
Tradicionalmente um povo caçador-coletor e com mobilidade espacial, os Xavante também possuíam uma pequena produção agrícola, assim como pescavam esporadicamente. É a partir de meados da década de 1940, durante a Marcha para o Oeste, que o contato com os não indígenas aumenta e se torna constante. A agricultura, assim como a pesca, se intensificara por meio dos esforços de persuasão dos agentes indigenistas na época, como modo de conter o grupo dentro de um território mais limitado.
Essas transformações resultaram no desequilíbrio dos padrões de subsistência e dieta do grupo, agravados na década de 1970 pelo chamado Projeto Xavante, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que introduziu o cultivo mecanizado de arroz branco em grande escala nas terras Xavante. O projeto durou menos de uma década, mas suas consequências permanecem até os dias atuais, ao transformar o arroz branco, que tem suas vitaminas e minerais retirados no processo de polimento, em base da dieta alimentar.
Na década de 1990, o grupo começa a ter acesso a novos recursos econômicos, como aposentadorias rurais e, mais tarde, programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. Conforme estudos publicados e levantamento realizado, grande parte desse dinheiro passa a ser destinado à compra de alimentos industrializados, como bolachas recheadas e refrigerantes.
Todos esses fatores impactaram significativamente as práticas alimentares e a relação dos Xavante com seu ambiente, resultando em diversos desafios socioambientais. O processo de sedentarização os obrigou a modificar sua economia, suas relações sociais e suas relações com a natureza; o acesso a novas tecnologias e novos mercados veio com o consumo de alimentos industrializados, a má nutrição, a dispersão das gerações mais jovens para as cidades e a dependência de uma renda monetária, muitas vezes, insuficiente; e o avanço da fronteira agrícola, acompanhado da diminuição dos recursos naturais disponíveis, como as espécies para a coleta e a fauna cinegética.
Existe a instabilidade na garantia de direitos básicos, como o acesso ininterrupto à alimentação adequada e saudável, num cenário de não soberania e insegurança alimentar, da categoria leve até a grave. Ou seja, a fome, muitas vezes, é realidade.
Quais os caminhos possíveis?
Os Xavante precisam de autonomia para definir seus próprios sistemas de alimentação e produção, considerando seus modos de vida e subsistência. Logo, é fundamental conhecer e respeitar sua multiplicidade de tradições alimentares.
Nesse sentido, fortalecer práticas alimentares consideradas tradicionais, ainda presentes e vinculadas ao uso do território, é um caminho possível, visto que promove a soberania alimentar do grupo. Pode, inclusive, ser uma forma de obtenção de renda, com a venda de itens excedentes coletados, por exemplo, diminuindo assim a dependência de recursos financeiros externos.
Além disso, é urgente a promoção de ações voltadas à educação alimentar e nutricional acerca de alimentos industrializados, para um consumo mais consciente e orientado.
É importante ressaltar: a luta por uma alimentação adequada é inerente à luta pela terra. Ao se organizarem pelo direito ao território, os Xavante não estão apenas lutando pela sua demarcação, mas também pelo direito a seu modo de vida e existência. Como para outros povos tradicionais, a terra é condição primeira para sua existência, sendo o território essencial para sua soberania alimentar. Os Xavante de Etenhiritipá, apesar de terem integrado novos hábitos alimentares, reconhecem a importância de sua alimentação tradicional e sua relação com a terra, transformando sua demanda em luta.
* Membros do INCT Combate à Fome: estratégias e políticas públicas para a realização do direito humano à alimentação adequada – Abordagem transdisciplinar de sistemas alimentares com apoio de Inteligência Artificial. E-mail: inctcombatefome@usp.br
________________
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)