
Por Bia Barros
Com o atentado contra a democracia brasileira em 8 de janeiro de 2023, a ameaça de um golpe militar parece ainda mais evidente hoje do que nunca antes. Nesse contexto, a participação feminina é indispensável, mas ainda é pouco comentada. Por isso, conheça a história de uma das guerrilheiras mais memoráveis do Brasil: Gastone Beltrão, a “Rosa Lúcia” na Ditadura.
Primeiros passos na militância
Se fosse possível conferir a identidade da guerrilheira “Rosa Lúcia”, algumas informações seriam indispensáveis: seu nome completo é Gastone Lúcia Carvalho Beltrão e ela nasceu em 12 de janeiro de 1950, na cidade de Coruripe (AL). Era a filha mais nova dos seis filhos do Dr. João Beltrão e tinha 14 anos quando a democracia brasileira foi tomada de assalto pelos militares.
Em família, Gastone Beltrão é a mulher de blusa branca à esquerda da foto. Seu irmão mais novo, Thomaz Beltrão, é o garoto sorridente. (Foto: Arquivo pessoal/Thomaz Beltrão)
Mas para entender a história dos que se foram, é preciso conhecer a vida daqueles que ficaram. Thomaz Dourado de Carvalho Beltrão é engenheiro civil formado pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), mesma instituição que Gastone passou em Economia. Durante a Ditadura Militar, já foi presidente da União Estadual dos Estudantes de Alagoas, extensão regional da União Nacional dos Estudantes (UNE).
“Na minha época de estudante, eu tive uma participação política intensa na resistência da Ditadura muito espelhado na experiência da Gastone”, ele conta. A pista está no sobrenome: Thomaz Beltrão é o irmão mais novo de Gastone Beltrão, cerca de 9 anos mais novo. Suas lembranças são as de uma criança que viu a irmã mais velha de perto tanto no afeto quanto no início da militância.
Para Thomaz, lembrar da história de Gastone é como lembrar de uma metáfora sobre liberdade. “Eu, por exemplo, criava passarinhos nas minhas brincadeiras infantis, e quando ela chegava do Rio de Janeiro pagava para soltar os animais. Então, ela era uma figura que tem uma sensibilidade social muito grande, uma visão de futuro para aquela época.”.
O primeiro contato de Gastone Beltrão com o movimento de resistência não aconteceu em sua terra natal. Thomaz conta que quando sua irmã foi morar com seus avós no Rio de Janeiro, ela se aproximou do movimento estudantil durante o ensino médio. O Rio de Janeiro foi palco de muitos momentos importantes nesta história.
“Ela já ensaiava ali os primeiros passos da militância dela”, diz Thomaz sobre os anos da irmã no ensino médio. Na foto, Gastone abraça sua avó. (Foto: Arquivo pessoal/Thomaz Beltrão)
“Eu lembro de algumas reuniões no Rio de Janeiro quando os amigos militantes dela, de nível médio, chegavam lá e conversavam no pátio do prédio. E eu sempre gostava de jogar futebol no pátio, então eu vi alguns dos militantes daquela época. Eu jogando futebol e eles conversando, já planejando as lutas de resistência à ditadura.”
Em 1968, Gastone retornou à Alagoas na intenção de cursar Economia na Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Nessa época, ela também ingressou na Juventude Estudantil Católica (JEC) e tentou expandir o movimento de resistência para outros estados do Nordeste, como Pernambuco e Alagoas, ao mesmo tempo que continuou a ter contato com a militância do Rio de Janeiro.
“Minhas irmãs diziam que acompanhavam ela nas viagens, porque o Rio [de Janeiro] era muito grande. Uma jovem para sair de um estado para o outro tinha todo um disciplinamento, e ela se ‘escudava’ em minhas irmãs para dar sequenciamento à militância dela”.
Um impedimento que quase travou Gastone foi a questão da maioridade feminina nos anos 70. Na época, uma mulher só era considerada “de maior” pela lei a partir dos 21 anos, o que dificultava seus planos de fazer o treinamento de guerrilha em Cuba. Protestar não era suficiente. Gastone Beltrão queria lutar contra o regime com a mesma força de fogo que os militares
“Luta”: nome feminino
A solução foi um acordo secreto disfarçado por um par de alianças: Gastone Beltrão e “Zé” Pereira (ambos da ALN) casaram-se em 1969 no Rio de Janeiro. Dessa forma, Gastone conseguiu o passaporte ainda aos 19 anos de idade. Em sigilo, o casal decidiu viajar à Itália, seguir rumo à Cuba e retornar ao Brasil para lutar com armas.
“O álibi que eles usaram para família é de que ela iria concluir o curso de Economia lá na Itália. E as cartas chegavam da lá, mas, na verdade, ela fez apenas um pitstop na Itália para ir treinar guerrilha em Sierra Maestra.”, conta Thomaz Beltrão.
Na foto, Gastone Beltrão e José (Zé) Pereira em seu casamento no Rio de Janeiro. (Foto: Divulgação/História de Alagoas)
Entre os anos 60 e 70, as mulheres representaram 16% das organizações de esquerda no Brasil. Em grupos armados urbanos, chegou a 18,3% do total (dado retirado do artigo “Mulheres no Brasil nos Anos 70: Militância, Mídia e Padrão de Beleza”, de Nadiesda Dimambro, 2019).
Thomaz explica que Gastone e seu marido retornaram ao Brasil em 1971 provavelmente por uma passagem clandestina no Chile, ainda um país democrático. Segundo a historiadora e pesquisadora Paula Santos, após o treinamento Gastone Beltrão integrou o III Exército da ALN e recebeu oficialmente seu codinome de segurança: “Rosa Lúcia”, ou somente “Lúcia”.
Informações sobre a guerrilheira Gastone num jornal. (Foto: Acervo público/BNM – Digit@l)
Para a Professora Emanuelle Rodrigues, do curso de Relações Públicas da Ufal e uma das requerentes do processo de reintegração e diplomação póstuma de Gastone, a força feminina na resistência à Ditadura ainda é sub-representada.
“As mulheres sempre tiveram um papel central na luta durante e depois da Ditadura Militar. Mas isso não ocorreu apenas na frente da batalha com ações diretas contra a repressão. Elas foram as responsáveis pelo trabalho de reprodução social, que consistia também no cuidado da família para que os homens pudessem participar da luta.”, explica a Professora.
A história de Gastone Beltrão se destaca por ir contra o que se esperava das mulheres naqueles anos. Apesar de marginalizado, o trabalho feminino foi indispensável para os movimentos pela democracia. “Se as mulheres do front já são pouco conhecidas, aquelas que garantiram a reprodução da vida são totalmente invisibilizadas.”
Oficialmente guerrilheira, a “Rosa Lúcia” foi ativa na luta armada enquanto pode, mas não viveu o suficiente para ver a volta da democracia no Brasil. Em 22 de janeiro de 1972, Gastone Beltrão, Zé Pereira e Carlos Bicalho Lana iam à reunião da ALN quando foram cercados pela polícia. Gastone foi a única que não sobreviveu nesta operação.
Resistir até o fim
Segundo Thomaz Beltrão, “Zé” Pereira contou que Gastone desceu do Jeep no Largo do Cambuci, região de São Paulo onde a resistência pegava suprimentos. Quando ela se afastou, foi cercada pelo bando de Sérgio Fleury – Delegado do DOPS na época e um dos torturadores mais sanguinários da Ditadura – e provavelmente perdeu contato com o carro.
Gastone sabia do que os militares eram capazes de fazer nos porões da Ditadura. Além da morte exaustiva e dolorosa, muitos militantes ainda sofriam de morte simbólica: eram apagados dos registros e tornava-se impossível localizar seus corpos. Com o histórico de guerrilheira, ela sabia que não teriam misericórdia com ela se fosse pega.
Por isso, conta Thomaz Beltrão, a alagoana dizia a amigos e familiares: “Se eu cair, caio atirando” – e foi assim que ela resistiu no dia 22 de janeiro. Cercada, ela não se rendeu e trocou tiros com a polícia. Foi ferida pelos militares no local, mas deslocada com vida para um lugar de interrogação e tortura.
Gastone apresentava sinais de que havia sido imobilizada e ferida ainda com vida. Nas fotos da esquerda para direita: Nome de Gastone num recorte do Jornal VEJA e Gastone dançando com seu primo Marcos. (Foto: Acervo Público/BNM – Digot@) (Foto: Arquivo Pessoal/Thomaz Beltrão)
Diferentemente de outras famílias na época, a família Beltrão soube rapidamente do paradeiro de sua filha mais nova. Zoraide Beltrão, mãe de Gastone e de Thomaz, conseguiu que o Delegado Fleury confessasse o estado de morte, mas não conseguiu que liberassem o corpo.
O DOPS informou à mãe que a guerrilheira havia morrido imediatamente numa troca de tiros com a polícia, omitindo o caso de tortura e assassinato. Essa também foi a versão oficial divulgada na época, mas a verdade só viria com a análise da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Gastone foi enterrada como indigente no cemitério de Perus, em São Paulo.
A minibiografia de Gastone no site Memorial da Resistência de São Paulo reforça o que realmente aconteceu naquele dia. “De acordo com o diagnóstico da perícia, fica evidente a montagem de um ‘teatro’ pelos agentes de repressão. Isto reforça os indícios de que a vítima teria sido ferida no local, mas conduzida e executada em outro local. Pode-se inferir, portanto, a possibilidade de que Gastone tenha sido detida e torturada até a morte por agentes de segurança do Estado.”
Gastone em seu casamento de braços dados com seus avós. (Foto: Arquivo Pessoal/Thomaz Beltrão)
Gastone foi assassinada aos 22 anos de idade. Seus restos mortais só viriam a retornar para sua terra natal cerca de três anos depois de seu falecimento, em 1975, por um esforço inesgotável da família, especialmente de sua mãe Zoraide. Hoje, Gastone e seus avós, com quem viveu os anos de adolescência e o início de sua militância, dividem juntos o mesmo jazigo no Cemitério Nossa Senhora da Piedade, em Maceió (AL).
Quando se fala em buscar justiça depois da Ditadura, muito se fala sobre “relembrar”. Este ato, no entanto, se difere do comum pela dor desse período emblemático. As memórias da Ditadura não são comuns – são feitas de carne e osso. Elas vibram na mente daqueles que perderam pessoas queridas e reverberam a relação de uma sociedade inteira com sua história.
Em 2025, Gastone Beltrão não precisaria viver sob o codinome “Rosa Lúcia” para sobreviver. Ela completaria 75 anos em janeiro e finalmente receberia seu diploma por direito. Relembrar quem é Gastone Beltrão é discordar da sentença de esquecimento e humilhação que seus algozes a condenaram. A luta contra o golpe militar continua.