A ciência pela história, episódio 11 – Oersted e a descoberta “acidental” do eletromagnetismo – Jornal da USP

Por Gildo Magalhães, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

Existem descobertas completamente acidentais na ciência?

Há historiadores da ciência que defendem a constante “serendipidade”, ou descoberta acidental, de fenômenos naturais, ou invenções e até de teorias. Essa palavra entrou no vocabulário por meio do escritor inglês Horace Walpole (1717-1797), quando descobriu sem querer uma pintura do século 16, dada como perdida. Referindo-se ao acontecimento, fez um paralelo com a lenda persa dos três príncipes de Serendip (que era o país na época denominado pelo Ocidente de Ceilão), que sempre faziam descobertas por acaso de coisas que não estavam procurando.

Um exemplo que pode ser evocado na questão da serendipidade é o do químico dinamarquês Hans Christian Oersted (1777-1851), com sua famosa experiência descrita em 1820 sobre a observação de que há um desvio da agulha imantada apontando para o Norte de uma bússola quando passa corrente elétrica num fio próximo à bússola. Com esse resultado, o cientista teve sucesso ao estabelecer uma prova de que existe uma interação entre eletricidade e magnetismo, dois aspectos da natureza que eram considerados não ter nada em comum.

A notícia da experiência da agulha de Oersted, em seu texto Experimento sobre o efeito de uma corrente de eletricidade em agulhas magnéticas, correu celeremente pelos países europeus, tornando-o de imediato uma celebridade científica internacional. A partir da evidência desse fenômeno, novas experiências e aplicações posteriores levaram ao aproveitamento do eletromagnetismo para a capacidade de gerar eletricidade (geradores) e movimento (motores). A expansão industrial foi formidável, a produção capitalista atingiu novos patamares e, juntamente com o uso dessas propriedades para comunicações pelo telégrafo e telefone, foi inaugurada a era da eletricidade na qual vivemos.

Acontece que aquele experimento de 1820 não foi acidental, ao contrário do que se lê em diversos livros-textos. Ela foi o resultado de um bem articulado plano de Oersted para explorar a natureza, e que pode ser comprovado em sua vasta obra, desde seus numerosos trabalhos científicos anteriores à experiência até sua poesia e ensaios filosóficos.

Oersted seguia o movimento alemão que acabou sendo denominado Naturphilosophie, literalmente “filosofia natural” (embora toda a ciência da natureza fosse assim chamada), desenvolvido entre a segunda metade do século 18 e a primeira metade do século 19. Contando com ideias desenvolvidas por naturalistas como Goethe e Alexander von Humboldt, a Naturphilosophie se distinguia porque, entre outros princípios, advogava justamente uma unidade da natureza, interligando todos seus aspectos, como foi expresso pelo filósofo alemão Friedrich Schelling (1775-1854).

À luz da profissão de fé de Oersted na Naturphilosophie, de fato o resultado de sua experiência com a agulha magnética foi uma consequência por ele esperada, pois terminava seu relato desse experimento dizendo que já demonstrara algo semelhante em livro publicado sete anos antes, quando escreveu que o calor e a luz são um efeito elétrico, bem antes de a ciência ter mostrado que são formas de radiação eletromagnética. Na verdade, aquela hipótese já tinha se insinuado em Oersted até mesmo antes, como, por exemplo, em seu interessante artigo Novas investigações sobre a questão: o que é a química?, de 1805, quando escreveu:

Como poderia haver três efeitos mais diferentes do que o calor, a eletricidade e o magnetismo? Contudo, todos eles são devidos ao efeito das mesmas forças fundamentais, só que em diferentes formas.

Por que a eletricidade parecia particularmente atraente e adequada para a busca da unidade da natureza nesse período? Porque ela perpassava por grandes áreas de pesquisa científica de então: a física, naturalmente; a química, pelo estudo da eletrólise, mas também devido a alguns cientistas sugerirem a natureza elétrica das reações químicas ou das “afinidades”; a biologia e medicina, pois já tinha havido pontos de contato, como, por exemplo, na fisiologia da contração muscular e no tratamento de algumas doenças por meio de choques elétricos.

Além disso, a eletricidade fez a ciência passar por um grande descompasso desde a síntese newtoniana do século 17: pela primeira vez inúmeros fenômenos não conseguiam mais ser explicados dentro do quadro do mecanicismo, passando a ser englobados numa nova concepção que parecia surpreendentemente metafísica, como exemplificado pela noção de “campos eletromagnéticos”, conceito que exigia algo tão imaterial e diferente das ações mecânicas.

Na história da eletricidade, um dos primeiros passos foi tentar determinar se as várias formas e fontes de fenômenos elétricos tinham um caráter comum. Foi possível provar que isto era verdadeiro, por meio da identificação do que se ligava à origem das cargas elétricas estáticas (como nos condensadores elétricos) e das cargas dinâmicas (correntes elétricas). Foi esse o tempo das descobertas de cientistas como Benjamin Franklin, o abade Nollet, Alessandro Volta (e das aplicações da sua pilha elétrica), que levaram alguns pensadores a refletir com maior intensidade sobre a unidade da natureza.

A história do eletromagnetismo durante a primeira metade do século 19 está assim vinculada às ideias de unidade no Universo, especialmente com a unidade do que pareciam ser tipos diferentes de “força”, palavra que veio a ser substituída progressivamente por “energia”, criando uma distinção entre ambas que perdura até o momento presente. A energia na forma de trabalho está associada a um deslocamento (real ou virtual) de um ente submetido a uma força, sendo a medida do trabalho proporcional ao produto desta força pelo deslocamento. O estudo desse assunto levou ao enunciado da lei da conservação da energia, em 1851, pelo médico alemão Julius Robert von Mayer (1814-1878), que ainda usava para isso o termo “conservação da força”, e não conservação da energia. De toda forma, a energia também era um conceito ligado à unidade da natureza, visto que as transformações entre si das diferentes formas de energia (mecânica, térmica, química, elétrica) não destruíam a energia.

Voltando à obra de Oersted, vale a pena mencionar seu poema épico, A aeronave (1837), escrito em homenagem ao voo em balão dos irmãos Montgolfier (1783) – que teria sido precedido pelos planos e demonstração em Lisboa (1709) da “passarola” do brasileiro Bartolomeu de Gusmão, precedente que Oersted não menciona, porém.

No seu prefácio a esse poema, Oersted expandiu a busca da unidade não só no âmbito da ciência natural, mas também na união da ciência com a arte, a partir da observação de como a natureza produz beleza. Incidentalmente, no poema o autor expôs de modo original uma proposta pedagógica para se fazer história da ciência: ela serviria para ensinar aos jovens a utilidade da ciência.

A unidade de todo o conhecimento para Oersted tinha, portanto, que incluir as ciências naturais, a poesia e a arte como um todo. Essa meta influenciou sua carreira, consistentemente a de um erudito intelectual e cientista prolífico, e reapareceu em seu alentado ensaio filosófico, O espírito na natureza (1850). Seus modelos de união entre ciência e poesia eram os escritores interdisciplinares Goethe e Schiller, que, assim como Humboldt, teriam percebido que este seria o caminho para uma “filosofia natural universal”, em que, nas palavras de Oersted, “cada investigação bem conduzida de um objeto limitado nos revela uma parte das leis eternas do todo infinito”. Esta convicção o levou, depois de sua descoberta da interação mútua entre eletricidade e magnetismo, a pesquisar muitos outros assuntos, tais como as simetrias na natureza.

O cientista francês Louis Pasteur (1822-1895) comentava que “o acaso só favorece os espíritos preparados”, querendo dizer que apenas o acaso não basta, é preciso que haja a capacidade de observação e de tirar conclusões, mesmo que aparentemente improváveis. Há nisto certamente qualquer coisa que lembra o caso de Oersted.

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