
Com versões também em português e inglês, obra apresenta resultados de pesquisa sobre crise hídrica em cooperação entre a Universidade de São Paulo, a Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e a Universidade de Damasco, na Síria

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Depois de ser lançado em português e inglês, o livro Água no Oriente Médio: o fluxo da paz, publicado pela Editora Sarandi (2015), e Water’s Flow of Peace, pela Cambridge Scholars Publishing, no Reino Unido (2020), foi lançado em árabe, com o título Al-Miyāh fī a-Sharq al-Awsat, tadaffuq as-salām, no final de 2024, em Damasco, na Síria. Com autoria do professor Luis Antonio Bittar Venturi, do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a obra é fruto de pesquisa na Síria e em outros países do Oriente Médio, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O professor analisou regiões referentes da bacia do Rio Eufrates — onde há compartilhamento hídrico pela Turquia, Iraque e Síria, e o Golfo Pérsico, responsável por uma tecnologia de dessalinização que tem mantido o abastecimento de água.
A publicação apresenta os resultados da cooperação entre o Departamentos de Geografia da FFLCH, a Universidade de Cambridge, Reino Unido, e a Universidade de Damasco, Síria, na forma de pós-doutoramento do autor. O livro refuta o paradigma malthusiano amplamente difundido – que prevê conflitos devido à escassez de água – mostrando que essa perspectiva não tem base empírica nem conceitual. O autor começa com a hipótese de que o compartilhamento da política da água e o uso da tecnologia podem anular o paradigma de escassez de água e conflito.

Para corroborar essa hipótese, o livro utiliza duas variáveis, ilustradas por dois contextos: a bacia do Rio Eufrates foi utilizada para estudar a primeira variável da hipótese (compartilhamento de água) e para mostrar que acordos sobre bacias hidrográficas internacionais têm garantido o uso justo da água, evitando conflitos, não apenas no Oriente Médio, mas também na grande maioria das bacias hidrográficas internacionais em todo o mundo. O segundo contexto, o Golfo Pérsico e a Península Arábica, foi utilizado para corroborar a segunda variável da hipótese — o uso da tecnologia para garantir o abastecimento de água; novamente, não apenas no Oriente Médio, mas também em todo o mundo.
O livro, como afirma Venturi, mostra que a água é muito mais um fator que promove acordos de cooperação entre os povos (são mais de 260 bacias internacionais, quase todas regidas por tratados e acordos de cooperação) e que as tecnologias disponíveis e o planejamento podem reverter qualquer situação de escassez hídrica natural. Traz também uma revisão conceitual sobre a água enquanto recurso inesgotável (dadas as quantidades existentes), reprodutível (pela aceleração do ciclo hidrológico nas usinas de dessalinização) e naturalmente reciclável, como destaca o professor. “Ao mesmo tempo, a água não pode ser considerada renovável (como fazem muitos livros didáticos), já que as quantidades existentes na Terra são praticamente as mesmas há cerca de 2 bilhões de anos, sem renovação de estoques”, declara.
“Nessa interessante obra, o autor conclui que não há evidências da existência nessa região de uma velada ou explícita ‘guerra da água’, reforçando sua posição de que essa seria uma hipótese insustentável”, afirma Cleide Rodrigues, em artigo sobre o livro publicado na Confins, uma publicação franco-brasileira de geografia. Segundo entrevista publicada na Agência de Notícias Brasil-Árabe, a tese de Venturi é de que não existe uma crise hídrica no mundo, mas sim uma crise de gerenciamento hídrico.
A saga de um livro
O professor conta vários fatos, curiosos e alguns tristes, que permearam a trajetória do livro, desde sua pesquisa até o lançamento nas várias línguas. Venturi lembra que iniciou sua pesquisa na Síria, em 2010, e em março de 2011 começaram os conflitos na região. Ele e seu grupo foram perseguidos pela polícia, que andava de caminhonete branca, e quando olhavam sempre havia uma atrás deles. Isso dificultou muito a pesquisa, segundo ele.
Em 2015 saiu a versão brasileira. O professor inscreveu o livro no Prêmio Jabuti, e o livro foi selecionado, ficando entre os cinco finalistas. Mas a editora fechou. “Liguei para a editora, que acabou sendo reativada só para que o livro pudesse concorrer. Mas no final o livro não ganhou”, lembra. Um “caso engraçado”, nas palavras do professor, ocorreu com a versão em inglês, que teve sua tradução financiada pela Fapesp, já que a editora de lá pediu uma revisão, chegando até a recomendar um revisor no “padrão Cambridge”. O professor enviou o dinheiro, mas o revisor sumiu, e a editora acabou nem fazendo a revisão. Resultado: “Levei um golpe”.
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Outro fato curioso se deu com a versão em árabe. A Embaixada do Brasil na Síria – presidida pelo diplomata André Luiz Azevedo dos Santos -, junto da Fapesp, patrocinou o livro em árabe, através do Instituto Guimarães Rosa, antiga Fundação Alexandre de Gusmão, instituição cultural que faz parte do Ministério das Relações Exteriores. O problema, segundo o professor, é que o pagamento não podia ser feito em dólares para o editor libanês porque o sistema bancário da Síria não está em funcionamento. O professor explica que lá só é possível usar cartão de crédito, e que se alguém for pego com um dólar é preso. Por essa razão, o pagamento foi feito na fronteira: um carro da embaixada de Damasco foi ao encontro de um carro da editora, “e o dinheiro foi passado de mão para mão ali na fronteira”.
Conseguir uma editora na Síria também não foi fácil. Em fevereiro de 2023, o professor viajou para tentar editar seu livro, e apesar da pesquisa ter base na Universidade de Damasco, não conseguiu porque, como ele revela, todas as editoras de lá estão “quebradas”. Foi encontrar a editora somente no Líbano. Ele lembra que naquela viagem aconteceu um terremoto que matou centenas de pessoas na fronteira da Síria com a Turquia: “Acordei com a minha cama balançando, o prédio todo balançando”. E continua: “Já fui muitas vezes para lá, e toda vez acontece alguma coisa assim, guerra, terremoto; se eu chegasse lá e ficasse uma semana ou um mês e não acontecesse nada, daí que eu ia estranhar”.

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O professor também conta que o editor da versão em árabe queria mudar o título do livro: “Água o Fluxo da Paz, Water’s Flow of Peace, para colocar ‘entre o conflito e eu não sei o quê’”. Venturi explicou que o livro combate a ideia de conflito e que dessa forma o título estaria dando um argumento contrário, dando a ideia de que o mundo vai lutar por água. “Ele bateu o pé, bateu o pé, bateu o pé, foi quase um rompimento. Isso depois que o livro estava praticamente pronto. Então eu disse: ‘se tiver a palavra conflito, não tem lançamento’. Só aí ele concordou”.
Marcado para outubro, o lançamento da versão em árabe teve que ser adiado por conta de um ataque do Hamas, que bombardeou, no dia 7 de outubro, um hospital matando muitas pessoas. Tudo parou, incluindo a Feira Internacional do Livro, e mesmo com o lançamento realizado posteriormente, o clima não era de festa e o professor nem mesmo conseguiu postar o feito nas redes sociais porque tinha “uma guerra horrorosa daquelas acontecendo e um monte de civis morrendo”.
A Embaixada do Brasil em Damasco marcou também um lançamento na Biblioteca Nacional de Damasco, com direito a mídia, cartazes gigantescos com a foto do livro e buffet. Mas, um dia antes, o Ministério da Informação proibiu o lançamento. “Acho que eles viram que eu usei muitos mapas, de diferentes fontes. Normalmente nos mapas do Oriente Médio não consta Israel, e sim a Palestina ocupada, ou só Palestina. Mas usei fontes da ONU (Organização das Nações Unidas) e de outros lugares também em que constavam uns três mapas com Israel.” Segundo o professor, foi a única explicação que conseguiu achar, já que a Síria não reconhece o Estado de Israel. Sendo assim, o lançamento que seria na Biblioteca Nacional foi transferido para a embaixada. Não foram tantas pessoas, mas a vantagem é que teve muito vinho e champagne, já que na biblioteca não poderia ser servida bebida alcoólica, diz o professor, contando que, apesar de tudo, se divertiu muito.
Sua pesquisa virou tese de livre-docência, que foi defendida em 2012 na USP, também com histórias de bastidores. Como a obra trata da dessalinização da água, Venturi trouxe da usina de Oman um pacote de garrafinhas de água do Oceano Índico, que foram servidas durante sua apresentação, ao lado de um cafezinho. “Os membros da banca começaram a olhar aquelas garrafinhas, tudo escrito em árabe, e eu disse: ‘Aqui está uma prova empírica de que mais de 300 milhões de pessoas tomam água do oceano, atualmente. Então, por favor, experimentem’”. Um deles, lembra o professor, “não quis tomar e levou a garrafinha para casa de lembrança”.
Além disso, o professor fez um vídeo em agradecimento à embaixada de Omã, que patrocinou sua ida até lá. Venturi foi convidado para a Festa Nacional de Omã, que acontece anualmente no dia 18 de novembro, em Brasília, e para sua surpresa, o vídeo foi exibido durante o evento: “fiquei morrendo de vergonha”.
A versão em português não está disponível, mas é possível adquirir o livro em e-book e impresso através do site neste link.
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