
No quinto e último ato do Fausto II, palco da chamada “Tragédia do desenvolvimento”, o dramaturgo elabora uma complexa “fórmula ético-estética” para a destruição da natureza. Logo na primeira cena (“Região aberta”) nos é descortinado o pequeno espaço habitado pelo casal de anciãos Filemon e Baucis, última reserva de uma natureza primordial que vem sendo crescentemente estrangulada pela expansão do moderno império fáustico, sob comando do gerente de obras Mefistófeles. Pouco antes de massacrar Filemon e Baucis assim como um “Peregrino” (em quem Goethe se espelhou a si mesmo) que depois de muitos anos lhes faz uma visita de agradecimento, e de carbonizar os cadáveres e os atributos dessa pequena esfera ancestral, Mefisto justifica o crime iminente com a necessidade de avançar o projeto desenvolvimentista: “Que cerimônia, ora! e até quando? / Pois não estás colonizando?”
Quem, portanto, está promovendo o desenvolvimento, não pode nem deve ter escrúpulos diante de nada, seja uma extensão de natureza virgem, sejam vidas humanas economicamente improdutivas. Sucumbem assim ao projeto fáustico o casal de idosos junto com seu hóspede (“Mais cerimônia, então, não fiz, / Deles livramos-te num triz. / […] Um forasteiro, lá pousado, / E que lutar quis, foi prostrado”, dirá depois Mefistófeles) e os atributos desse pequeno “grumo indigesto” ao colonizador, como se exprime Antonio Candido em sua Formação da literatura brasileira, sobretudo um par de tílias, cujo aniquilamento a arte de Goethe eleva a símbolo das destruições que intuía no horizonte histórico europeu e mundial.
Se as fórmulas “ético-estéticas” de Goethe não possuem o teor abstrato que caracteriza as genuinamente matemáticas, o poeta foi capaz de conferir-lhes uma universalidade que as torna válidas para fenômenos que não lhe eram conhecidos ou que viriam a ocorrer após sua morte. Nessa chave, o poeta Paul Celan (1920-1970) vislumbrou nas cenas do quinto ato a prefiguração do genocídio perpetrado pelos nazistas cem anos após a morte de Goethe, como delineiam os versos do célebre poema Fuga sobre a morte (Todesfuge) que aludem a Mefistófeles (“mestre da morte”) e seus “mastins”.
Na perspectiva de Celan e outros grandes leitores da tragédia seria plenamente legítimo afirmar que o destino de Filemon e Baucis coube a vários milhões de pessoas ao longo do século 20. Mas o poeta octogenário construiu também nessas cenas uma fórmula ético-estética para a destruição da natureza, abrindo a seus futuros leitores a possibilidade de atualizá-la à luz de fenômenos e acontecimentos de seu respectivo tempo histórico. Pois a destruição de árvores e de toda a natureza da “região aberta” passou a reproduzir-se em escala mundial e ritmo acelerado nas décadas posteriores à sua morte, como ilustra hoje – um exemplo entre muitos – a ínfima porcentagem que resta da Mata Atlântica brasileira.
Altamente admirável na dramaturgia do velho “matemático ético-estético” é sua capacidade de, em poucos versos e rubricas cênicas, expor as mais profundas contradições da ideologia do desenvolvimento. Em seu último discurso, o colonizador centenário afirma em tom grandiloquente estar conquistando novos espaços ao oceano e a toda a região costeira para o progresso da humanidade: “Na vasta e sábia ação que os novos / Espaços doou ao bem dos povos”. Anuncia também o advento próximo de uma sociedade em que um povo livre haverá de trabalhar livremente numa terra livre: “Pisar em terra livre com povo livre”.
Mas, para alcançar esse objetivo, ele precisa eliminar o casal de idosos enraizado ancestralmente nessa terra – extraordinária fórmula ético-estética para os expurgos étnicos do século 20 – assim como, nas ordens que transmite ao capataz Mefistófeles (“Com rogo e mando, / Contrata obreiros às centenas, / Promete regalias plenas, / Paga, estimula, vai forçando!”), arregimentar imensos contingentes de operários que são enviados às frentes de trabalho para a mais brutal espoliação, como observado por Baucis durante as madrugadas: “Carne humana ao luar sangrava, / De ais ecoava a dor mortal,/ Fluía ao mar um mar de lava,/ De manhã era um canal”.
Onde encontrar, na literatura mundial, percepção tão aguda das contradições do desenvolvimento que se inicia com a Revolução Industrial, vivenciada por Goethe em statu nascendi? Onde encontrar semelhante desvendamento do mecanismo de racionalização que justifica em nome do progresso todos os sacrifícios impostos a seres humanos? Em vínculo inextricável apresenta-se nessas cenas a agressão às pessoas e à natureza, incluindo-se a vida animal, simbolizada pelo cervo e pelas aves que aparecem nos versos do vigia Linceu sobre um mundo anterior à grande intervenção tecnológica: “Contemplo distante / E próximo observo / O luar no levante, / O bosque, a ave e o cervo”.
Na sequência cênica da tragédia do desenvolvimento Goethe fez, portanto, da “região aberta”, habitada por Filemon e Baucis desde tempos imemoriais, o foco concentrado de desdobramentos históricos que a ciência relaciona hoje a mudanças climáticas em curso, elaborando fórmulas ético-estéticas passíveis de serem atualizadas em escala diminuta e na mais ampla, como a destruição da Mata Atlântica e de outros biomas brasileiros.
Como exemplo que atualiza em miniatura o acontecimento crucial no desfecho do Segundo Fausto – supressão da natureza primitiva em nome do progresso e do bem-estar dos seres humanos – oferece-se o insano desmatamento que, após a pandemia de covid, começou a processar-se intra muros no Instituto Butantan. A justificativa para a eliminação dessa pequena floresta reveste-se, como nas devastações promovidas por Fausto “para o bem dos povos”, de alto significado social: a fabricação de vacinas, que em si qualquer pessoa de bom senso irá saudar incondicionalmente. Mas para isso não se impunha, de modo imperioso, suprimir uma das poucas reservas de Mata Atlântica na cidade de São Paulo, assim como não era incontornável para Fausto eliminar pela raiz a pequena esfera de Filemon e Baucis. Uma postura respeitosa para com os milhares de moradores, inclusive animais, do entorno imediato recomendaria a instalação de novos biotérios e fábricas de vacinas numa área distante de qualquer zona residencial, ampla o suficiente para permitir expansões no futuro.
Em vez disso, milhares de pessoas que vivem nas proximidades da antiga mata do Instituto Butantan, “patrimônio histórico do Estado de S. Paulo”, estão submetidos atualmente à tortura inaudita de um barulho permanente, 24 horas por dia, que vem de exaustores, geradores, condensadores de ar-condicionado e outras fontes que para o leigo é difícil identificar com precisão. Distúrbios de audição, insônia (mas como conciliar o sono sob ruído ininterrupto de máquinas?), estresse, crise de ansiedade e de hipertensão são a consequência natural dessa situação escabrosa.
Produção de vacina ou preservação dessa mata mostra-se como dilema inteiramente falso! E é absolutamente estarrecedor que a Fundação Butantan – cujo projeto engloba também a construção de um grande restaurante com seu correspondente estacionamento – tenha conseguido junto aos órgãos competentes autorização para promover tais devastações no coração de uma zona residencial!
Milhares de animais perderam seu habitat e foram massacrados, sobretudo filhotes que não puderam fugir quando, poucas horas antes do início do primeiro grande abate de árvores (sete mil!), a área condenada – onde hoje se ergue imenso biotério com toda sua ruidosa parafernália – foi bombardeada com um produto químico que provocou a mais impressionante revoada, tal como pude observar com os próprios olhos: uma cena “dantesca”, sentimo-nos inclinados a dizer. Desde então o número de gambás e outros animais, inclusive répteis e anfíbios, que aparecem atropelados nas ruas próximas cresceu exponencialmente.
Já em anos passados houve uma tentativa no Instituto, então sob a direção de Isaias Raw, de dizimar uma extensão da mata para abrir espaço a cocheiras que abrigariam os cavalos da Fazenda São Joaquim (região de Sorocaba), usados na produção de soros. A intenção era minimizar custos. Houve resistência e, felizmente, a insanidade planejada não prosperou. (Mesmo assim, realizou-se naquela gestão o assoreamento de uma lagoa que havia no meio da mata…) Desgraçadamente, porém, durante a recente pandemia, com João Doria no governo do Estado e Dimas Covas na diretoria do Instituto, logrou-se por fim passar a fatídica “boiada”, na célebre expressão do antigo ministro do Meio Ambiente. A visão de uma mata virgem, ainda não arroteada economicamente, é sempre um espinho aos olhos de tecnocratas, como as tílias da “região aberta” para os olhos de Fausto: “Aflige a mente, aflige o olhar”.
No século 18 entrou na língua de Goethe, a partir do japonês bōzu (monge ou sacerdote budista) e do português bonzo (que aparece no título de um conto machadiano), a palavra Bonze, que hoje designa em segunda acepção um funcionário com grande poder econômico e político, mas que pouco se importa com a realidade do cidadão comum. O descaso dos “bonzos” da Fundação e do Instituto Butantan, também da secretaria de Saúde, com os moradores do entorno (a poucos metros dos biotérios e fábricas construídos e planejados) escarnece de qualquer descrição e é mais próprio de regimes autoritários, para os quais o ser humano nada significa.
No futuro, quando não houver mais vegetação significativa no Instituto fundado no início do século 20 por Vital Brasil, e a degradação do meio ambiente em São Paulo tiver transformado o ar em valiosa commodity, a Fundação Butantan poderá diversificar seus negócios e incrementar os lucros construindo fábricas de máscaras respiratórias. As devastações que se processam atualmente no interior desse Instituto de tão respeitável passado abrem nova perspectiva para atualizar o que ocorre a Filemon e Baucis assim como às tílias e toda a natureza primordial da “região aberta”, foco concentrado da advertência que o octogenário Goethe legou à posteridade.
Para concluir, valeria lembrar uma passagem do ensaio Lendo o Segundo Fausto, em que Alfredo Bosi se debruça em perspectiva ecológica sobre esse clássico de assombrosa atualidade: “Transcorridos dois séculos da concepção do drama goethiano, olhamos em torno de nós e, em meio ao que restou da natureza depois das investidas da revolução industrial, sentimos que é necessário lutar contra as mesmas forças que arrasaram a casa de Filemon e Baucis e queimaram as suas velhas tílias”. Um importante capítulo da luta a que Alfredo Bosi nos conclama se passa hoje entre os muros do Instituto Butantan.
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Nota
A Assessoria de Comunicação do Instituto Butantan, em nota enviada ao Jornal da USP nesta segunda, 12 de maio, esclarece que:
O remanejamento arbóreo consiste em um estruturado projeto de longo prazo, cujos impactos ocorrerão no decorrer de 20 anos, sempre com compensações antecipadas e com resultado final positivo para o ecossistema. Esses projetos estão contemplados no Plano Diretor do complexo.
Ao longo de duas décadas, o projeto prevê o manejo arbóreo que inclui o plantio de mais de nove mil novas árvores de espécies nativas dentro da própria área do Butantan, superando, portanto, em quantidade e também em qualidade ambiental as árvores que eventualmente serão suprimidas.
– Está previsto, sempre, o plantio, dentro da área do Butantan, de árvores em número superior ao que será eventualmente retirado em qualquer uma das etapas. Ou seja, ao final, o Butantan terá maior quantidade de árvores do que possui hoje;
– Aproximadamente 60% das árvores que serão suprimidas são de espécies invasoras. Tais espécies levam à destruição da mata atlântica nativa, degradando a vegetação original, com perda de diversidade e afastando a fauna. Desta forma, essa compensação visa enriquecer o ecossistema nativo, pois todas as espécies de árvores invasoras retiradas serão substituídas por espécies nativas;
– O Instituto Butantan tem papel central na produção de vacinas, soros e na pesquisa científica no cenário nacional. Os projetos visam fortalecer a infraestrutura para que o Butantan possa ampliar sua produção de vacinas, soros e medicamentos e seus centros de pesquisa, para que possa seguir contribuindo com a saúde da população brasileira. Entre os projetos, estão a ampliação da capacidade produtiva de soros, melhoria de produção da vacina da influenza, estabelecimento de produção local das vacinas de HPV, raiva, hepatites virais, DTPa, além das novas vacinas de dengue e chikungunya. Ademais, contempla a produção de anticorpos contra doenças inflamatórias e câncer, como também desenvolve nova plataforma de terapia celular (CAR-T) para tratamento de leucemia e linfoma refratários.
– O Instituto Butantan tem compromisso, desde sua inauguração em 1901, com estudos de ecologia e evolução. Não só é uma referência na preservação ambiental, inclusive com pesquisas para preservação de animais em extinção, como abre seu campus a mais de meio milhão de visitações por ano. Hoje é recebedor de vários prêmios na difusão do conhecimento científico para a população, principalmente de jovens.
Por fim, o Instituto Butantan reitera que todo e qualquer manejo arbóreo realizado em suas dependências ocorre apenas após emissão das devidas licenças e autorizações legais dos órgãos competentes e em conformidade com a legislação vigente.