
A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP abriga cerca de 40 mil títulos que correspondem a 70 mil volumes aproximadamente, reunindo grande acervo com títulos importantes da literatura brasileira, dentre eles os manuscritos do romance Olhai os lírios do campo, de Erico Verissimo. Publicado em 1938, o romance coloca Erico no cenário nacional, por ter se tornado um fenômeno de vendas. Após menos de 30 dias de seu lançamento, o livro já tinha todos os exemplares esgotados. Conforme os jornais da época, não havia caso semelhante na história da literatura brasileira. A segunda edição, de julho de 1938, apenas dois meses depois da primeira, traz a marca do êxito: as livrarias porto-alegrenses venderam, em média, 70 exemplares ao dia, número bastante expressivo para aqueles tempos. O romance foi traduzido para alemão, francês, italiano, russo, japonês, indochinês. Foi adaptado para o cinema argentino em 1947, dirigido por Ernesto Arancibia, e como telenovela pela TV Globo, em 1980.
Dois aspectos são muito relevantes em Olhai os lírios do campo: o cenário e os caminhos da Medicina.
O cenário urbano, uma cidade que se transforma em metrópole de ruas movimentadas, tráfego intenso, cinemas, teatros, edifícios altos, zonas de riqueza versus zonas de pobreza. A vida social se desloca entre as casas dos ricos e as dos remediados. O cenário não só salienta o realismo da localização da história, mas representa o crescimento da urbanização e o frenesi das capitais da América Latina, principalmente marcados, no romance, pela construção do Megatério, edifício gigantesco no centro da capital gaúcha.
O debate sobre os caminhos da Medicina, pois a profissão de médico foi regularizada no Brasil em 1932. Com a obrigatoriedade do diploma de Medicina para o exercício da profissão, não ter diploma e exercer a medicina poderia gerar denúncia, inquérito e prisão, colocando o Brasil na lógica da modernidade. É neste contexto que aparecem as personagens que representam os diversos posicionamentos da prática médica, como os abnegados Olívia e Dr. Seixas, em contraponto ao carreirista Eugênio.
A pesquisa nos manuscritos do romance Olhai os lírios do campo ampliou nosso conhecimento sobre os caminhos de criação de Erico para além daquilo que o autor revela em suas memórias, em que lembra que o romance nasceu de um episódio por ele testemunhado numa visita a um amigo num hospital, quando viu um homem com um recém-nascido nos braços, cuja mãe morrera no parto:
“A história ficou-me na cabeça, revoluteando, provocando ideias e imagens como – hospital… médicos… mulher que morre… homem que fica, e que provavelmente a amava… Essa nebulosa foi o núcleo do mundinho de Olhai os lírios do campo. […] Semanas depois, conversei longamente com João Santana à mesa de um café, no centro da cidade, comentando a fúria aquisitiva do homem de nossa época, sua sede de sucesso, numa civilização das coisas em que os valores éticos eram cada vez menos levados em conta” (Verissimo, 1974).
Um acontecimento da experiência pessoal do autor e uma reflexão com um amigo sobre os descaminhos da vida vão formar o alicerce do romance. O enredo desenvolve-se a partir da história de Eugênio, um homem de infância pobre, obcecado pelo sucesso social, que abandona a amada e a filha por um casamento vantajoso, mas fracassado. Vive frustrado na classe alta, até que a notícia da morte de Olívia, sua antiga amada, chega para desviá-lo de suas ambições, humanizando-o pelo sofrimento.
Como diz Jacques Derrida, “não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade; não há arquivo sem exterior”. Tampouco não há arquivo sem suporte, sem interpretação, sem decodificação do que nele está contido, o que equivale a dizer que a pesquisa do arquivo não é uma pesquisa de origem, uma mera escavação, é um trabalho de diálogo entre os indícios. Um arquivo é um organismo vivo, que fica em estado de total inércia até que alguém vá até ele e se aproprie (no melhor dos sentidos) das informações que lá estão contidas, estejam elas explícitas ou implícitas. O arquivo volta à vida, saindo do seu estado de latência no momento em que é observado, analisado, pesquisado. É nesta perspectiva que se coloca a grande relevância do trabalho de organização e de preservação de acervos: trazer à luz a trajetória de figuras importantes para a cultura de um país, de uma localidade, prestando homenagem à relevância pessoal e coletiva do arquivado e/ou do colecionador e colaborando para a preservação de sua memória, além de ampliar o quadro histórico em que os diversos agentes se situam. É nesta perspectiva que se coloca a grande relevância do trabalho da e na BBM, que dá acesso à pesquisa para iluminar os manuscritos de Erico Verissimo.
A BBM será responsável pelo primeiro evento do ano de 2025 em homenagem aos 120 anos de Erico Verissimo:
ERICO VERISSIMO NA BBM-USP
Exposição dos manuscritos do romance Olhai os lírios do campo
Minicurso sobre a obra de Erico Verissimo, das 14h às 16h:
Encontro 1 (08 de abril de 2025): Romances urbanos (décadas de 1930-40)
Encontro 2 (09 de abril de 2025): Romances políticos (décadas de 1960-70)
Jornada Erico Verissimo (10 de abril de 2025)
Mesa 1 – 9h
Rachel Valença (Instituto Moreira Salles – IMS)
Maria da Glória Bordini (Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS)
Mesa 2 -14h
Antônio Dimas (USP)
Márcia Ivana de Lima e Silva (BBM-USP)
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