
Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP
“A IA na arte não é apenas uma questão estética, mas também política. Quem controla os dados controla a narrativa.” (Giselle Beiguelman)
No campo das artes visuais, o uso da IA tem provocado intensos debates que envolvem conceitos tais como autoria, originalidade, acesso, limites e, até mesmo, tem reavivado a pergunta: o que é arte, afinal? Não é inédito que uma técnica, ferramenta ou linguagem desperte reflexões ou, ainda, dê margem a questionamentos, alguns indeléveis, outros adjacentes e outros completamente dispensáveis.
Quando a fotografia surgiu, no século 19, por exemplo, uma dúvida acompanhou o novo dispositivo: seria o fim da pintura? Ou, ainda, quando os computadores e outras novas tecnologias se transformaram em suportes comuns para a arte, em fins da década de 1980 e meados dos anos de 1990, perguntas giravam em torno do esgarçamento de fronteiras (como por exemplo, homem-máquina e tempo-espaço).
Com a IA, o processo de absorção não está sendo diferente: cada vez mais, ela torna-se instrumento para os artistas visuais, permitindo desde a criação de obras geradas por algoritmos até a edição e aprimoramento de imagens. Modelos como as GANs (Redes Generativas Adversariais) permitem que máquinas “aprendam” padrões estéticos e criem obras que imitam, reinterpretam ou inovam estilos já existentes.
As primeiras desconfianças sobre o emprego da IA estão no debate que oscila entre a originalidade e a autoria. Alguns autores argumentam que a IA apenas combina e reorganiza dados existentes, enquanto outros acreditam que ela pode explorar novas formas de criatividade. Outros autores defendem que, mesmo quando a IA gera arte, o papel do artista ainda é altamente relevante, isto porque a arte emerge da subjetividade – algo que nenhuma máquina foi capaz até agora de replicar integralmente. Ao mesmo tempo, o histórico nos mostra que as máquinas foram, e ainda são, aparatos que podem expandir a capacidade criativa. Porém, cabe ao artista as motivações, as emoções, as escolhas, as experiências vividas e, por fim, a concepção do objeto artístico.
Neste ponto do debate, é essencial colocar que a tecnologia e a arte não estão em campos opostos. As técnicas servem ao conhecimento científico e, simultaneamente, ao artístico. Sendo o conjunto de práticas e saberes sobre esses dois campos teóricos, a tecnologia pode ser definida também como o estudo e o processo de métodos empregados para a transformação e o domínio do meio. Assim, desde a invenção de processos rudimentares, passando pela fotografia, até o advento do design digital, os meios tecnológicos influenciaram o mundo artístico. A IA segue esse percurso, trazendo novas oportunidades e, consequentemente, questões.
Outra ameaça, presente nas discussões que envolvem AI e as artes visuais, recai sobre o uso de modelos específicos, tais como DALL-E, Midjourney e Stable Diffusion, que permitem que qualquer pessoa crie imagens a partir de descrições textuais. De um lado, esses softwares abrem portas aos novos criadores, mas, de outro, preocupam porque, paralelamente, podem desvalorizar a figura do artista, uma vez que conteúdos automatizados podem substituir sua expertise. Desse modo, emerge um cenário mediado pela possibilidade de “democratização” do fazer artístico e a “desvalorização” da profissão artista.
Sobre o fim da profissão, os argumentos, já mencionados anteriormente, que indicam a necessidade da ação do artista rebatem com eficiência esse dilema. Há também outros ângulos que alteram essa previsão, tal como a possibilidade de reinvenção artística ou ainda a adoção de novos paradigmas para a criação. Acrescente-se ainda que enquanto artistas experimentam formas híbridas de criação, museus e galerias interessam-se por exposições de arte produzidas por IA. Então, algumas obras geradas a partir do novo meio já nascem institucionalizadas e assimiladas pelo sistema da arte.
Já a “democratização” do fazer artístico parece soar como falsa possibilidade. Historicamente, percebe-se que, assim como o “fazer arte”, o emprego das novas tecnologias nas artes visuais está assinalado por indicadores de gênero, de classe e raciais: quais artistas têm acesso à IA? Das questões tangenciadas até aqui, esta última, talvez, seja uma das mais relevantes. Tal como a fotografia no século 19 ou os computadores no século 20, a IA não é acessível para todos os grupos sociais. O domínio das novas tecnologias ainda não é hegemônico. E os desdobramentos deste contexto são ainda mais significativos: como os artistas contemporâneos lidam, simultaneamente, com os desafios da IA e com os discursos estéticos, políticos e identitários?
Na busca por respostas, observem-se, por exemplo, as criações de artistas negros e indígenas que se lançam às novas tecnologias e, em especial enfrentam a IA, como aparato criativo para discutir identidades, subjetividades e percepções visuais. Nessa trilha, selecionamos alguns artistas e coletivos nacionais e internacionais que empregam a IA para além das questões estéticas, mas também de modo político.
A partir dessa perspectiva, destacam-se as proposições de Stephanie Dinkins (Nova Jersey, 1964), uma artista transdisciplinar e educadora que explora as interações entre tecnologias emergentes e histórias futuras. Seu trabalho está comprometido com a construção de plataformas de diálogo sobre IA e questões sociais, tais como, raça, gênero e envelhecimento. Além disso, a artista trabalha em projetos que registram histórias de mulheres negras, buscando narrativas comunitárias e o desenvolvimento mais inclusivo.
Ela é reconhecida pelo projeto artístico contínuo Conversations with Bina48. Nele, Dinkins explora a relação entre humanos e IA por meio de diálogos com Bina48, um robô. Desde 2014, a artista tem conversado com Bina48 sobre temas como raça, gênero, fé, família e direitos. O projeto investiga como a IA reflete perspectivas sociais e culturais, questionando se um robô pode realmente incorporar a identidade e as experiências humanas. As conversas variam entre filosóficas, engraçadas, frustrantes e reveladoras, mostrando a complexidade da interação entre humanos e máquinas.
Bina48 foi desenvolvido pela Terasem Movement Foundation, com o objetivo de transferir a consciência humana para a IA. O robô tem a aparência de uma mulher negra, mas sua programação foi feita principalmente por engenheiros homens brancos, levantando questões sobre viés na criação de IA. Dinkins exibe fragmentos dessas conversas em galerias e museus, usando instalações de vídeo para destacar os diálogos desconexos, mas significativos, entre ela e Bina48.
Aqui no Brasil, evidenciem-se as experiências de Mayara Ferrão (Salvador, 1993), uma artista visual e diretora criativa, que utiliza múltiplas linguagens e tecnologias, como fotografia, ilustração, pintura e IA, para conceber narrativas que destacam corpos negros e dissidentes. Sua obra é profundamente inspirada pela ancestralidade, cultura afro-brasileira e vivências como mulher negra soteropolitana.
Nesse sentido, a série Álbuns de Desesquecimentos (2024) merece destaque. Na série, por meio da IA são produzidas fotografias ficcionais que representam momentos de afeto entre casais de mulheres negras, então, reimaginando o passado colonial brasileiro. Trata-se de uma combinação entre tecnologia e pesquisa histórica sobre a escravidão, resultando em narrativas de trocas de carinho e intimidade que raramente foram documentadas. Assim, Ferrão desafia representações coloniais e elabora um espaço onde essas mulheres possam ser vistas em sua plenitude emocional.
Nas experimentações entre artistas brasileiros, conte-se ainda com algumas iniciativas pontuais, tais como o filme EMI OFE (2024), de autoria de Igi Lola Ayedun (São Paulo, 1990). Nesse filme, são discutidos temas tais como a imigração, a exploração sexual, a hipersexualização da mulher negra, mercantilização de corpos negros e LGBTQIA+, trazendo uma perspectiva sensível e humana. A estética do filme combina a irrealidade das imagens geradas por IA com uma abordagem profundamente conectada à ancestralidade e à materialidade do corpo negro. Essa combinação resulta em uma atmosfera onírica e reflexiva, desafiando as limitações dos meios tradicionais de criação artística.
Já Froiid (Belo Horizonte, 1986), na instalação sonora O Pulo do Gato (2021-2023), usa a IA para criar um rap infinito e aleatório. A música é composta de versos do rapper mineiro Matéria Prima e beats do produtor Barulhista, gerando combinações únicas e contínuas, sem início ou fim. A instalação inclui letreiros luminosos e um sistema de som que evoca as festas de rua jamaicanas, criando um ambiente visual e sonoro impactante. Assim, adquire grande interação com o espaço, bem como dialoga com o público.
Nas experimentações entre coletivos, destaque-se o projeto AIIA – Apropriação Indígena da Inteligência Artificial, que reúne indígenas de diferentes povos do Brasil, Argentina e Chile para produzir arte digital usando IA. Os integrantes do projeto empregam modelos como Midjourney e Adobe Firefly para explorar a tecnologia de forma crítica e artística. O #AIApagamentoIndigena também é um coletivo que busca aumentar a representatividade de etnias indígenas brasileiras na IA. Nele, artistas indígenas ilustram diversas etnias e alimentam plataformas de IA com imagens plurais e representativas de suas culturas.
Ao fim, na superfície do debate entre IA e artes visuais está a dualidade: inovação versus preservação. Percebem-se as preocupações em torno de conceitos tais como originalidade, autoria e substituição do trabalho humano. Admite-se que novas possibilidades criativas e diversas experimentações também estão em jogo. Porém, numa segunda camada do processo reflexivo, a “democratização” gerada pelo uso das novas tecnologias não parece tão evidente. No fundo, a IA é mais um meio para as artes visuais; sua integração está no campo da estética, mas, também, na esfera política – o que afeta as práticas futuras nas artes visuais. Artistas negros e indígenas têm reivindicado e empregado a IA para evidenciar sua ancestralidade, suas pautas e, sobretudo, desafiar conceitos hegemônicos, explorar novas formas de expressão e promover equidade.
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