
Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP
Foi no Brasil. No 3 de outubro de 1980. Na pequena Atibaia. Interior de São Paulo. Que adormeceu, à tout jamais, o último facínora de Sobibor. Gustav Franz Wagner (1911-1980). Por alcunha, “besta”. Por verdade, “demônio”. “Besta” e “demônio” de Sobibor. Que, no Brasil, suicidou-se. E o fez pelo receio de ser assassinado. Pois um medo intenso que rondava o seu espírito. Feito materialização da lei do retorno. Trazendo de volta e contra ele todo o ódio que ele aplicara no extermínio de judeus nos tempos do Reich.
O mundo inteiro desejava-o vivo ou morto. Agora, 1978-1980, mais que nunca. Ele havia cometido crimes abomináveis em favor de Hitler e do Reich. Infringindo todos os tratados, declarações e convenções disponíveis – Declaração de São Petersburgo de 1868, Convenções de Haia de 1889 e 1907, Declaração dos Aliados de 1915 referente aos “crimes contra a humanidade e civilização” perpetrados contra os armênios, Convenção de Genebra de 1929, Declaração da Polônia e da Tchecoslováquia de 1940, Carta do Atlântico de 1941, Declaração de Moscou de 1943, assim como o espírito da Carta das Nações Unidas de 1945. Para, adiante, fugir dos aliados. Esconder-se em sua Áustria natal. Seguir para Roma. De Roma ao Vaticano. Indo à Igreja e aos católicos. Localizando o bispo Alois Hudal (1885-1963), o “anjo da guarda” dos nazistas em fuga. Que lhe faria chegar à América do Sul. No Brasil. Em 1950. Para recomeçar a vida. Sem Hitler nem o Reich. E também sem Sobibor. Apenas com a memória de tudo. Das vidas que se foram no inferno que ele promovera em Sobibor.
Uma vez no Brasil, foi para São Paulo. E, em São Paulo, instalou-se em Atibaia. Onde contraiu matrimônio. Fez família. Criou filhos. Tornou-se trabalhador rural. Caseiro. Aprendeu português. Interiorizou o savoir vivre à brasileira. Cultivou amizades. Aderiu aos cigarros fatto a mano. Palheiros. Enveredou pelos jogos. Carteado. Virou “amigo” dos amigos. Produziu redes de confiança.
Aparentando-se sempre homem humilde, rural, do campo, campeiro. Sem passado. Nova persona. Anônimo nas montanhas ermas de Atibaia. Mesmo figurando nas principais listas de criminosos nazistas procurados desde o fim da guerra.
Tudo ia bem. Simon Wiesenthal (1908-2005) e o Mossad pareciam terem se olvidado dele. Até que Franz Stangl (1908-1971), no crepúsculo da vida, em 1970, quebrou o silêncio e revelou o seu paradeiro. Em São Paulo, no Brasil. Que, em descoberto, concorreria para o desfecho do 3 de outubro de 1980. Com suicídio.
Mas o começo de tudo foi Hitler.
Hitler, Mein Kampf, ressentimentos, animosidades e desejos implacáveis de vingança. Que desembocaram em martírios. A superação da república de Weimar. A ascensão dos nazistas ao poder em 1933. O desmantelamento do espírito de 1918. A mobilização de toda a sociedade alemã – população, economia e Estado – para batalhas existenciais e guerras finais. A imposição do sentimento de fins de tempos e fins do mundo. Tudo em favor do Reich e para o bem do império. Destruindo o que restava das tópicas liberais do presidente Wilson. Abdicando das instituições e dos arranjos saídos de Versalhes. Saindo, assim, subitamente, da Sociedade de Nações. Projetando a França e os franceses com inimigos magnânimos. Afirmando a anexação da Áustria como desejo ancestral.
Impondo germanizações implacáveis em todas as partes. Especialmente à Leste. Inicialmente na Polônia. Avançando-se, também, como alternativa ao Mundo Livre. Contaminando rápido a Itália e a Espanha. Alcançado o Japão. E, logo, estabelecendo parcerias em todas as partes do mundo.
Por esses ideais, Gustav Franz Wagner – nascido em Viena, em 1911 – ingressou no partido em 1931. Ascendeu à SS em 1933. Viu de dentro e de perto toda a progressão do Reich. Fundiu-se a ele em 1940, quando foi tornado assistente Franz Stangl no extermínio calculado de judeus, mediante banhos de gás. Tornando-se um dos maiores especialistas no ofício. Merecendo, assim, a alcunha de “besta”.
Franz Stangl, seu mentor, era o homem de confiança do Reich para a construção da dimensão racial do império alemão. Aquele da superioridade germânica vis-à-vis do extermínio e limpeza étnica de “indesejados”. Judeus à frente. Deficientes físicos e mentais adiante. E, nessa condição, foi o diretor do sinistro Castelo de Hartheim, na Áustria, onde iniciou Wagner. Que, sem tardar, tornou-se expert em matar rápido, sem remorso, contrição, penitência nem perdão. Ampliando o prestígio do empreendimento nazista e o seu próprio. Sendo admirado e respeitado pelo seu instrutor, Stangl; mas, também e sobretudo, nos altos círculos do Reich em Berlim. Que eram atualizados diuturnamente dos feitos de Hartheim. Regozijando-se pela eficiência, pela performance e pelo volume do extermínio de “indesejados”. Que de maio de 1940 a agosto de 1941 ultrapassariam os 18 mil judeus e deficientes físicos e mentais assassinados. Tendo entre as vítimas a bisneta do imperador Pedro II do Brasil, a princesa brasileira Maria Carolina de Saxe-Coburgo Braga.
Com o rompimento do pacto germano-soviético em 1941, o avanço do Reich para Leste amplificou a escala de brutalizações. Especialmente pela modificação do modus operandi dos extermínios. Que teve os corriqueiros fuzilamentos profissionalizados com batalhões que interceptavam, reuniam e fuzilavam judeus em números impressionantes. Quinhentos, seiscentos, mil, três mil, cinco mil, 23 mil e seiscentos por vez. O que, após análise, revelou-se custoso e danoso. Custoso pela logística. Que envolvia extenso quantitativo de munição empregada. Danoso pela brutalidade da atrocidade. Que impingia desvios significativos na saúde mental dos verdugos.
Ciente disso, Himmler rogou ao Führer alternativa mais perspicaz e “humanitária”. Pois, em contrário, a “pobre soldadesca nazista” poderia perder o seu vigor. O que sensibilizou Hitler. Que solicitou a Reinhard Heydrich (1904-1942) – alto oficial do Reich – uma solução. Que desembocou no Programa Reinhard. Imediatamente renomeado “Solução Final”. Com a passagem do extermínio por fuzilamento para o uso massivo de gás em campos de concentração. [Veja-se Em uma palavra: bandidos. Em muitas: demônios, gentilmente publicado aqui, no Jornal da USP].
Nessa mudança de approach, Franz Stangl, por sua expertise, foi mobilizado para construir os campos de concentração de Belzec, Treblinka e Sobibor. Todos no interior da Polônia. Todos à Leste de Varsóvia. De onde a maior parte dos judeus e “indesejados” era despachada em trens da morte para jamais voltar.
Feito Sobibor, em inícios de 1942, Franz Stangl seguiu para construir Treblinka, deixando Gustav Franz Wagner como plenipotenciário.
Uma escolha previsível. Wagner era o sucessor natural de Stangl. Mas, uma vez no comando, superou-o. Tornando-se mais sádico, mais violento e mais temido. Adicionando terror e desespero ao cotidiano de Sobibor. Que ceifaria a vida de mais de 250 mil pessoas nos seus 18 meses de existência. E extinguir-se-ia por descuido. Quando das férias de Wagner em 1943.
Foi complexo.
A “besta” saiu em férias e os internos promoveram uma extensa insurreição. Emboscando guardas. Assassinando-os. E fugindo. Pondo fim a Sobibor. (Sendo ainda hoje muito útil a leitura das memórias de Stanislaw Szmajzner, Inferno em Sobibor, que foi o primeiro relato sobre a insurreição de Sobibor e sobre martírios impetrados por Wagner.)
Mas nada estava garantido mesmo assim. O ano era 1943. A ofensiva soviética era importante. O desembarque aliado na África e no Mediterrâneo tinha sido determinante. Mas a Wehrmacht resistia em todas as frentes. Impondo aos sobreviventes de Sobibor tornarem-se recrutas das forças soviéticas, norte-americanas ou britânicas para seguir-se o combate. Que seguiria implacável até 1945. Após imponentes batalhas. De Moscou a Berlim, da Normandia a Berlim, da Varsóvia eterna a Berlim. (Jamais vai demais ressaltar a bravura das forças polonesas de resistência lideradas pelo general Sikorski, que trocaram a Polônia pela França em 1939 e a França pela Inglaterra em 1940 para seguir combatendo o nazismo até o fim.)
Vencendo-se Berlim, Hitler e o Reich, impôs-se julgá-los. Mas para tanto era preciso, antes, interceptar os responsáveis. Que muitos fugiram. Outros morreram. Alguns seguiram anônimos. Sendo o caso dos facínoras de Sobibor.
Franz Stangl caiu preso dos norte-americanos em 1945. Entregando-se como soldado raso. Inofensivo. Cumpridor de ordens do Reich. Levando os aliados a ignorá-lo, a ponto de ele fugir dois anos depois. Reconquistar a sua Áustria natal, onde ele nascera em Altmünster, em 1908. Asilar-se em Graz e aconselhar-se na Igreja Católica local. Onde reencontrou Gustav Franz Wagner. Com quem seguiu em segurança para Roma. Onde teve com o bispo Alois Hudal. Que facilitaria a fuga dos dois para o Brasil. Wagner em 1950. E ele, apenas em 1951, após passar pela Síria, em Damasco, para recuperar a sua família – mulher e filhos.
No Brasil e em São Paulo, eles dois seguiram nazistas e nostálgicos de Hitler e do Reich. Encontravam-se com frequência. Falavam alemão. Mantinham contatos com os alemães. Promoviam festas alemãs. Cultivavam a culinária alemã. Celebravam – em todo 20 de abril – o aniversário do Führer. E acompanhavam a situação europeia e alemã. Wagner instalado em Atibaia. Stangl morando em São Paulo e trabalhando na Volkswagen, em São Bernardo do Campo. Tudo tranquilo e bem até a captura de Adolf Eichmann, em Buenos Aires, em 1960.
A espetacularização desse feito e, em seguida, a ostentação do julgamento em Jerusalém causaram apreensão em todos os nazistas em fuga em todas as partes e notavelmente na América do Sul. Klaus Barbie (1913-1991) – o açougueiro de Lyon – estava na Bolívia. Josef Mengele (1911-1979), transitando pela América do Sul. Wagner e Stangl, em São Paulo. Mas, para todos os fins, mantiveram-se todos calmos. Até que imponderáveis começaram a modificar o lado da sorte.
Era um dia corriqueiro de trabalhos triviais no Centro de Documentação Judaica em Viena. 22 de fevereiro de 1964. Quando um visitante, aturdido e apressado, irrompeu no ambiente em busca de Simon Wiesenthal informando portar informação de valor. Wiesenthal recebeu-o. A conversação foi curta, direta e franca. O cidadão – que não se identificou nominalmente – dizia saber do paradeiro de Stangl; e que estaria disposto a revelar por US$ 7 mil. Wiesenthal anuiu. Mas comprometeu-se a saldar o montante apenas após averiguar a veracidade e a consistência da informação.
O visitante, de sua parte, também anuiu. Fazendo-se, assim, um trato sem garantias de parte a parte. Apenas com a indicação dos endereços de Stangl. Todos no Brasil. Um em São Paulo e outro em São Bernardo do Campo.
Wiesenthal mandou averiguar. Mobilizou os seus informantes no país. Uns em São Paulo. Outros no Rio. Alguns em Brasília. Todos profissionais e discretos. Que, sem dificuldades, atestaram que sim: era ele mesmo. Stangl. Que vivia tranquilamente com sua mulher e filhos numa confortável residência num bairro nobre da capital paulista.
Ciente da situação e ciente que não seria simples, Wiesenthal iniciou manobras para levá-lo a julgamento na Europa.
O Brasil estava conflagrado. Os militares vinham de tomar o poder. Certa euforia tomava conta das principais capitais. Perseguições políticas, ideológicas e físicas multiplicavam-se por todas as partes. Deixando apreensivas as comunidades de estrangeiros. Sobretudo as alemãs e alemãs nostálgicas do Reich. Que seguiam atônicas com o andamento dos fatos. Sendo contrárias ao modelo cubano e ao modelo norte-americano. Levando Wiesenthal a redobrar a prudência. Esperando em silêncio a composição de alguma estabilidade no Brasil. Sobretudo no campo jurídico.
Essencialmente no plano burocrático. Com a designação de novas autoridades. Juízes, promotores, delegados, investigadores. Para se sondar a melhor forma de interditar Stangl.
Outro movimento imprevisto ocorreu em Berlim naquele mesmo ano de 1964. No mês de outubro. Quando – na senda do processo de Eichmann, em Jerusalém – teve início o julgamento de dez ex-SS acusados de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade. Frente a isso, Wiesenthal deslocou a sua atenção de Brasília e São Paulo para Berlim. Onde percebeu, de saída, que Stangl não constava de nenhum dos processos. Evidenciando que a sua participação na guerra era ignorada. O que para Wiesenthal beirava a ignomínia.
Diante disso, Wiesenthal voltou aos arquivos e começou a produzir um dossiê detalhado sobre a atuação de Stangl pelo Reich. Tão logo constituído, esse dossiê seria decisivo na sensibilização das autoridades brasileiras. Que tomariam conhecimento do assunto entre 1967 e encarregariam o delegado Romeu Tuma (1931-2010) de investigar, prender e proceder os encaminhamentos para a extradição de Stangl.
Conduzido para julgamento em Düsseldorf, Stangl manteve a altivez de um alto funcionário do Reich e seguiu o exemplo de Eichmann ao afirmar-se um “simples cumpridor de ordens”. Foi assim pelos mais de dois anos de julgamento. Que terminou no dia 22 de dezembro de 1970. Com o veredito indicando a sua prisão perpétua pelo assassinato de pelo menos 900 mil pessoas em campos de concentração nazistas.
Tudo parecia encerrado. Wiesenthal – que esteve na audiência final em Düsseldorf – respirava aliviado. Vestido da sensação de missão cumprida. Mais um criminoso nazista na cadeia.
Mas novos imponderáveis voltaram a emergir.
Quatro meses após o fechamento do caso Stangel, Stangl aceitou conceder entrevista a Ghita Sireni (1921-2012) – austríaca, intelectual, historiadora e jornalista em busca das razões das barbaridades do Reich. Nessa conversa, Stangl recontou a sua vida promovendo acerto de contas consigo mesmo. Lembrando do passado, de Hitler, do Reich, dos amigos, da causa. Mas também ressentindo de sua família fixada no Brasil. Já era do conhecimento de todos que o delator de seu paradeiro em São Paulo fora um antigo genro seu. Um rapaz de meia idade que, após divorciar-se litigiosamente de uma de suas filhas, cego de raiva e rancor, fora bater às portas de Wiesenthal. Sabia-se também que sua mulher e filhas eram perseguidas em todas as partes. Mesmo sob o amparo das comunidades alemãs em São Paulo. Stangl sentia-se impotente. Arruinado. Exangue. Perto do fim da partida. O que o levou – por lapso ou por razão – a mencionar que o seu discípulo, Gustav Franz Wagner, estava vivo e bem vivo. Vivendo confortavelmente no Brasil.
Essa informação tornou-se logo pública. Estarrecendo o mundo inteiro. Trazendo ao Brasil e a São Paulo a imagem de refúgio de nazistas. Colocando Wiesenthal na senda de Wagner. Voltando, assim, novamente, a focar no Brasil. Novamente em São Paulo. Mas, agora, sem endereço nem pistas precisas.
Após muito investigar, foi encontrada uma cópia do passaporte que Wagner utilizara ao ingressar no Brasil em 1950 e nela figurava um endereço. Que, por claro, não servia mais.
As investigações se sucediam.
O tempo ia passando e o desânimo, chegando.
Passou-se, assim, a suspeitar que Wagner estivesse em fuga. Em outra cidade ou país. Quem sabe, até morto.
O que levou Wiesenthal a reduzir as esperanças.
Até que a sorte bateu novamente às portas da justiça.
Era mais um dia corriqueiro de trabalhos triviais na redação do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, quando chegou um material – a ser publicado como classificado; portanto, matéria patrocinada – contendo um convite para a celebração do nonagésimo aniversário de Hitler num hotel em Itatiaia. Poderia ser broma, gozação ou similar. Mas poderia não ser. Por via das dúvidas, o responsável do setor no jornal despachou a jornalista Cyntia Brito para averiguar. E ela foi e encontrou o local. Itatiaia, interior do Rio de Janeiro, Hotel Till. Um local tipicamente alemão. Onde, sim, convivas alemães nostálgicos do nazismo festejavam.
Era inverossímil e inimaginável. Mas era real.
Para atestar, Cyntia Brito registrou várias fotos – de ambientes decorados com suásticas e de pessoas trajadas em alemães de antanho homenageando o Reich –, produziu um relato e encaminhou para o jornal.
Tão logo publicado, sob a headline de Nazismo como nos velhos tempos, a matéria escandalizou o mundo inteiro. Levando Wiesenthal, em pessoa, a ligar para a redação do Jornal do Brasil solicitando mais informações e a integralidade das fotos. Que foram, urgentemente, encaminhadas para Viena. Onde Wiesenthal observou, cotejou e se frustrou. Wagner não constava em nenhuma delas. Os convivas alemães de Itatiaia eram aparentemente gente do comum. Simplórios nostálgicos do Reich. Anônimos. Sem maiores implicações. Mas significativos da presença fervorosa de nazistas no Brasil.
O foco de Wiesenthal era Wagner. Wagner não esteve em Itatiaia. Mas Wiesenthal pressentiu que ele estava, sim, vivo e, sim, no Brasil. Sendo, assim, importante avivar-se as investigações sobre o seu paradeiro.
Nesse sentido, entre as fotos de Itatiaia, ele apanhou uma cujo fotografado mais se assemelhava a Wagner, inscreveu o número da matrícula da SS de Wagner no verso, compôs um relato de seus crimes em Sobibor, mandou traduzir para o português e enviou para publicar no Jornal do Brasil.
Ainda era o mês de abril e ainda do ano de 1978.
O estarrecimento geral continuou. O proprietário do hotel de Itatiaia foi hostilizado e o alemão indicado como Wagner, assassinado. O clima ficou pesado para alemães e para alemães nazistas no Brasil. Levando o legítimo Gustav Franz Wagner a aparecer e apresentar-se.
Foi em fins de maio. Ainda em 1978. Numa delegacia de Atibaia. Foi lá que a “besta de Sobibor” apareceu e se apresentou. E o fez para dizer que era, sim, Gustav Franz Wagner, mas, em contrário, que não tinha nada que ver com o relato de Wiesenthal no Jornal do Brasil. Tanto que, seguia ele, a foto estampada no jornal era de outra pessoa, não ele. Promovendo-se, assim, seguia ele, uma exposição indevida de seu nome. Colocando-o em perigo.
Ele queria, assim, proteção. Acreditava-se perseguido.
Mas o delegado decidiu encaminhá-lo ao 3º Batalhão de Polícia de Choque, da Polícia Militar do Estado de São Paulo, na cidade de São Paulo, para procedimentos mais definitivos. Que, de súbito, tornaram-se nacionais e mundiais.
Tão logo noticiada a sua aparição e presença, rumores emergiram de todas as partes indicando ser ele, ele mesmo. Nesse ínterim, apareceu um sobrevivente de Sobibor. Stanislaw Szmajzner (1927-1989). Para dizer que sim: ele, Wagner, era ele mesmo: Gustav Franz Wagner.
Stanislaw Szmajzner era um judeu que fora levado para Sobibor em 1942. Onde perdeu sua família, pais e irmãos, exterminados pelas mãos de Wagner. Tendo sido poupado devido a sua qualidade de ourives, ofício muito útil ao Reich. E, em seguida, pela sua participação na insurreição de 1943. Finda a guerra, ele migrou para o Brasil em 1947. Veio para o Rio de Janeiro. Contraiu matrimônio. Fez família. Teve filhos. Separou-se. Foi para Goiânia. Onde esperava terminar seus dias feliz. Até que soube da prisão de Stangl em São Paulo em 1967 e, agora, da aparição de Wagner em 1978.
Sim: Wagner era Wagner.
Atestou Stanislaw e atestaram tantos outros.
O mundo inteiro, agora, sabia quem era a “besta” e onde era o seu paradeiro. Wiesenthal, nisso, encaminhou dossiês alentados sobre os seus crimes para os grandes jornais do mundo inteiro.
Nesses termos, Áustria, Polônia, Israel e Alemanha solicitaram a sua imediata extradição. Mas ele foi levado preso de São Paulo para Brasília, onde seria julgado e absolvido pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, que considerou seus crimes todos prescritos.
Mas de que adiantava a liberdade com tanta gente querendo a sua morte?
O saudoso Carlos Heitor Cony (1926-2018), pela Manchete, foi à prisão de Brasília perguntar isso ao Wagner. Wagner hesitou em responder. Seguindo, assim, no dilema.
Um dilema que o consumiu pelos seus últimos meses de vida. Levando-o a alucinações, manias de perseguição e instabilidades mentais e emocionais permanentes. Que, ao cabo, impuseram-no a decisão de suicidar-se. Um suicídio tentado várias vezes. Tendo êxito em Atibaia, naquele 3 de outubro de 1980.
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