
Durante o mês de abril, instituições de saúde em todo o Brasil se mobilizaram em torno da campanha nacional Abril pela Segurança do Paciente, promovida pelo Ministério da Saúde em consonância com as diretrizes do Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). Desde sua criação, em 2014, a campanha tem se consolidado como um importante espaço de sensibilização, articulação e mobilização de profissionais, instituições e pacientes em defesa da qualidade e segurança no cuidado à população.
A campanha de 2025, com o tema Mais Acesso e Cuidado Integrado e o slogan Qualidade em Toda a Jornada!, destaca a necessidade de fortalecer a integração entre os diferentes níveis de atenção à saúde, assegurando uma assistência contínua, centrada no paciente, com especial atenção à redução de barreiras que dificultam o acesso aos serviços de saúde. A campanha também se alinha às diretrizes internacionais da Organização Mundial da Saúde (OMS) e aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com ênfase no ODS 3, que visa garantir saúde e bem-estar para todos, e no ODS 10, que preconiza a redução das desigualdades.
Neste contexto, mais do que discutir protocolos e tecnologias, é urgente colocar em pauta a equidade no acesso à saúde como elemento central da segurança do paciente. Afinal, as desigualdades regionais, sociais e econômicas, historicamente enraizadas em nosso país, repercutem de forma direta na qualidade da atenção prestada e na capacidade do sistema de prevenir riscos, acolher vulnerabilidades e promover um cuidado digno e seguro.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define segurança do paciente como o conjunto de ações organizadas para reduzir riscos, prevenir danos e tornar os serviços de saúde mais seguros, por meio de mudanças culturais, comportamentais, institucionais e tecnológicas. No Brasil, o PNSP, instituído em 2013, impulsionou avanços, como a criação dos Núcleos de Segurança do Paciente nos serviços de saúde e a sistematização da notificação de eventos adversos.
Em 2024, a Organização Panamericana de Saúde (Opas), em conjunto com a OMS, apresentou a Carta dos Direitos de Segurança do Paciente, que desempenha um papel fundamental no progresso rumo ao ODS 3, que coloca a equidade no centro das práticas de cuidado e promove a eliminação de disparidades, garantindo que todos os indivíduos, independentemente de suas condições socioeconômicas, recebam cuidados seguros e de qualidade. Ao enfatizar a prestação equitativa de serviços como parte central da cobertura universal de saúde, a Carta apoia práticas seguras, a redução de danos evitáveis, a qualificação da força de trabalho em saúde e o fortalecimento da gestão de riscos baseada em direitos, ampliando a capacidade dos países de proteger a segurança de todos os usuários dos serviços de saúde.
Portanto, a segurança do paciente não pode ser dissociada das condições em que o cuidado é ofertado e acessado. Tratando-se do Brasil, um país marcado por profundas desigualdades, é essencial reconhecer que nem todos os grupos populacionais têm as mesmas oportunidades de receber um cuidado seguro e de qualidade, assim como garantir os seus direitos.
Populações em situação de rua enfrentam barreiras como a falta de prontuários e discriminação institucional para acessar serviços de saúde. Pessoas com deficiência lidam com estruturas excludentes e equipes despreparadas. Povos indígenas, negros, quilombolas, minorias sexuais e de gênero e outros grupos vulneráveis enfrentam invisibilidade, preconceito e negligência institucional. Quando essas desigualdades não são abordadas, a segurança do paciente se torna privilégio, não um direito universal, contrariando o Art. 196 da Constituição Federal de 1988, que assegura a saúde como direito de todos.
Garantir uma saúde segura para todos requer, de forma inegociável, que o princípio da equidade, fundamentado no respeito às necessidades, diversidades e especificidades de cada indivíduo e grupo social, esteja no centro das políticas públicas, desde a formação dos profissionais, passando pelo fortalecimento e organização dos serviços e da produção de conhecimento, de forma colaborativa com o envolvimento de diferentes sujeitos e considerando as diferentes realidades, numa perspectiva de promoção da saúde de forma segura e equitativa.
A equidade é um pilar fundamental da saúde pública, essencial para alcançar justiça e cidadania plena, garantindo bem-estar igualitário para todos. Diversas iniciativas têm mostrado caminhos para integrar segurança e justiça social: Consultórios na Rua oferecem cuidado integral à população em situação de rua; a atenção primária à saúde é fortalecida com enfoque territorial e articulação intersetorial; e a educação em saúde foca em aspectos antirracistas, anticapacitistas e interseccionais. Além disso, políticas de saúde para populações vulneráveis visam promover acesso e saúde universal, garantindo direitos à saúde para grupos como a população negra e a indígena, minorias sexuais e de gênero, pessoas com deficiência e privadas de liberdade.
Contribuições da Escola de Enfermagem: pesquisa e ação para reduzir desigualdades
Na Escola de Enfermagem da USP (EE-USP), por meio do Programa de Pós-Graduação em Gerenciamento em Enfermagem – PPGEn, diversas iniciativas vêm sendo desenvolvidas visando compreender e enfrentar as desigualdades em segurança do paciente, articulando ensino, pesquisa e extensão em consonância com os ODS.
No âmbito da pesquisa, entre os projetos em destaque, coordenados e desenvolvidos no âmbito do grupo de pesquisa Qualidade e Segurança em Serviços de Enfermagem e Saúde – GPQUALIS da EE-USP, estão:
● Reduzindo as desigualdades para o cuidado seguro e de qualidade da pessoa com deficiência auditiva, coordenado pelos professores Maristela Santini Martins e Hercules de Oliveira Carmo (líderes do GPQUALIS) em parceria com pesquisadoras da Unicamp, da Faculdade de Educação da USP e do CER IV M’Boi Mirim. A pesquisa busca identificar fatores organizacionais e individuais que impactam a segurança do cuidado a essa população e desenvolver ações educativas inclusivas. O projeto conta com financiamento da USP, Unicamp e Unesp.
● Diminuindo as desigualdades para o cuidado domiciliar seguro e de qualidade, que investigou as necessidades educacionais dos cuidadores de pacientes atendidos pelo Programa de Atenção Domiciliar (PAD-HU) e propôs materiais de apoio à capacitação de cuidadores e usuários. Coordenado pela professora Maristela Santini Martins (líder do GPQUALIS) com colaboração do professor Marcelo José dos Santos, em parceria com o Hospital Universitário da USP.
● Saúde e bem-estar da população LGBT+, projeto de pesquisa em desenvolvimento pelo doutorando Narcisio Rios Oliveira, sob orientação da professora Maristela Santini Martins, com envolvimento do poder público e organizações sociais, com o objetivo de identificar aspectos de vida e saúde, bem como avaliar o acesso e utilização de serviços de saúde por essa população, de forma a subsidiar na elaboração, implementação e fortalecimento dos serviços sociais e de saúde voltados a minorias sexuais e de gênero.
● Monitoramento e avaliação das ações da equipe do Consultório na Rua (eCR) de Suzano/SP, coordenado pela professora Chennyfer Dobbins Abi Rached, com participação da professora Maristela Santini Martins e financiado pela Fapesp. O projeto propõe diretrizes intersetoriais para fortalecer o cuidado em territórios vulnerabilizados.
Além das ações de ensino, extensão e pesquisa, a produção científica da EE-USP tem aprofundado o debate sobre segurança do paciente em diversos contextos do sistema de saúde. Um exemplo é o artigo Experiência de enfermeiros relativa à segurança do paciente no atendimento pré-hospitalar móvel, publicado na Revista Brasileira de Enfermagem, que analisa os desafios enfrentados pelos profissionais da enfermagem que atuam no atendimento pré-hospitalar (APH). O estudo destaca a complexidade do cuidado fora do ambiente hospitalar, a importância de formação qualificada e a necessidade de protocolos adaptáveis para garantir a segurança do paciente. Esse estudo foi referência na Nota Técnica nº 1/2025/plenário, que aborda a segurança do paciente no atendimento pré-hospitalar móvel.
Essas ações reafirmam o compromisso da EE-USP com uma pesquisa ética, socialmente referenciada e comprometida com a transformação das práticas e das políticas de saúde, com foco na redução das desigualdades e na promoção de um cuidado mais seguro, acessível e equitativo para todas as pessoas. Desde a formação, é essencial compreender que a segurança do paciente deve considerar a diversidade de perfis atendidos, respeitando suas individualidades, vulnerabilidades e contextos socioculturais. Fortalecer a empatia, a comunicação e o compromisso com a humanização do atendimento é o ponto-chave para que não se tenha diferença entre os grupos atendidos.
A campanha Abril pela Segurança do Paciente é, antes de tudo, um chamado à transformação. Convida os profissionais a reconhecer que não há segurança do paciente sem justiça social, inclusão e enfrentamento das desigualdades que atravessam o sistema de saúde. Mais do que o cumprimento de protocolos, promover a segurança do paciente é afirmar o direito à dignidade de todas as pessoas, sobretudo daquelas historicamente silenciadas, invisibilizadas ou negligenciadas no cuidado.
Que não só em abril, mas em todos os dias do ano, a equidade seja o princípio que orienta as ações e decisões no atendimento ao paciente nas universidades, nos serviços de saúde, nos territórios e na formulação e execução de políticas públicas. Porque uma saúde verdadeiramente segura só será possível quando for universal, acessível e justa a todas as pessoas.
* Narcisio Rios Oliveira, doutorando, Andresa Gomes de Paula, doutoranda, e Ana Luíza de Siqueira Simão, mestranda, todos da Escola de Enfermagem da USP
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