
Em “Música para Desaprender Melodias”, Rogério de Almeida mistura e sobrepõe diferentes sonoridades
Por Mirela Costa*

“A alegria que a música permite é muito próxima da alegria de viver.” A afirmação é do compositor e professor da Faculdade de Educação da USP Rogério de Almeida. O encontro entre musicalidade e pulsão vital é a essência do álbum instrumental Música para Desaprender Melodias (2025), que Almeida lançou em março deste ano. Com 16 faixas, o disco conduz o ouvinte a um percurso por paisagens sonoras inspiradas na tradição do rock, mas também atravessadas por toques de blues, jazz, MPB e até fado. As canções ainda trazem referências musicais, literárias e filosóficas variadas, como nas referências feitas ao poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) e ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900).

O álbum não é o primeiro trabalho instrumental de Almeida, que, compositor desde a adolescência, já desenvolveu produções anteriores. Enquanto Música para Escuta Desatenta (2020) – seu disco de estreia – explora as dimensões da percepção sonora do público, Música para Desaprender Melodias tem como objetivo desbravar diferentes possibilidades de combinações entre os sons. “É um álbum que investe em simplicidade musical. Na maioria das músicas que ouvimos, o predomínio é da melodia, do conjunto que serve de base para o cantor e os instrumentos aparecerem. A proposta, nesse álbum, é esconder essa estrutura melódica e dar espaço às camadas de sonoridade, entendendo como os sons podem se harmonizar”, explica. O disco está disponível nas plataformas digitais YouTube e Spotify.
Do big-bang à poesia de Fernando Pessoa
Em meio a misturas e sobreposições de sonoridades, as faixas do álbum são marcadas pelas batidas pulsantes e eletrizantes do rock dos anos 1980, de modo a centralizar a temática da alegria e da apreciação da existência. A canção que abre o disco, Breve História da Origem do Mundo, faz referência ao fenômeno do big-bang por meio de diferentes camadas instrumentais que ambientam o ouvinte em uma atmosfera espacial. “A ideia é que nós temos um vasto espaço, que teve um começo e de alguma forma está se expandindo”, sugere Almeida.
Já em A Arte de Viver, segunda faixa do álbum, é explorado o ímpeto humano de superar as adversidades impostas pelo destino. Logo após o início da música, no qual há predominância de timbres graves e tensos, o refrão vem como uma quebra de expectativa: sons mais doces e suaves relembram a capacidade do homem de se reerguer. A canção seguinte, Medo de Não Ter Medo, abre espaço para uma reflexão sobre os paradoxos e contradições inerentes à vida. “É uma brincadeira entre o sentimento forte do medo e a anestesia de não ter medo de nada”, aponta.
“Comecei a compor essa música quando tinha 18 anos”, conta Almeida sobre Um Poema de Fernando Pessoa (Aqui na Orla da Praia). Ele relata que, após escrever uma melodia que acompanha o poema Aqui na Orla da Praia, Mudo e Contente do Mar, de Fernando Pessoa, deixou os manuscritos guardados por anos. Retomou o trabalho somente em 2020, quando desenvolveu uma harmonia mais rica e complexa que entrou para a versão presente no álbum. Com sons de bandolim que remetem à identidade cultural portuguesa, a estrutura melódica dessa faixa permite o encaixe dos versos do poema na música.
As canções A Poesia É a Alegria da Língua e Uma Noite Perfeita são baladas musicais. Enquanto a primeira é uma homenagem à poesia, a segunda traz um tema romântico para se referir a “uma noite em que tudo vai ficar bem”, como destaca Almeida. Em Não Há Como Sair Vivo Daqui, a ideia central é a presença na realidade: “A melodia alegre traduz a mensagem de que não há outro mundo, o mundo é aqui e nele devemos viver”.
Friedrich Nietzsche aparece como a referência norteadora da faixa Assim Falava o Filósofo. “Nietzsche dizia que o mundo seria inimaginável sem a música. Então, aqui é uma homenagem ao pensamento de Nietzsche e à importância que ele dava à musicalidade”, afirma. A música seguinte, Deuses que Sabem Dançar, também homenageia o pensador alemão, já que faz alusão à frase “Eu só acreditaria num Deus que soubesse dançar”, mencionada no livro Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche. Almeida conta que sua própria experiência acadêmica como professor e pesquisador influenciou as menções literárias. “Essas referências constituem uma espécie de autobiografia sonora, já que todo professor leva seu repertório junto para a sala de aula.”
O destaque de Mas Eu, Eu Sou Só Eu são as vocalizações da cantora Mariana Tambara. A voz complementa o tema de introspecção e individualidade presente na música. Referências à literatura também estão presentes em La Definición del Amor Según Lope de Vega, em que Almeida retoma um dos poemas mais conhecidos do dramaturgo espanhol Félix Lope de Vega (1562-1635), no qual a temática do amor é abordada por meio de seus contrastes. Ideias contrastantes revelam-se, da mesma forma, em Anatomia da Solidão Compartilhada. “Aqui, no caso, o contraste é entre o fato de estarmos sozinhos em meio ao coletivo, ao conjunto de pessoas. Essa é a música mais melancólica do disco”, explica o compositor e professor.
Uma balada com rock marca Na Curva da Estrada, que foi composta a partir de influências do estilo da banda Pure Jam. Entre o clássico e o contemporâneo, a faixa seguinte, O Jardim das Delícias (Tríptico em Ré Maior), referencia a obra homônima do pintor holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). A música apresenta um jogo de composições sonoras por meio de três temas: o primeiro interpretado por um piano, o segundo, por instrumentos de cordas e o terceiro, por uma banda de rock completa.
Almeida relata que a penúltima canção, Ascensão e Queda de Gregório D’Almont (Passagem de Som), é a mais experimental do álbum. “Não se constitui propriamente como uma música, mas como um exercício musical simulando uma passagem de som antes de um show”, comenta. O disco se encerra com Alegria, que, segundo o compositor, é uma síntese do álbum, com um aproveitamento de diversas sonoridades que aparecem no decorrer das faixas.
Música de geração em geração
Inspirado em bandas de rock dos anos 1960 e 1970 – como The Doors, Led Zeppelin e Queen – para a composição do álbum, Rogério de Almeida ainda ressalta a importância do resgate de tendências sonoras passadas para a formação musical de novas gerações. Para ele, Música para Desaprender Melodias também surge tanto como um movimento nostálgico de retomada das músicas que o constituíram durante sua juventude quanto como uma forma de envolver novos músicos com a sonoridade do rock dos anos 1980. “A música é uma questão cíclica. O tempo que chega traz consigo a vontade de lembrar os tempos que foram”, conclui.
O álbum instrumental Música para Desaprender Melodias, de Rogério de Almeida, está disponível nas plataformas digitais Youtube e Spotify.