
Por Bia Barros
Notícias sobre pessoas indígenas nas universidades podem ser recentes, mas os saberes delas certamente não são. Bárbara Flores Borum-Krem tem se destacado como uma das representantes mais importantes de seu povo na associação entre conhecimento acadêmico e resgate ancestral.
Bárbara foi a primeira de sua linhagem a entrar numa universidade ao cursar Turismo pela PUC Minas. Pela Universidade Estadual de Santa Cruz, fez mestrado e doutorado na Bahia durante seu tempo com o povo Tupinambá, o que a incentivou a buscar mais sobre suas próprias raízes.
Ao investigar suas raízes, a pesquisadora chegou a viajar o mundo: é pós-doutoranda na Universidade do Colorado, em Boulder (EUA). Bárbara é a única pessoa indígena selecionada pelo edital Atlânticas – Programa Beatriz Nascimento de Mulheres na Ciência.
Sobrenome “Borum-Krem”
Bárbara Flores Borum-Krem é de Belo Horizonte (MG), para onde sua família se mudou antes mesmo dela nascer com o pretexto de melhorar de vida. Mesmo na capital, ela foi criada num bairro diferente do asfalto e prédios altos: muito rural e comunitário. A infância foi preenchida com memórias de crianças subindo nos pés de fruta e com as curas do “benzedor” – “o pajé da rua”, ela traduz.
“Quando eu era criança, ainda era um bairro rural, que tinha muitas famílias indígenas que estavam nesse processo de sair dos seus territórios. Eu cresci numa comunidade com muita influência indígena tanto dentro quanto fora de casa.” Ali já existiam indícios de algo maior, mas a busca por entender suas raízes veio definitivamente na fase adulta.
Durante o mestrado e doutorado na Bahia, Bárbara fez trabalhos com o povo indígena Tupinambá, o que a fez refletir sobre sua própria comunidade. No entanto, a decisão veio com seu tio, que tinha um sonho que a família se reconectasse com sua raiz étnica.
Desde então, Bárbara é uma das pessoas de sua geração que chegaram ao nome de auto-identificação “Borum-Krem”, um dos clãs remanescentes do povo e tronco originário “Borum”, naturais de Minas Gerais. Bárbara é uma representante e pesquisadora afinca de seu povo, o qual ela destaca até mesmo como seu sobrenome.
Os Borum-Krem são originários da região que desenha o Alto Rio das Velhas, Alto Rio Doce e Alto Rio Paraopeba, abrangendo os municípios de Ouro Preto, Mariana, Itabirito e terras afins. Pela afinidade com os rios, Bárbara diz que seu povo se denomina como os “guardiões das minas de água”.
Ainda hoje, os ancestrais Borum e seus descendentes têm sido chamados pelo nome dado a eles pelos colonizadores portugueses: “Botocudos”, devido aos objetos circulares usados na boca por eles dependendo da posição social no grupo. Uma das críticas mais pertinentes
Bárbara explica que esse não é o único problema. Desde 1808, com a Guerra declarada por Dom João IV aos povos indígenas de Minas Gerais, os Borum sofrem apagamento de diversas maneiras. Movidos por isso, a geração de Bárbara busca preservar e impulsionar a raíz para não perder os saberes tradicionais.
“A gente começou a fazer esse trabalho de ressurgência e retomada da identidade de tudo aquilo que representa ser nativo daquelas terras”, ela diz.
Da pesquisa científica ao saber comunitário (e vice versa)
Hoje, Bárbara é reconhecida por estudar comunidades sustentáveis e protagonismo feminino através do método científico. Quando começou na área da pesquisa acadêmica, o pontapé veio de um interesse pessoal: “Eu sempre tive muita curiosidade nas relações com a terra e de como elas são construídas a partir de cada visão de mundo”, ela diz.
Não é incomum ouvir que o ser humano está determinado a destruir a natureza ao ser redor, provocando crises que parecem cada vez mais irreversíveis. No entanto, por experiência própria, Bárbara também via o oposto: certas comunidades, especialmente as de raízes indígenas, têm impactos positivos para a fauna e flora, mas que ainda são pouco quantificados. Isso dificulta mensurar o valor dessas comunidades para o seu território e a criação de futuras políticas públicas.
Por isso, a pesquisadora se aprofundou em examinar indicadores de sustentabilidade gerados por comunidades – principalmente indígenas – que tivessem uma relação harmoniosa com a terra. Nas suas palavras: “Eu tive esse intuito de pesquisar o diferencial de construção dessas relações de pessoas, trazendo a ideia de que o ser humano por si só não é uma praga para a natureza”.
“A luta indígena é uma luta coletiva para além do gênero mas, sim, a luta de gênero nos alcançou e a gente tem frentes também nesse sentido.”
Além disso, sempre existiu o interesse em direcionar o olhar para lideranças femininas nessas comunidades. Para unir todos esses fatores numa forma de estudo, a pesquisadora foi apresentada na faculdade ao “ecofeminismo”, que foi seu instrumento de análise e é atualmente uma de suas áreas de referência.
Sobre essa escolha, ela explica que “de certa forma, é o conceito junto ao feminismo comunitário – Corrente do feminismo derivada da luta das mulheres latinas, principalmente as indígenas, com foco anticolonial, antiliberal e despatriarcal – que melhor se alinha com a luta das indígenas mulheres, que é uma luta ancestral muito antes do gênero chegar.” Pessoalmente, Bárbara explica que nunca se declarou feminista, mas que isso não impede a associação entre lutas de diferentes causas.
Pesquisas inéditas
Engana-se quem pensa que os feitos acadêmicos de Bárbara servem somente ao mérito próprio. Retomando a reflexão da própria pesquisadora, a luta indígena não é feita somente de ganhos individuais, mas de uma movimentação contínua e coletiva.
Assim como Bárbara, outras pesquisadoras indígenas buscam protagonismo dentro do ensino superior, especialmente no que diz respeito aos seus povos. Longe do olhar colonizador e perto das raízes, elas fundaram o primeiro grupo de pesquisa (UNEB) ligado ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico) formado somente por indígenas mulheres pesquisadoras: o Movimento Plurinacional Wayrakuna, ou “filhas da ventania”.
Segundo Bárbara, que é uma das co-fundadoras e integrantes do movimento, Wayrakuna é uma rede cosmológica, artística e filosófica que reflete sobre a questão da luta das indígenas mulheres a partir de vários temas. Unindo prática e teoria, o grupo busca territórios originários para dialogar sobre esses temas. A troca é tanto política quanto acadêmica, pois traz também formações política para as lideranças da terra.
“A gente já tem isso estudos suficientes de que, através dos modos de vida, os povos indígenas têm não só mantido as florestas em pé, mas produzido florestas”
Recentemente, Bárbara foi a única mulher indígena aprovada no edital Atlânticas – Programa Beatriz Nascimento de Mulheres na Ciência, uma iniciativa federal para impulsionar as carreiras de mulheres indígenas, quilombolas, ciganas e negras em estágios acadêmicos fora do Brasil.
Em meio aos consecutivos cortes orçamentários e eterna crise de subvalorização das universidades, esse edital é uma jóia: uma parceria do Ministério de Igualdade Racial com a CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico).
Agora, Bárbara Flores Burm-Krem é doutoranda na Universidade do Colorado, em Boulder (EUA), e essencialmente pesquisa sobre “cascatas biológicas” causadas pela reterritorialização de povos indígenas nos seus territórios originários.
Do ponto de vista da Ecologia, “cascatas biológicas” são fenômenos de interferências no ambiente, o que causa impactos positivos ou negativos. Geralmente, esse conceito é aplicado a fauna e flora, mas Bárbara questionou se a aproximação de seres humanos – especificamente, sua etnia Borum-Krem – não poderia desencadear efeitos semelhantes.
“A gente já tem estudos suficientes de que, através dos seus modos de vida, os povos indígenas têm não só mantido as florestas em pé, mas produzido florestas”, ela diz.
Ela levou a pesquisa à frente no Instituto Serrapilheira, organização que financia projetos de ciência e de jornalismo científico no Brasil. Após a submissão e aprovação do trabalho no edital Atlânticas, os efeitos são gigantescos: novas ferramentas para alcançar cada vez melhores resultados e melhor atuação dentro dos territórios indígenas.
“Essa pesquisa está relacionada a toda a minha trajetória de luta ambiental em Minas Gerais, que é de onde eu venho, e também a minha luta junto ao meu povo de restauração, revitalização e de ressurgência da nossa etnia e também de levantamento de tudo aquilo da nossa memória que tem a ver com a nossa memória biocultural”
Representação indígena na COP30
“Todos estão vendo a necessidade e a importância de trazer pessoas indígenas para estar junto do debate, mas o sistema econômico ainda é muito, muito colonizador.”
No começo deste ano, a Ministra Sônia Guajajara, representante maior do Ministério dos Povos Indígenas, fez um pronunciamento dizendo que a participação dos originários na COP 30 é “a maior e melhor participação indígena na história dos acordos ambientais”.
O pronunciamento ocorreu às vésperas do Dia dos Povos Indígenas e, além de chamar atenção a nível nacional para as causas do grupo, reacendeu o debate acerca do posicionamento do Brasil enquanto sede do evento neste ano – segundo a imprensa do Governo Federal, esta edição da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30) vai acontecer em novembro deste ano em Belém (PA), na “capital da Floresta Amazônica”.
Para esta reportagem, Bárbara foi questionada sobre sua opinião acerca da representação de povos originários no centro do debate das mudanças climáticas, em especial na conferência da ONU deste ano. Ela reconhece os ganhos nesse sentido e diz que eles têm sido cada vez mais perceptíveis, mas o cenário geral ainda é de luta.
“Os povos indígenas ainda não são considerados cadeiras importantes para estar nesses espaços de decisão, apesar das terras indígenas representarem essa grande estratégia para lidar com todos os desafios climáticos e ecológicos que estão postos para as presentes e futuras gerações”
Neste ano, alguns dos principais temas da COP30 se voltam para a associação entre mercado, preservação e mudanças no cenário climático do Brasil e do restante do mundo. Um dos pontos levantados pela pesquisadora Borum-Krem é como ainda é imensurável o impacto da ação indígena sobre o ecossistema, o que dificulta a valorização dos povos em debates como esses.
“Na preparação para COP 30 e em várias outras conferências para essa esse momento, sabem da importância dos territórios, mas que não tem respostas para dizer, economicamente, o valor das vidas indígenas.”, ela diz.
Um dos estudos citados como exemplo por ela é a Nota Técnica publicada pelo Instituto Serapilheira, do qual ela é pesquisadora. Nele, foi pesquisado e comprovado que “As Terras Indígenas da Amazônia influenciam as chuvas que abastecem 80% da área das atividades agropecuárias no país”.
“Assim como o trabalho das mulheres na sociedade é considerado invisível, da mesma forma as comunidades indígenas têm seus trabalhos invisibilizados e não são contabilizados nessa economia para deixar a floresta em pé.”
No entanto, isso não afasta Bárbara Flores Borum-Krem de sua militância nem do propósito coletivo do qual ela faz parte. Em suas palavras: “Não é fácil a gente ocupar esses espaços. Sempre é à base de muita luta, mas aos pouquinhos os povos indígenas estão ocupando. Ninguém tá dando nada de graça, é por causa da resistência mesmo.”