir. Em vez de exercer a autoridade, muitos governantes contentam-se com negociações destinadas a evitar punições exemplares.
Não compreendem, assim, que quanto maior é sua leniência e quanto mais se deixam levar pelas concessões de anistia e indulto, mais acabam abrindo caminho para novas instabilidades, enfraquecendo desse modo seu poder e suas competências e prerrogativas constitucionais. Esse foi o motivo pelo qual os militares pressionaram a Assembleia Constituinte a incluir na Constituição promulgada em 1988 o polêmico artigo 142. Imposto pelo então ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalvez, esse artigo é deliberadamente vago, o que permite às Forças Armadas achar que podem intervir nas instituições e na sociedade para “garantir a lei e a ordem”.
Quem viveu duas décadas sob uma ditadura militar tem consciência dos riscos implícitos nesse perigoso artigo. A verdade é que, quando não há punição exemplar para bárbaros que tentam abolir o Estado democrático de Direito por meio da violência, cometem delito de associação criminosa armada, danificam patrimônio tomado e quando se passa a mão na cabeça de gente que planejou o assassinato de um presidente da República, um vice-presidente e um ministro do Supremo, a democracia corre o risco de se diluir. De se tornar vulnerável e, por consequência, ineficaz. Esse tem sido o preço que o Brasil continua pagando por não ter punido no passado quem deflagrou, apoiou e fez o trabalho sujo nos períodos autoritários vividos pelo país em diferentes períodos históricos.
Como esse tipo de gente não foi responsabilizado pelos males que comete e pela brutalidade que pratica, sob a forma de supressão de direitos fundamentais, cassação de mandatos, censura de imprensa, torturas e assassinatos, a anistia se tornou no País um passaporte para novas aventuras de banalização da violência e do golpismo antidemocrático.
Ser leniente com esse pessoal moralmente abjeto só tende a perverter as liberdades públicas no País.
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