
A psicologia, historicamente, convive com dois grandes divisores que aparecem como determinantes da ação pessoal. De um lado, os determinantes fisiológicos que descrevem a condição orgânica da ação, sua função vital. De outro lado, os determinantes culturais, que descrevem a condição social da ação, que também é vital. Tais determinantes parecem descrever o campo de necessidades, em relação às quais uma pessoa teria pouca liberdade de ação. Mas na cultura, encontramos outros termos utilizados para descrever o que nos move.
Quando alguém é perguntado sobre porque agiu desta ou daquela maneira, é possível encontrar respostas que apontam para, pelo menos, três direções.
Uma avaliação pessoal do sentido de dever parece estar mais conectada com as necessidades vitais acima mencionadas, acrescida de uma elaboração ética da experiência individual e comunitária: “devo cuidar da minha vida e como não vivo isolado, o cuidado pessoal implica responsabilidades coletivas mais amplas”.
Paralelamente, a ação depende de uma avaliação das possibilidades e limites de execução. Ainda que alguém sinta que deve agir de alguma forma, talvez não consiga perceber que possa. O dever pode ser interrompido por uma limitação objetiva: por exemplo, “devo cuidar da minha saúde, mas não tenho possibilidades materiais para efetivar tal cuidado”.
A terceira direção aponta para escolhas no campo da vontade ou do desejo. A primeira, mais ligada ao gosto e à fruição, nos remete à dicotomia entre o prazer e o desprazer trazido por uma ação ou movimento pessoal. Cabe a análise sobre porque, nas histórias de vida, diferentes experiências podem ser consideradas agradáveis ou aversivas para alguém. As pessoas tendem a ser muito diferentes nisso. Adicionalmente, o campo da volição é, muitas vezes, objeto de captura por interesses alheios que colonizam a pessoa, aprisionando-a em seus gostos para o benefício de um terceiro. Por exemplo, quando alguém é seduzido por posições de poder e passa a fazer concessões para alcançar tais posições.
No âmbito do desejo, algumas discussões mais filosóficas apontam para a ideia de infinito, pressupondo que todos os seres são semiabertos para o mundo dos outros. Diante dos outros e de seus mundos, há a inclinação para abrigar e acolher num movimento que implica transformação de si. Dado que pessoas e seus mundos são infinitos, o processo de envolvimento e desdobramento transformacional é inacabado e permanente.
Na relação da universidade com pessoas e comunidades indígenas, vivenciamos estas camadas que dimensionam a tomada de decisão das ações pessoais e os movimentos coletivos. Diante disso, nos parece ser interessante a realização de um experimento imaginário que articula os três termos essenciais à reflexividade ética acima referidos: dever, poder e querer. Combinando os termos na chave binária de sim e não, que sentimentos emergem em você?
Por exemplo, “a universidade deve, pode e quer contribuir com as vidas indígenas? Como membro da comunidade acadêmica, faço movimentos nesta direção ou porque não faço”? Devo, posso e não quero: “sinto culpa”? Devo e quero, não posso: “sinto que avaliei bem a situação”? Devo, não posso e não quero: “Sinto que estou sendo sincero”? Não devo, posso e quero: “sinto que tenho liberdade”? Não devo, posso e não quero: “sinto que sou responsável e respeitado pela decisão”? Não devo, não posso e quero: “sinto frustração”? Não devo, não posso e não quero: “não vou fazer ou porque, mesmo assim, faço? ”
A matriz acima é uma pequena amostra de sentimentos que podem ser mobilizados diante de demandas que recebemos do mundo, algumas delas direcionadas à Rede Indígena da USP. Além da reflexão pessoal que tal experimento imaginário propõe, no coletivo também sentimos que somos julgados pelos outros em relação a estas categorias que balizam os processos de escolha. Podemos ser capturados nos sentimentos de culpa, inadequação, frustração, impotência, incoerência, paralisia. Mas quando as experiências vividas são percebidas e avaliadas como bem-sucedidas também envolvidos pelo potencial de ampliação dos sentimentos de realização, plenitude, satisfação etc.
E se acrescentarmos na matriz o talvez e o depende, além do sim e do não? Adentramos territórios de ambiguidades e ambivalências. Aonde vamos chegar?
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