Trotes no ensino médio e o ato educativo – Jornal da USP

O ano escolar de 2025 começou com a notícia de que 34 estudantes do ensino médio do Colégio Santa Cruz, uma instituição de renome e tradição frequentada pela classe alta paulistana, foram suspensos por estarem praticando trotes nos calouros secundaristas: conversas e práticas violentas, agressivas, racistas, misóginas, machistas e preconceituosas se espalharam tanto em grupos de WhatsApp como nos corredores do colégio. Como pensar essa sucessão de violências e seus efeitos na comunidade escolar e na sociedade em geral? A seguir, alguns destaques sucintos sobre esse acontecimento:

1) No contexto da situação configurada nessa escola, a palavra “trote” indica que alunos dos segundos e terceiros anos tinham o hábito de receber os novos secundaristas com rituais violentos impostos para marcar a diferença entre quem já faz parte e quem quer pertencer ao ensino médio. Há uma recorrência nesse ritual de ingresso, o que faz com que o caso precise ser pensado não como algo pontual, mas como aquilo que se repete.

2) Alunos praticavam trotes nos calouros e, aqui, o gênero importa, uma vez que o grupo era formado por alunos do gênero masculino, indicando que essa prática tem se dado sobretudo entre eles.

Há a necessidade de providências e punições que afirmem que isso não pode acontecer. Não pode e, ao acontecer, deflagra fraturas do ato educativo, da educação como prática que cria pensamento, transforma, liberta e emancipa todos e todas. Definir a educação dessa forma parece utópico, mas as utopias organizam direções precisas, funcionam como horizonte ético para a análise e a definição de ações cotidianas. Nesse sentido, os trotes e as violências no ensino médio são ocasiões para interrogar o que tem se produzido no cotidiano escolar, o que essa produção revela sobre nós e por onde seguir.

Violências, não!

As escolas vivem contradições: produção de pensamento crítico, emancipação, interesse pelo mundo, violência, sofrimento e assujeitamento. O posicionamento para que as ações institucionais garantam que as violências e o sofrimento não se propaguem é imperativo: não à violência, à agressão, ao racismo, à misoginia, ao machismo e ao preconceito.

A violência que incide sobre a escola é produção complexa, decorre de fontes que transcendem essa instituição e exige que sua responsabilidade em relação a esses processos seja redobrada. A responsabilidade institucional da escola não se resume a um exercício da autoridade representada por dispositivos punitivos, isso não é suficiente. Suspender e interromper processos são ações que se fazem necessárias e dão
visibilidade à gravidade do ocorrido, marcam momentos em que o pacto educativo se vê rompido e, também, exigem a busca pela complexidade de elementos presentes na construção dos acontecimentos.

Não há uma, duas ou três causas que expliquem essa produção. Reduzir essa complexidade é, inclusive, manobra da violência, pois, assim, sua produção cotidiana fica silenciada. A produção de práticas violentas inspira algumas indagações:

(1) Como essas práticas se (re)produzem?
(2) O que fazer perante as violências que se produzem no cotidiano escolar e que vêm acontecendo ano após ano?

A primeira questão refere-se à produção dessas ações, a segunda, ao espanto diante de manifestações de violência naturalizadas.

Mecanismos de silenciamento e hierarquização competitiva no cotidiano escolar

Essas duas perguntas requerem considerarmos a presença de diversos elementos nessa complexa trama: a forma desigual como a sociedade se organiza, a competitividade individualista como valor e lógica relacional, a anulação do outro como recurso de valorização de si, o medo como força da produção de silenciamento, o machismo e a coisificação das mulheres. Essas produções, articuladas a funcionamentos econômicos, sociais e políticos, se fazem presentes na construção do cotidiano: nas ações, nas relações de trabalho, nas propostas pedagógicas e nos gestos.

As violências dos trotes em instituições educacionais exigem que nos debrucemos sobre as práticas cotidianas e busquemos, nos processos que as constituem, os elementos que contribuem para o fortalecimento das expressões da destrutividade protagonizada nas relações entre pares. Nesses elementos, a hierarquização competitiva e os mecanismos de silenciamento coadunam com a produção de assujeitamento. O assujeitamento se faz no corpo, é força física, e sua manutenção requer a produção de medo.

Cenário

O acesso à educação não é o mesmo para todas as pessoas. Como estrutura do sistema educacional brasileiro, essa desigualdade está nítida há muito tempo. Isso é ensinado às crianças e aos jovens: quem tem mais recursos financeiros terá mais acesso à educação, agora reificada como capital. Privilégios, marcadores sociais das diferenças – ser rico, branco, homem, cisnormativo e sem deficiências – e regalias sustentam uma noção perversa: haveria algo individual, monopolizado por um grupo específico, que não pode ser perdido, pois é forma de reconhecimento que diferencia e valoriza umas pessoas em detrimento de outras.

Esses trotes, tomados como uma espécie de rito de iniciação e pertencimento, revelam-se como violência. O ajustamento que é exigido dos(as) novatos(as) se processa por meio da humilhação e do submetimento, dando ênfase à desigualdade cristalizada presente nos ritos característicos das sociedades competitivas e excludentes.

A ideia de diferença como expressão do que é irredutível no humano e, por isso mesmo, fator de sua igualdade como seres diferenciados, é aniquilada e o assujeitamento torna-se norma relacional. A diferença, ubstancializada na pessoa considerada como sendo a diferente, nega o convívio com a alteridade. A negação do outro como representante de processos de diferenciação por meio de seu apagamento ou subordinação integral aparece como condição para a sustentação da identidade de quem que já está estabelecido e goza de privilégios. Não se percebe o motivo para abrir mão das vantagens individuais, pelo contrário, prevalece a necessidade de mantê-las. Repartir o bem comum é vivido como perda do que me é devido e não, conforme idealmente ensejado, ampliação da experiência educativa de todos e todas.

Para que essa engrenagem funcione, há a necessidade de mecanismos que camuflem a discrepância vivencial experimentada em nossa sociedade, e a meritocracia serve a isso: segundo esse sistema social, sempre haveria pessoas que mereceriam mais do que as outras e, por isso, poderiam mais.

Debruçar-se sobre o cotidiano

Neste texto, focamos um funcionamento específico dessa estrutura: crianças e jovens que frequentam uma mesma escola em que os mecanismos de exclusão e as marcas da segregação são reproduzidos em ações cotidianas que impactam o acesso às propostas pedagógicas e reforçam a produção de desigualdade no cotidiano escolar heterogêneo.

Não é simples entender como a desigualdade se reproduz no interior de uma certa escola e, não compactuar com essa reprodução exige disposição para analisar as práticas educativas: não podemos ofertar, em uma escola, atividades pedagógicas que não são acessíveis a todos e todas que a frequentam; não podemos, em relação ao trabalho com estudantes com deficiências, exigir a presença constante de familiar na escola ou que a família pague um especialista que acompanhe a criança nas aulas; não podemos comemorar o dia das mães ou dos pais e desconsiderar aqueles(as) que não vivem em uma família com essa composição; não podemos propor divisões entre salas de aulas que hierarquizam os(as) estudantes em melhores, médios e piores; não podemos oferecer bolsas de estudos para alunos e alunas e cobrar separadamente por viagens, uniformes, lanches; não podemos naturalizar as desigualdades nas condições e nas relações de trabalho entre profissionais que atuam em uma mesma escola.

Há certa percepção a respeito das contradições e consciência sobre a manutenção de formas de exclusão. Mas as escolas são organizadas e vivenciadas por nós, trabalhadoras(es) da área da educação e familiares e, talvez aí, resida a dificuldade de percebermos os efeitos que vão se produzindo nas malhas do cotidiano. Afinal, nós, adultos, somos, como se diz, filhos e filhas do nosso tempo.

O horizonte ético se torna mais e mais distante quando, no interior de cada instituição educativa, uma forma relacional, uma maneira de viver, ganha força nas experiências de crianças e jovens: haveria estudantes que podem e valem mais e outros(as) que podem e valem menos. Nesse funcionamento, a existência de grupos de pessoas consideradas mais valorizadas e a busca por participar desses grupos atuam na produção das violências.

Para pensar sobre quais são as práticas cotidianas em que se operam mecanismos de silenciamento e hierarquizações competitivas e os efeitos disso nas formas de viver, há a necessidade de processos de discussões grupais e públicas. Não se sai disso sozinho.

Submissão como forma de sentir-se pertencendo

Trotes violentos não são diversão, brincadeira ou forma de integração, mesmo que alguns jovens digam perceber dessa maneira. As violências entre pares na escola podem assumir formas diferentes, mas é fato que em todas elas a dominação que é exercida sobre o outro produz sofrimento e reações de defesa ou de enfrentamento não menos problemáticas.

A identificação forçada no trote realiza-se como submetimento e se nutre da necessidade de pertencimento a certos grupos específicos compreendidos como aqueles que permitiriam que as vítimas venham a gozar de status e privilégios. Por isso, muitas vezes, escuta-se: “passando por isso a gente entra no grupo”, “até que achei divertido”, “estou sendo considerado quando me obrigam a fazer coisas”, “serei um deles depois”, “algumas pessoas sofrem, mas é assim mesmo”, “isso sempre foi assim”.

Vemos aqui elementos de uma disposição de submissão ao éthos da imoralidade. Uma submissão que ocorre em quem se submete e em quem age submetendo as outras pessoas. Portanto, submeter é forma relacional, forma de pertencer dentro das regras silenciosas dispostas.

Um cuidado

Quando falamos de produção e reprodução de certas formas de viver, não se trata de avaliar apenas a manutenção ou não de algumas práticas, mas, para além disso, analisar as forças que as sustentam. Um exemplo conhecido é a proibição dos trotes nas universidades, decisão precisa e fundamental, mas que necessita de cuidados permanentes sobre as forças que a mantêm. Do contrário, como acompanhamos em certos casos, os trotes apenas mudam de endereço, passam a ser realizados em espaços fora da instituição e sua lógica se faz presente no cotidiano. Isso está bem apresentado na série documental Rompendo o silêncio, que explora a cultura de violência no ambiente universitário brasileiro e mostra que essas práticas são sustentadas por privilégios e benefícios que asseguram o funcionamento institucional, as relações de trabalho e as hierarquias.

Trabalho educativo

Situações de violência nas escolas requerem o desenvolvimento de ações de curto, médio e longo prazos. Há ações imediatas que marcam “isso não” e recolocam o limite do civilizatório para balizar as relações escolares. Grupos que agem de forma violenta precisam ser desarticulados, pois os pactos educativos foram rompidos. Nessa ruptura, muita coisa precisará ser trabalhada por todas as pessoas afetadas por essas histórias.

Um passo diante de tais acontecimentos é refletir sobre o espanto. Espantar-se é atestar que fomos surpreendidos por um acontecimento. Essas histórias de submissão, a existência de situações que intensificam a desigualdade no interior das escolas e as práticas de trotes violentos são conhecidas e se repetem. Se os espaços e tempos da escola são tomados prioritariamente para o cumprimento de metas subordinadas a formas competitivas, essas histórias e situações são negligenciadas. Mas quando algo escapa nesse funcionamento e há estranhamento, a naturalização é tensionada, dando lugar ao espanto que testemunha o efeito de algo em nós. A suspensão das atividades ordinárias para analisar o trabalho cotidiano, o funcionamento institucional, aquilo que sabemos, mas temos mantido encoberto, e as práticas educacionais internas sustentadas por mecanismos de silenciamento e hierarquização competitiva, é, imediatamente, antídoto contra a naturalização de processos de manutenção dos privilégios, de produção do medo e de submissão presentes na repetição dessas situações.

A irrupção de atos violentos e segregadores exige ancorar o ato educativo no legado cultural e civilizatório. É uma exigência que, quando acolhida, aponta que diante desse extraordinário que irrompeu é possível um trabalho coletivo, um processo de reflexão entre os(as) profissionais que trabalham na escola, incluindo a participação das crianças e dos(as) jovens para tecer um sentido partilhado sobre o vivido e acessar sua produção pública.

Isso é tarefa do trabalho educativo, que, com circulação da palavra, partilha, coragem e tempo, busca dar bordas para as vivências humanas, interpretando os acontecimentos e remetendo-os a referentes comuns que possam acessar a produção pública das arbitrariedades do individual.

________________
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)

Por jornal.usp

Deixe comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos necessários são marcados com *.