
Como professor da EACH, escrevo este artigo movido pelo luto e pela responsabilidade de pensar, junto à comunidade, o que pode significar justiça diante de uma violência tão devastadora — especialmente quando o Estado falha duplamente: primeiro, ao não proteger; depois, ao ser substituído por mecanismos paraestatais que agravam a insegurança.
A morte de Bruna evidenciou uma realidade conhecida de muitas alunas e alunos da escola: o descaso do Estado com as periferias urbanas. Ela foi assassinada na Vila Carmosina, região periférica da zona leste de São Paulo, próxima à estação Corinthians-Itaquera. Como em muitas áreas afastadas do centro expandido da cidade, ali a sensação de insegurança é constante — sobretudo para as mulheres, que enfrentam diariamente o risco da violência.
Embora o feminicídio tenha sido reconhecido como crime específico, sua investigação e prevenção seguem marcadas por negligência. Os casos se acumulam e, diante das respostas lentas, o sentimento de abandono se aprofunda. A indiferença institucional diante da violência de gênero não é um episódio isolado: é uma falha sistêmica.
Diante desse quadro, a revolta expressa por coletivos feministas, centros acadêmicos e pela comunidade universitária como um todo é compreensível e necessária. A dor causada pela morte de Bruna aciona uma indignação moral que ecoa o medo cotidiano de tantas outras mulheres e denuncia uma estrutura que falha sistematicamente em protegê-las. A comoção e os protestos são formas legítimas de reivindicação por justiça. Mas é também nesse ambiente de luto e fúria que emergem respostas que desafiam os limites da própria justiça. Em um contexto de avanço do punitivismo no debate público, é fundamental qualificar o que entendemos por justiça.
Onde o poder público se ausenta de forma sistemática, outros atores que passam a mediar conflitos, impor regras e executar punições com base em códigos próprios — frequentemente à margem, ou mesmo contra, os princípios do Estado de Direito. Trata-se de uma substituição informal da justiça institucional por mecanismos paraestatais que muitas vezes operam com legitimidade local e extrema violência. A promessa de justiça, nesse cenário, continua a mobilizar, mas passa a ser reivindicada por vias cada vez mais distantes do direito — o que impõe um risco real à própria possibilidade de reconstrução democrática da justiça.
Diante da brutalidade do crime, o impulso por vingança se apresenta como resposta imediata. No entanto, quando esse impulso se transforma em aceitação tácita do justiçamento, corremos o risco de legitimar formas de violência que minam os próprios fundamentos da justiça. A execução do suspeito, provavelmente realizada por um tribunal paralelo, não repara a dor, não transforma a realidade e tampouco protege outras mulheres. Apenas desloca o processo para fora da esfera pública, tornando a justiça mais opaca, arbitrária e inacessível ao controle coletivo. A construção de uma justiça duradoura não pode se basear na comoção ou na piedade, mas em instituições capazes de sustentar o julgamento justo — mesmo quando nossos afetos mais profundos nos empurram para a exceção.
Quando a justiça se realiza fora da legalidade, em nome de uma urgência moral ou de uma suposta eficácia imediata, opera-se uma inversão perigosa: a exceção passa a ser tratada como norma. O que deveria ser uma anomalia — a suspensão do direito para responder a uma situação extrema — vai se tornando uma técnica estável de gestão da violência. A execução extrajudicial do suspeito, ainda que vista por alguns como uma resposta justa, não apenas subverte o processo legal como reforça a ideia de que a punição pode prescindir de provas, de julgamento e de responsabilidade institucional.
Esse deslocamento da justiça para fora do direito recai com mais força justamente sobre os grupos historicamente mais afetados pela seletividade penal. Mulheres e pessoas negras, cujas experiências de violência são frequentemente ignoradas ou tratadas com descaso, não são protegidas por esse tipo de resposta — ao contrário, são as primeiras a perder quando o direito se torna exceção e a violência vira norma.
Se quisermos pensar em justiça de forma consequente, precisamos perguntar que tipo de sociedade queremos construir, e que valores queremos afirmar diante de uma tragédia como a que vitimou Bruna.
Justiça começa com responsabilização, sim — com provas, julgamento e garantias legais — mas não pode se encerrar aí. Justiça também exige prevenir e transformar: criar instituições que protejam vidas antes que elas sejam perdidas, que acolham denúncias com seriedade, que façam valer a dignidade de cada pessoa.
Honrar a memória de Bruna é afirmar, como sociedade, que não existem mortes aceitáveis — e que nossa resposta não pode ser o justiçamento. Sua própria mãe, mesmo em meio à dor, soube nomear com clareza esse compromisso: “Eu queria ver ele sendo julgado. Eu não queria ele morto”.
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