‘Pequenas Coisas Como Estas’ e o solo de Cillian Murphy pós-Oscar

Por Lilianna Bernartt
“Pequenas Coisas Como Estas”, adaptação da obra homônima de Claire Keegan, se passa em um cenário de injustiças sociais: uma Irlanda em grave recessão, sob a tutela da Igreja Católica, que detinha o controle de diversos serviços sociais, como escolas e hospitais.
Cillian Murphy retorna às telas em seu primeiro projeto pós-Oscar de Melhor Ator em 2024, pelo filme “Oppenheimer”, para dar vida a Bill Furlong, um homem simples, dono de uma pequena empresa de carvão, que se vê envolvido em uma situação moralmente complexa ao descobrir os segredos perturbadores de um convento local.
O filme foca no escândalo verídico envolvendo a Igreja Católica, através das chamadas “Lavanderias de Madalena”, instituições administradas pela Igreja para abrigar “mulheres descartadas” pela sociedade — jovens grávidas ou que perderam sua virgindade fora do casamento — consideradas maculadas para o tradicionalismo da época. Descobriu-se anos depois que as meninas/mulheres eram, na verdade, submetidas a condições de escravidão e torturas. Existem relatos históricos de mais de 100 corpos femininos encontrados em uma dessas lavanderias.
O filme, que tem como base narrativa a Igreja Católica e a opressão contra regimes institucionalizados, opta por focar no ponto de vista de Furlong. Casado e pai de cinco meninas, ele também é fruto de um passado traumático. Sua mãe engravidou jovem e foi rejeitada pela família, mas foi acolhida por Sra. Wilson, que permaneceu cuidando dele mesmo após a morte repentina de sua mãe, quando ele tinha apenas 12 anos.
Ao fazer uma entrega de carvão em uma dessas instituições, Furlong se depara com o pedido suplicante e desesperado de ajuda de uma das internas. Instruído e até mesmo pressionado socialmente a ignorar o fato, haja vista o controle da Igreja sobre a comunidade, Bill se vê diante do dilema moral de ajudar ou ignorar.
O diretor Tim Mielants centra sua câmera em seu protagonista, o que provoca uma imersão psicológica do espectador, fazendo com que o dilema de Bill se torne mais relevante do que os eventos externos.
A escolha, apesar de ir ao encontro da proposta da própria autora do livro, gera uma desconexão entre a trama principal, mergulhando nas profundezas do psicológico de Bill.
O recorte narrativo, portanto, se resume à análise psicológica da moral de um homem que conseguiu se estabelecer na vida graças à bondade alheia — de uma mulher — e que agora tem a oportunidade de devolver à sociedade a mesma possibilidade que lhe salvou a vida.
O resultado é um relato mais intimista sobre um homem em conflito com suas próprias escolhas do que um estudo incisivo sobre a injustiça que se passa sob seu olhar.
E sim, repito, esse é o recorte proposto pela autora Claire Keegan e não deixa de ser impactante, mas, quando nos deparamos com as atrocidades do fato histórico em si, é inevitável refletir acerca do paradoxo da proposta ao direcionar o foco quase que total para um corpo outsider aos acontecimentos.
Dentro dessa reflexão, temos um personagem também traumatizado, que atua de forma contida e retraída, com traumas bloqueados, e o acesso que nos é garantido às suas memórias acontece em doses homeopáticas, através de flashbacks de sua infância, o que, embora relevante para a compreensão do personagem, acaba permeando de forma rasa a psique do mesmo, nos deixando com vontade de explorar a profundidade da base narrativa: os abusos sistêmicos perpetuados nessas instituições hediondas.
Cillian, por sua vez, absorve a complexidade de seu personagem silencioso de forma potente e cirúrgica, mas ainda assim tem sua entrega prejudicada pela proposta de linguagem que, apesar de possuir diversas possibilidades de perspectivas, acaba por um rebuscamento raso, deixando a sensação de que poderia ter sido algo maior.
O filme não deixa de estabelecer a crítica, mas, infelizmente, não consegue adicionar substância à mesma, falhando por não dar vozes mais contundentes em meio à barbárie do tema.