
Foram chamados de gnósticos pela sua repugnância ao dogma e hierarquias e pela convicção de que a resposta estava na gnose (o conhecimento íntimo, intuitivo e pessoal da divindade), não na fé obediente. Foi fácil aniquilá-los, pelo seu anarquismo avant la lettre, pela mania de revezar funções (bispo hoje, amanhã na plateia; nenhum cargo era vitalício e até mulheres podiam oficiar um culto) e principalmente por jamais se fixarem num lugar, perambulando de vilarejo a vilarejo, andarilhos que espalhavam as palavras ao vento (cf. S. J. Patterson, The Gospel of Thomas and Jesus).
Mas o que sabiam os gnósticos a ponto de torná-los tão incômodos, indesejáveis e mesmo ameaçadores? Não eram segredos ocultos, fórmulas mágicas, amuletos encantados, abracadabras – a calúnia que prevaleceu na história oficial da Igreja. Nem eram exatamente místicos, outra vertente que as religiões entronizadas detestam, vide o sufismo para o islamismo salafista. O que os gnósticos conheciam e cultivavam era o poder da imaginação – inventar e pavimentar um caminho próprio, rejeitando a superstição recém-promovida a verdade universal (aliás, “católico” é a tradução do grego “universal”). Conheciam e punham em prática. Pois o gnosticismo é tudo, menos um quietismo (cf. M. Smith, Jesus the magician-charlatan or son of God, e K. Rudolph, Gnosis, the Nature and History of Gnosticism).
As nuances das doutrinas gnósticas são tantas que, até hoje, atrapalha-se quem tenta classificá-las. Falar em gnosticismo é falar de combinações de ideias, permutações, mesclas, improvisações. “Tantas sentenças quantas forem as cabeças”, como zombava um de seus grandes adversários, o cioso padre Tertuliano de Cartago. Por sorte, esse caminho torto (heterodoxo) teve um intérprete à altura, igualmente imaginativo, mas superlativamente mais claro: o filósofo Hans Jonas (1903-1993), autor do insuperável A Religião Gnóstica. O judeu alemão Jonas estudou com o filósofo Martin Heidegger e com o teólogo Rudolph Bultmann na década de 1920, época em que conheceu Hannah Arendt (famosa por sua análise do totalitarismo), de quem ele se tornaria amigo e com quem compartilharia uma “ética da responsabilidade”, ela ressaltando a política, ele enfatizando o futuro. Nos anos 1930, como tantos intelectuais que fugiam da ascensão do nazismo, emigrou para a Inglaterra, e em seguida para a Palestina, o Canadá e Nova York, onde ensinou filosofia na New School of Social Research. Sua obra Gnosis und spätantiker Geist, publicada em 1934 na Alemanha, é um clássico sobre o tema, pois sua original abordagem permitiu, enfim, decifrar a esfinge: Jonas trata o gnosticismo não como um fato historicamente circunscrito, mas como um fenômeno existencial.
Mais tarde, em seu livro Mortality and Morality, a search for the good after Auschwitz, Jonas esboçaria uma peculiar teologia, segundo a qual Deus está longe de ser o criador onipotente, como querem (exigem!) as religiões monoteístas. Ao contrário, é um Ser vulnerável, desorientado, no limite do exílio. Isso porque doou tanto de Si para arquitetar o Cosmos que se esgotou. Um tanto para estrelas e planetas, outro tanto para este mundo, a vida mais manejável das plantas e bichos, e, finalmente, como último gesto de autodoação, o conturbado e incontrolável ser humano. Estava quase sem forças quando moldou o homem que este escapou-lhe ao controle – e começou, lamentavelmente, a investir contra os propósitos da divindade. Este Deus ainda possui certo poder de persuasão sobre alguns episódios humanos, mas já não possui mais a energia e a capacidade de coibir ou proibir abusos e deformações. Às vezes, pode até influenciar, mas é incapaz de decidir o que quer que seja. Anêmico, desvitalizado, se exila em si próprio enquanto gradualmente exila-se de suas criaturas. Não está morto, como disseram, mas perplexo e paralisado, em coma. A essa perda de potência soma-se outra desvantagem: o próprio Deus pode ser vitimado pelo que ocorre no Universo, aí compreendidas, sobretudo, as ações humanas. Ou presenteado, se o homem justo prevalecer, ganhando a luta contra as abominações.
O tema da criatura capaz de regenerar o criador é retomado por Jonas em O Conceito de Deus após Auschwitz. Monstruosidades como as que aconteceram em Auschwitz (a velha questão do mal, tão cara aos gnósticos), ele escreve, não podem ser explicadas pelos argumentos tradicionais, e nenhuma teodiceia ou tratado sobre a bondade de Deus conseguiria justificar tais abjeções, por mais piruetas intelectuais que empreenda.
Horrores como os ocorridos em Auschwitz – ou, agora, na Palestina, Afeganistão, Ucrânia, Yemen, Congo, Sudão, El Salvador, como os que ocorreram em Kosovo, Sarajevo, Ruanda, Darfur, Libéria, Síria; lista cada vez mais extensa – nos convencem de que o mundo, se um dia foi criação divina, já há muito deixou de ser. Ou Deus não era feito só de bondade, ou não participou do último ato da Criação. Assim, caso se queira restaurar sua presença, é preciso redefinir seu papel. Se Ele existe, não tem nenhuma responsabilidade pelo curso da história. Seria inimaginável que, em sua onipotência e onisciência, e, sobretudo, onipresença, sancionasse tantas atrocidades.
É a cara feia da própria história, pois, que nos obriga a redefini-Lo, já que Ele não pode e nem deve ser associado ao Senhor da barbárie.
No início era a Queda
Mas como manter Deus, ou pelo menos o devaneio de Sua existência, se Ele se lançou para fora do mundo?
A solução de Jonas é mais ou menos aquela de Kant, quando este “despertou do sono dogmático” da metafísica graças à terapêutica leitura do cético Hume. Kant salvou a metafísica acrescentando a ela o filtro do empirismo – estava inventada a “metafísica transcendental”, cujo grande proveito foi o de resolver a eterna angústia sobre a validade do conhecimento estipulando que a verdade de uma coisa sempre estará condicionada aos óculos de nossa percepção. Jonas fez parecido: manteve Deus, como Kant manteve a metafísica, mas o relativizou. As prerrogativas continuavam lá, apenas temporariamente suspensas. Em vez do Deus que havia concebido e continua interferindo nos negócios do Cosmos, como querem os monoteísmos, Jonas sugere um Deus que, justamente porque concebeu e interferiu, acabou perdendo seu lugar. Foi gradativamente se debilitando ao se envolver demais em seu próprio trabalho. O Deus transcendental, portanto, desapareceu no meio do caminho: hoje é um Deus no ostracismo, divorciado de sua Criação, expulso por suas próprias criaturas, e tremendamente necessitado da ajuda delas para voltar à ativa.
A definição tem sabor claramente gnóstico. A triste sina do Deus de Jonas é a mesma vivida pelo Deus dos valentinianos, sethianos, marcionitas (grupos de pendor gnóstico) e outros heréticos dos primeiros séculos. O esquema se repete: havia um ser de absoluta perfeição que, por generosidade, resolveu dar parte de si para criar o Universo; sua decisão mostrou-se uma temeridade, como a do incauto rei Lear ao dividir seus domínios entre as filhas ingratas. Assim, o Deus original, fonte de tudo, que havia abdicado de seu sossego por um impulso de doar-se à infinita variedade do vir-a-ser, isto é, para ceder algo dele que materializasse as estrelas, os planetas, plantas e bichos e, equivocadamente, pessoas, este Deus, ao abandonar seu repouso, condenou-se a vagar eternamente, longe dos seus.
No início, pois, foi a Queda. Esse o erro primordial, a Queda inaugural: ao deixar seu lugar, a divindade aventurou-se nos até então inexistentes tempo e espaço, no acidente e na circunstância, no efêmero e no imprevisível. Mergulhou com tanto ímpeto no propósito da Criação que esqueceu a rede de segurança. Concentrado em seus afazeres, Deus não tomou a precaução de deixar de reserva alguma porção de Si, para qualquer eventualidade. Entregou-se totalmente, como fazem os jovens apaixonados. Mas, como em todo romance, cedo ou tarde a realidade se impõe. E a realidade com que Deus se viu às voltas, no finalzinho de seu projeto, foi a de que sua obra se desgovernava, tomava rumos inesperados e, pior, estava totalmente irreconhecível.
A divindade havia se comprometido tanto com o destino de sua Criação, havia gasto tanto de si, que não tinha mais potência para corrigir os erros de rota. O Lear de Shakespeare não teve alternativa a não ser enlouquecer e morrer. Deus tinha duas: podia desfazer o equívoco num piscar de olhos, destruindo o mundo, ou podia, por pura compaixão, permitir que o mundo, mesmo disparatado, continuasse existindo. Escolheu a segunda: preferiu poupar o mundo, mesmo que com isso esgotasse seu último fôlego. Dito e feito: o Cosmos sobreviveu, mas Deus não se reconheceu mais nele. Desalojado, renunciou.
Na teologia mito-poética de Jonas, o tempo, o mundo e a vida desfiguraram a integridade divina. Deus se recusou a continuar sendo quem era para que o mundo pudesse existir. Esse esfacelamento do poder divino se agravou com a complexidade da evolução biológica. O aparecimento do homem no topo da escala evolutiva foi o golpe de misericórdia na autoridade divina: com o homem veio o livre-arbítrio, e com isso o mundo ficou à mercê das sandices humanas. O irônico, talvez, é que o projeto divino inicialmente imaginado se perderá no esquecimento do tempo, o mesmo tempo que havia corroído e corrompido sua integridade. Essa tragédia só não acontecerá se os próprios homens, por uma decisão moral, retomarem o plano original. Essa seria a função da ética: trazer de volta a justiça não só para os homens, mas para que Deus possa se sentir de novo à vontade em sua obra. Os justos vão restaurar o mundo para que, nele, haja lugar para Deus.
Evidentemente, o Deus de Jonas não precisa enviar seu Filho, já que Ele mesmo está padecendo com o espetáculo que involuntariamente montou ao presenciar um circo de horrores tão pouco afeito à sua natureza. Ao Deus de Jonas, também, repugnam por princípio banhos de sangue, e o assassinato de seu próprio Filho lhe pareceria um sadismo e uma futilidade. Este Deus abomina a luxúria do sofrimento – o que, diga-se de passagem, já é uma heresia e tanto. Pode agonizar, mas estoicamente, sem estardalhaço.
Seu ressurgimento, se houver, será circunspecto e discreto, sem fantasmagorias, penitências, imolações, sem aquela encenação mórbida e sadomasoquista (a representação do sacrifício) que, na Igreja, acompanha esse cortejo. Será um resgate, não uma ressurreição. Difícil, lento, porém, quem sabe, mais duradouro. Pois caberá aos justos da Terra provar-Lhe que o bem só enfrentará o mal se cada homenzinho, homúnculo, partícula de humanidade fizer a sua parte (cf. M. Fiorillo, O Deus Exilado). Sem alarde. Com a compostura devida e merecida.
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