
Por Hyader Epaminondas
Mais do que apenas o super-herói mais popular do mundo, Superman sempre foi uma metáfora poderosa para a luta de um imigrante tentando encontrar seu lugar em um mundo que, muitas vezes, o vê como “o outro”. Sua origem, embora kryptoniana, é também humana, enraizada na história de dois judeus, Jerry Siegel e Joe Shuster. Filhos de imigrantes que vivenciaram a ascensão do nazismo e o antissemitismo na Europa durante os anos 1930, eles criaram o homem de aço como uma forma de resistência.
O herói que nasceu refletia não apenas a visão de um mundo melhor, mas também uma reação à crescente intolerância da época. O Superman simbolizava os valores universais de justiça, liberdade e verdade. Cada nova versão do personagem carrega esse embate interno, o desejo de pertencer e salvar o mundo, mas também o peso de ser visto como uma ameaça por aqueles que não o compreendem.
Com o novo filme de James Gunn previsto para julho de 2025, com David Corenswet no papel do azulão, este é o momento ideal para revisitarmos as três últimas gerações do Superman nas telonas, Christopher Reeve, Brandon Routh e Henry Cavill. Cada um deles espelha os dilemas de seu tempo, e é justamente a figura do imigrante alienígena que costura essas versões, de forma simbólica.
O último filho de Krypton
O Superman de Christopher Reeve, em 1978, popularizou as adaptações de quadrinhos com um viés mais sério e digno da sétima arte. Dirigido por Richard Donner, e seu mais do que justificado senso de perfeccionismo narrativo, o filme surgiu em um contexto de desilusão na sociedade americana pós-Watergate e a ressaca moral da Guerra do Vietnã, o que justificava seu patriotismo exagerado à bandeira americana. As sequências foram dirigidas por Richard Lester, que apostava mais no humor situacional, e o quarto e último capítulo, por Sidney J. Furie.
Ele não era apenas um herói com poderes extraordinários, mas um símbolo de esperança em um momento em que o país buscava ideais mais elevados. Ele estava tão imerso na fantasia de seu universo, a ponto de momentos icônicos, como voltar no tempo voando no sentido contrário da Terra ou o famoso “superbeijo” em Superman II, que apaga memórias, parecerem plausíveis. Mesmo Clark Kent, tímido e desajeitado, funcionava como espelho do cidadão comum, alguém invisível à sociedade, mas com potencial para a grandeza.
O marketing da época, com o famoso slogan “Você acreditará que um homem pode voar”, não apenas destacava a inovação tecnológica do filme, como também refletia o impacto emocional que ele causava. O filme fazia com que o público acreditasse não só nas proezas físicas de Superman, mas na ideia de um herói moralmente perfeito. Reeve encarnava esse ideal, personificando um Superman que não era apenas capaz de salvar o mundo, mas de restaurar a fé na virtude, na esperança e na justiça. A trilha sonora de John Williams amplificou esse sentimento, funcionando quase como uma prece musical ao heroísmo clássico.
O Lex Luthor de Gene Hackman é um megalomaníaco cômico movido por ganância imobiliária, um vilão que reflete, com ironia, o espírito de um período marcado pela especulação imobiliária e pelo culto ao self-made man, antecipando algumas figuras conhecidas que estavam em ascensão nos anos 1970.
Mais do que um sucesso de bilheteria, Superman abriu caminho para todo um gênero que viria a dominar o cinema nas décadas seguintes. O filme foi indicado a três Oscars e venceu um prêmio especial por seus efeitos visuais. O Superman de Reeve não apenas voou, ele elevou todo um imaginário coletivo.
Perdido entre o passado e o futuro
Em 2006, Superman Returns foi dirigido por Bryan Singer, o responsável pelos maravilhosos filmes dos X-Men, e parte de uma promessa ousada, recuperar a glória do azulão sem romper com seu passado cinematográfico. Como uma sequência espiritual do clássico, o filme se refugia em uma reverência quase religiosa à era Christopher Reeve, resultando em uma obra que hesita entre ser tributo ou continuação e fracassa em ambas as tentativas, envelhecendo que nem leite.
A escolha de abrir com a trilha clássica de John Williams é sintomática, o filme aposta tudo na nostalgia, como se a simples evocação da memória bastasse para justificar a jornada. Mas esse retorno soa deslocado, como um reencontro marcado tarde demais. Brandon Routh encarna um Superman silencioso, contemplativo e emocionalmente enigmático, que mais observa do que age. Seu retorno à Terra não carrega consequências dramáticas reais, é como se o mundo tivesse seguido em frente, mas ele permanecesse preso a um tempo que já não existe.
O heroísmo de Routh, embora fisicamente imponente, carece de qualquer peso simbólico e isso se torna ainda mais evidente nos closes, quando suas lentes de contato azuis, artificiais ao extremo, desviam a atenção e minam qualquer tentativa de carga dramática. É um Superman sem libido, no sentido freudiano, desprovido de energia vital, de pulsão, como se faltasse nele o desejo de existir no presente. O resultado é um herói que mais parece um boneco de plástico, bonito, porém rígido, vazio e completamente desconectado da realidade ao seu redor.
Já o Lex Luthor de Kevin Spacey soa como uma caricatura deslocada no tempo, preso a motivações absurdas e planos mirabolantes que ecoam os piores excessos dos anos 70, sem a menor atualização. A ameaça que representa jamais se concretiza de fato, o que esvazia o senso de urgência do enredo. Há algo de antiquado em sua presença, como um objeto esquecido no fundo do armário, quando finalmente reaparece, traz junto um cheiro estranho de mofo narrativo.
Ao evitar qualquer visão criativa, Bryan Singer transforma a figura do herói em um símbolo estático, plastificado e emocionalmente fechado. Lançado em plena era Bush, Superman Returns se agarra no conforto do passado, se recusa a enfrentar as inquietações do presente e o aprisiona numa espécie de zona fantasma, bonito de longe, mas incapaz de provocar qualquer comoção real. É um retorno, mas para um século que já passou.
Curiosamente, a culpa pelo fracasso do filme pode ser dividida entre todos os envolvidos, menos o ator principal. Anos depois, Brandon Routh teve a chance de revisitar o personagem com mais maturidade ao retornar no seriado Lendas do Amanhã, entregando um Superman pleno em presença e humanidade. Sua performance mostrou que o problema nunca foi ele, mas sim a produção que o cercava.
O renascimento do Homem de Aço
A reformulação do Superman só ganharia corpo em 2013, com O Homem de Aço, dirigido por Zack Snyder e estrelado por Henry Cavill. Com uma trilha sonora que por si já conta uma história, composta por Hans Zimmer e posteriormente por Junkie XL, o filme abandona a nostalgia em favor de uma abordagem mais realista e focada em ficção científica, numa trilogia marcada por dilemas existenciais e um mundo dominado pela desconfiança.
Pela primeira vez, é explorada a relação do personagem com sua suposta nacionalidade, embora o Superman tenha sido criado em território americano, seu posicionamento como imigrante fica claro e explícito. É nesse cenário que a metáfora do imigrante ganha sua leitura mais poderosa.
Criado por Jonathan e Martha Kent, Clark cresce escondido do mundo e de si mesmo, eles o ensinam a esconder quem é, não por vergonha, mas por medo do que o mundo faria se descobrisse. Em sua simplicidade, Jonathan não oferece respostas absolutas, mas entrega ao filho o valor da escolha, da compaixão e da prudência. É nesse chão terreno, feito de afeto e cuidado pelos pais, que Clark constrói sua humanidade.
Mas ele não está sozinho em seu caminho. Do silêncio das estrelas, a voz de Jor-El ecoa como um sussurro ancestral, não como um comandante, mas como uma memória viva que oferece direção. Jor-El planta em seu filho a semente da esperança, não para que ele seja o que Krypton foi, mas para que possa inspirar a Terra a ser algo maior. Se Jonathan o ensina a sentir o peso do mundo, Jor-El o convida a elevá-lo. Entre os dois pais, não há disputa, mas harmonia, um lhe dá raízes, o outro, asas.
A narrativa se ancora na paranoia de um mundo ainda marcado pelo trauma. A revelação de sua existência não desperta esperança imediata, mas vigilância, medo e hostilidade. Ao atualizar o arquétipo do herói messiânico, Snyder coloca Superman frente ao espelho do nosso tempo, cercado por desconfiança, xenofobia e pelo desejo de controlar aquilo que não se compreende. Seu maior desafio, afinal, não é apenas salvar a humanidade, mas ser aceito por ela.
O antagonista da vez é mais filosófico. General Zod, vivido por Michael Shannon, é um espelho distorcido de Kal-El, um kryptoniano moldado por um destino programado, sem direito de escolha, que encarna a rigidez militarista e a fidelidade cega a uma pátria extinta. No confronto final, ao salvar a humanidade, Superman destrói a última ponte com sua origem e faz um sacrifício silencioso, abre mão da própria herança.
Poder absoluto, deuses entre nós
Em Batman vs Superman, essa tensão ganha contornos de um julgamento épico, onde o morcego de Gotham se ergue como símbolo de um mundo ferido pelo medo, confrontando Superman após o Evento Black Zero, o cataclismo causado pelos kryptonianos no filme anterior, uma clara alegoria para os ataques do 11 de setembro. Nessa nova versão, o Batman de Ben Affleck assume para si o peso de juiz, júri e executor, projetando sobre o “deus alienígena” a alegoria do extremismo que brota da dor e da paranoia até que, em um arco de redenção, é confrontado pela própria humanidade que tentava negar.
A existência de Superman divide a sociedade, ele é um deus ou um demônio? Um salvador ou um tirano em potencial? O herói que carrega o emblema da esperança se vê rejeitado por aqueles que mais precisam dela, tornando-se alvo de investigações, vigilância e linchamento midiático. É o retrato de uma sociedade que teme o que não compreende e que prefere destruir o extraordinário a aceitá-lo. E é aqui que a Lois Lane de Amy Adams tem um papel fundamental, o de descobrir as verdadeiras intenções por trás do conflito central do filme.
O Lex Luthor de Jesse Eisenberg surge como a personificação do ego ferido da elite contemporânea. Dotado de um privilégio que nunca precisou justificar, ele vê em Superman não uma ameaça real, mas um lembrete incômodo de sua própria pequenez. Seu complexo de divindade é movido pela inveja, pela necessidade desesperada de controlar aquilo que não pode ser compreendido ou comprado. Essa versão do Luthor encarna o arquétipo do bilionário tecnocrata, obcecado por poder e movido por um ego frágil cercado por algoritmos capazes de influenciar o mundo.
A criatura criada por Lex, uma versão do Apocalypse, é a materialização de seus impulsos mais sombrios, funcionando como uma metáfora do seu inconsciente, uma força pulsional irracional, primitiva e completamente descontrolada, cuja única finalidade é consumir tudo o que encontra em seu caminho. Ao misturar seu sangue ao corpo do general Zod, Lex escolhe abandonar o controle intelectual da razão, e seus traumas transbordam violentamente numa criação que encarna o caos absoluto.
Em uma de suas falas, ele sugere ter sido vítima de violência doméstica por parte do pai, e, ao gerar a criatura, assume simbolicamente o papel do agressor, repetindo inconscientemente o ciclo de abuso que o marcou. Sua tentativa de impor poder pela força fracassa, e é o próprio Superman quem o salva, se sacrificando para impedir a destruição da humanidade. Ironicamente, o herói se torna exatamente aquilo que Lex afirma jamais ter tido na infância, uma mão divina que intervém quando mais se precisa.
Mas a trilogia não termina na queda. Em Liga da Justiça, na versão do diretor, Superman é ressuscitado com um traje preto, simbolizando sua aceitação completa de si mesmo. O preto, como a junção de todas as cores, representa sua ausência de dúvidas e inseguranças, atingindo um estado de equilíbrio absoluto. Ele já não está mais em busca de quem é, ele simplesmente é.
Sua presença agora inspira união, e ele se torna o catalisador da Liga, da comunidade e do coletivo. A metáfora do imigrante se resolve, o estrangeiro, antes marginalizado, torna-se parte vital do todo. Snyder encerra sua trilogia com uma precisão poética, utilizando uma composição de imagem e som que amarra seus próprios temas, propondo uma nova possibilidade, um futuro onde a esperança não é apenas um símbolo estampado no peito, mas uma escolha ativa de convivência.
Essa leitura mais crua, desconstruída e profundamente humana do Superman continua sendo polarizadora até hoje, mas, mais do que nunca, se mostra visionária. O Superman de Cavill não nasce símbolo, ele se constrói como tal. Ele não chega como salvador, ele se torna necessário. E isso faz dele o mais próximo do material original que já tivemos de uma adaptação do Superman, imperfeito, inseguro, mas comprometido com algo maior do que si mesmo.
Olhe para cima!
Com a chegada do novo filme de James Gunn e a introdução de um tom mais fantasioso com Krypto, o supercão, surge a grande pergunta, qual rumo esse legado seguirá? Voltaremos ao idealismo radiante e imediato ou buscaremos um equilíbrio mais maduro entre o mito e o realismo? Seja qual for o caminho, há uma certeza imutável, o Superman continuará sendo o espelho das nossas necessidades mais profundas e, por isso, sua história nunca será apenas sobre ele, mas sobre nós.