
O argumento usado pelo presidente é o de que ela não tomou medidas adequadas para combater o antissemitismo. Além disso, exigiu que ela tomasse outras medidas drásticas, como mudar seus critérios de contratação de professores, de seleção de estudantes norte-americanos e estrangeiros, bem como determinar o estabelecimento de canais sigilosos de denúncias.
Nas palavras do presidente da universidade, o governo disse o que ensinar e como ensinar. Ele recusou-se a cumprir as determinações da Casa Branca. A situação se compara a de uma universidade católica proibida pelo governo de ensinar a Teoria da Evolução de Darwin.
A Universidade Harvard é privada e foi criada no Estado de Massachusetts em 1636, bem antes da própria criação dos Estados Unidos como país.
Ao longo dos quase 300 anos de existência, consagrou-se como uma das melhores universidades do mundo e berço da elite intelectual mais esclarecida do país, mesmo em períodos em que as liberdades civis estiveram ameaçadas.
A autonomia sempre foi assegurada pelo patrimônio que a universidade tem, que se origina de doações das famílias de alunos e ex-alunos, além de recursos federais direcionados para objetivos específicos, como a manutenção de seus sete hospitais.
O patrimônio da universidade hoje é de US$ 54 bilhões sob a forma de investimentos, cujos rendimentos cobrem parte dos seus custos anuais e complementam as elevadas anuidades pagas pelos estudantes.
No uso da autonomia, Harvard adotou critérios de admissão liberais e garantia de diversidade, abrindo caminho para o acesso de jovens talentosos que não teriam condições de pagar as vultosas mensalidades. O governo Trump é frontalmente contrário a tais políticas e defende medidas de admissão às universidades que na prática perpetuam o poder das elites estabelecidas, segundo muitos.
Universidades são parte vital de uma sociedade civil saudável e não podem ser reduzidas a um braço de governo. São instituições projetadas para sobreviver a administrações que se sucedem.
Tentativas de governos de ditar o conteúdo do que estas instituições pesquisam ou ensinam revelaram-se improdutivas e tiveram consequências nefastas ao avanço da ciência, tecnologia e inovação.
Além disso, são instituições de ciclo longo, que demandam autonomia e previsibilidade.
Programas científicos não podem ser desativados e reativados. Dissolver um programa ou laboratório, dispersar os pesquisadores e extinguir um grupo de investigação não é uma decisão que possa ser revertida facilmente. O conhecimento existente dispersa-se, os pesquisadores acabam em programas diferentes ou, potencialmente, abandonando a linha de pesquisa por completo. A continuidade é absolutamente fundamental para a obtenção de resultados científicos, avanços tecnológicos e adoção de inovações.
Isso é o que a experiência histórica mostra há mais de 800 anos, quando a autonomia da Universidade de Bologna, na Itália, foi reconhecida pelo imperador Francisco I do Sacro Império Romano. Na área das humanidades, a Universidade de Bologna sobreviveu aos anos negros da Idade Média. Passaram por ela alunos como Dante Alighieri, e a universidade abriu caminho para a Renascença no século 15. Na área tecnológica, só para citar um exemplo, a pesquisa científica permitiu em tempo recorde a produção de vacinas que venceram a covid-19, salvando milhões de vidas.
No Brasil, a autonomia das universidades públicas está inscrita na Constituição federal em seu artigo 207 de forma clara e assertiva: “Autonomia didático-científica, administrativa, financeira e patrimonial” e particularmente no Estado de São Paulo por decreto do governador Quércia, em 1988, garantindo uma transferência fixa do orçamento estadual às universidades públicas.
No caso dessas instituições, a autonomia não significa soberania e traz consigo enormes responsabilidades que começam com a escolha do reitor. O governador do Estado é quem escolhe os reitores em listas preparadas pelos colegiados internos das universidades. Mais do que isso, porém, é responsabilidade destes colegiados manter um nível elevado de ensino, pesquisa e de prestação de serviços à comunidade, evitando usar a autonomia para distribuir benefícios corporativos e envolver-se em disputas políticas que não são parte das suas atribuições.
A crise que a Universidade Harvard enfrenta agora mostra que dispositivos legais não bastam para encarar governos com visões extremadas e apenas os recursos patrimoniais próprios da universidade permitirão enfrentar as ameaças e ações do “governo de plantão”.
Para garantir que isso ocorra, seria apropriado, a nosso ver, que mesmo as universidades públicas do Estado de São Paulo criassem fundos patrimoniais vultosos, como garantia de autonomia, como fez recentemente a Universidade de São Paulo.
(Texto publicado originalmente no jornal “O Estado de S. Paulo”, em 2/5/2025)
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