
Por Vitor Cadillac / Midia NINJA
Na primeira capital do estado de Goiás, conhecida como Goiás Velho, um sobrado que outrora foi prostíbulo está sendo reinventado como espaço de resistência, arte e cultura. Batizado de Solar dos Urubus, o projeto idealizado pelo estilista Ronaldo Fraga e seu companheiro Rodrigo Januário é mais do que residência artística: é uma ponte entre os muitos Brasis, um manifesto vivo de descentralização cultural e um convite para que o país se reencontre com suas raízes diversas. Inspirado por Mário de Andrade, Cora Coralina e pelo “santo acaso”, Ronaldo traz sua trajetória que conta com mais de 70 coleções de moda para construir, agora, um espaço que transcende a passarela e abraça a micropolítica do viver.
Encontro com Goiás
Foi na Semana Santa do ano passado que Ronaldo, um dos nomes mais inventivos da história da moda brasileira, ainda no início do namoro, decidiu viajar com Januário. O que era para ser uma viagem passageira, virou paixão avassaladora. “Entrei em Goiás de mãos dadas: de um lado com Cora Coralina e do outro com um amor, o Januário”, conta. Naquele momento, a cidade, com sua memória viva, suas rezadeiras, alcoviteiras e histórias escondidas em becos, revelou-se o lugar perfeito para o sonho que Ronaldo já cultivava: criar um espaço onde pudesse receber pessoas, compartilhar seu acervo literário e celebrar a diversidade brasileira.

O acaso, que Ronaldo reverencia como um “grande roteirista”, guiou o casal até o sobrado que se tornaria o Solar dos Urubus. Rosa, vizinha da hospedagem onde o casal estava instalado, levou-os até a propriedade, que carrega a história de um prostíbulo famoso, imortalizado em contos de Cora Coralina. “Quando vi a fachada, falei: quero. Nem precisava ver por dentro”, brinca Ronaldo. O nome do projeto reconfigura a imagem do Urubu, retirando-o das associações de senso comum de que são animais ruins. Entretanto, a ideia veio como muito na vida de Fraga: das coincidências do acaso. Tanto Janurário como Fraga são fascinados por urubus, símbolo de liberdade. “Meu filho, aos cinco anos, disse: ‘Se eu fosse pássaro, queria ser um urubu, porque ninguém nunca ia me prender na gaiola’. E Januário registra fotografias de urubus há anos. Dois urubus se encontraram”, explica Fraga.
Um espaço para residências artísticas e memória
O Solar dos Urubus está sendo construído de forma orgânica, mas já tem uma espinha dorsal clara: o local receberá residências artísticas, exposições de arte e cultura, e abrigará a biblioteca pessoal de Ronaldo, que será doada para uso gratuito da comunidade. “Quero que a cidade possa usufruir de graça. É um espaço para trabalhar, para criar, para encontrar esses Brasis”, diz. O sobrado também surge no contexto de encontros casuais com as iniciativas locais, como o projeto de bordado da Cabocla Milena Curado, que ensina a prática no presídio masculino de Goiás. “Agora minhas roupas são bordadas com Milena. As pessoas perguntam ‘qual o motivo de bordar em Goiás?’. Eu respondo que não quero só bordar, quero preencher o bordado com essas histórias”, afirma Ronaldo.

A inspiração para o projeto vem de uma vida dedicada a conectar “os diferentes Brasis”. Desde jovem, influenciado por Mário de Andrade, Ronaldo buscou olhar o país com “olhos de poeta”. Suas coleções de moda o levaram à Amazônia, ao Nordeste, à divisa do Rio Grande do Sul com a Argentina, sempre em busca de narrativas que não cabem nas vias convencionais. “A moda foi minha desculpa para ir a lugares que, de outra forma, eu não iria. A passarela ficou pequena. O Solar é a continuação disso”, reflete.
Cora Coralina e a micropolítica do viver
Goiás Velho, para Ronaldo, é sua “Macondo”, afirma o estilista fazendo referência ao universo mágico do escritor Gabriel García Márquez. A cidade pulsa com histórias que ele pretende resgatar e amplificar, muitas delas ligadas a Cora Coralina. Poetisa à frente de seu tempo, Cora defendia lavadeiras e prostitutas, falava de feminismo sem nomeá-lo e desafiava as convenções da sociedade conservadora àquela época. Um de seus contos, sobre duas irmãs gêmeas em um prostíbulo – uma delas enfrentando seu agressor com um cajado de pregos –, é, para Ronaldo, símbolo da força transgressora que o Solar pretende honrar. “Cora é uma figura que não se reconhecia no corpo de velha. Vamos lançar luz sobre ela, sobre essas histórias que ainda não foram contadas”, promete.
O Solar dos Urubus também é ato político. “A moda é política, a gastronomia é política, o viver é político”, afirma Ronaldo. Para ele, as micropolíticas – as escolhas de roupa, de amigos, de lugares – são tão importantes quanto os grandes debates. O projeto em Goiás Velho é uma extensão dessa visão – convite para que pessoas de fora conheçam a cidade e se conectem com suas rezadeiras, sua gastronomia caseira e suas narrativas escondidas. “Quero levar pessoas que nunca iriam a Goiás Velho e fazer com que elas encontrem pessoas que nunca encontrariam”, diz.

O Casamento e a gastronomia como ponte, na terra da menina da ponte
O Solar também surge no contexto de um marco pessoal e comunitário: o casamento de Ronaldo e Januário será o primeiro casamento homoafetivo registrado no cartório da Cidade de Goiás. A cerimônia reflete a escolha deliberada de construir uma nova etapa da vida em um lugar novo, encarando preconceitos. “Não é a religião, o STF ou qualquer coisa que vai definir com quem eu vou ficar”, declara Ronaldo.
O casamento celebrado em Goiás une dois artistas cujas trajetórias se encontram na criação, na sensibilidade e no compromisso com a beleza. Ronaldo Fraga é um dos grandes nomes da moda brasileira, reconhecido por sua obra que atravessa memórias, territórios e afetos. Rodrigo Januário, além de dentista — responsável por atender nomes como a cantora Pabllo Vittar —, é também fotógrafo, com registros realizados em diferentes regiões do Brasil. Amante da cultura popular e colecionador de arte, Rodrigo imprime em tudo que faz uma atenção cuidadosa à estética, aos símbolos e às expressões que moldam o imaginário brasileiro.
A gastronomia, outra paixão do casal, terá destaque no casamento e no Solar. A chef Emiliana Azambuja foi escolhida para criar o menu que une as sutilezas da culinária goiana e mineira. Um dos ícones da gastronomia goiana, Emiliana é premiada e reconhecida por seu trabalho que valoriza os ingredientes locais, a comida de verdade e o afeto enquanto principal tempero. “Queremos que as pessoas devorem Minas e Goiás através dos pratos”, explica Ronaldo. Para ele, a comida é uma forma de entender o mundo, assim como a moda. “Fique de olho na gastronomia para saber para onde a moda vai”, aconselha.

Os Brasis descentralizados
Ronaldo sempre buscou levar os Brasis esquecidos para o centro do debate. Em 2003, quando apresentou sua coleção inspirada no Vale do Jequitinhonha durante o São Paulo Fashion Week, enfrentou questionamentos sobre como aquele lugar “miserável” poderia inspirar a moda. Sua resposta foi construir pontes entre o Brasil feito à mão e o da indústria, entre o rural e o urbano. Agora, em Goiás Velho, ele quer fazer o mesmo, mas sem a efemeridade da passarela. “É uma ponte que estou construindo com Januário, guiados pelo santo acaso”, diz.
O projeto também é resposta a um tempo que Ronaldo descreve como “caduco”, marcado por retrocessos e pelo “esquecimento coletivo”. Contra esse cenário, o Solar dos Urubus propõe memória, afeto e resistência. “A roupa é escrita, é bandeira. Quando o indivíduo descobre isso, ninguém o segura”, reflete. Em Goiás Velho, Ronaldo e Januário estão escrevendo a história do Brasil que se encontra na diversidade.
Entre risos, lembranças e o som de Caetano Veloso na trilha de Tieta (tocando no carro a caminho da assinatura do contrato de compra da casa), tudo se alinha numa narrativa que mais parece ficção realista. “O acaso não brinca em serviço”, brinca Ronaldo. “É ele o grande roteirista dessa história.”
O Solar dos Urubus é um ato que se inscreve no presente. É o sonho de duas pessoas que se inscrevem na história centenária de Goiás. É um lugar surgido do acaso, onde se cruzam a tradição e a reinvenção, o amor e a política, a moda e a memória. Um lugar que não cabe na gaiola.