
Por Thiago Galdino
A história oficial local sempre tratou a ancestralidade dos povos negros e indígenas com silêncios forçados, omissões e distorções. Em contraponto a esse processo, o documentário Ancestrais lança um olhar sensível e urgente sobre a força da memória coletiva enquanto ferramenta de resistência.
Com direção assinada pelos jornalistas e pesquisadores Izaíra Thalita e Esdras Marchezan, o filme dá voz a personalidades indígenas e negras potiguares, provocando o público a refletir: como resistimos ao apagamento histórico em um país que insiste em calar suas origens?
A partir de depoimentos e vivências, o documentário se propõe a reconstruir fragmentos dessas trajetórias, criando pontes entre passado, presente e futuro. Ancestrais é uma realização da Íntegra Comunicação em parceria com o HiperLAB/UERN e foi produzido com recursos da Lei Paulo Gustavo, operacionalizado pela Prefeitura Municipal de Mossoró.
Ancestrais traz depoimentos de personalidades indígenas e negras potiguares. Como foi o processo de curadoria dessas vozes e histórias que compõem o documentário?
Izaíra Thalita: Quando submetemos a proposta em 2023, a principal pergunta que surgiu na época era: Onde estão os descendentes de indígenas e de pessoas negras que foram escravizadas em Mossoró, tendo em vista que Mossoró possui nome indígena e que há registros de que eles habitaram as margens do Rio-Apodi-Mossoró, e também, tendo em vista que Mossoró se coloca na história como uma das cidades pioneiras da Abolição dos Escravos no Brasil? A memória é a guardiã da nossa identidade, pois preserva os saberes que vão construir quem nós somos no presente. Houve um apagamento enorme das populações indígenas, inclusive aqui, e das pessoas negras escravizadas não há, nem no Museu que fala da Abolição em Mossoró, sequer o nome deles. Sabemos que, nos últimos anos, vem havendo um trabalho de luta e resistência da identidade indígena, especialmente entre os jovens, e mais oportunidades para que negros e negras possam manifestar sua identidade e cultura. Porém, identificar essas vozes foi um processo de pesquisa. Listamos alguns nomes, sentamos com a equipe para pensarmos nas pessoas que poderiam nos falar sobre o presente, pensando na sua ancestralidade, e percebemos também que a universidade seria um excelente ponto de partida, através das atividades que ali são realizadas, trazendo esses sujeitos para falar sobre as questões étnico-raciais. Percebemos, ao sair em campo, que é subliminar o silêncio e o apagamento de tantos que têm no sangue essa ancestralidade indígena e negra, mas que não querem falar.
O filme propõe uma reflexão sobre como as histórias dos povos indígenas e do povo negro resistem ao apagamento histórico. Qual foi o maior desafio ao traduzir essa resistência em linguagem audiovisual?
Izaíra Thalita: Creio que encontrar em cada depoimento o que há de comum entre as histórias que nos foram contadas. Creio que conseguimos esses elos.
Esdras Marchezan: É uma responsabilidade muito grande ouvir alguém, principalmente quando estamos falando de um tema como a ancestralidade e seus reflexos na vida das pessoas hoje. Acho que o maior desafio foi finalizar o filme de uma forma que respeite as visões de mundo de cada entrevistado e que possa contribuir com o combate a todo e qualquer tipo de intolerância contra as pessoas negras e indígenas.
Vocês já haviam trabalhado juntos no curta documental Longe de Casa. O que mudou de lá para cá em termos de parceria criativa e amadurecimento artístico?
Izaíra Thalita: Mudou tudo, a gente mudou depois do Longe de Casa. Primeiro que Esdras é um parceiro de trabalhos e um amigo inquieto quando se trata de jornalismo, reportagens e eu aprendo sempre nessa convivência com ele. Segundo, que o impacto e alcance que Longe de Casa teve, mesmo sendo feito com poucos recursos, nos mostrou que se tivéssemos um pouco mais, conseguiríamos melhores resultados. É o que considero que fizemos nesse documentário, Ancestrais. Além disso, nesse percurso, fomos ver mais documentários, participamos de festivais, entendemos que além de produção audiovisual, nosso propósito em comum é também de contribuir com a Educação, entregando um material que seja utilizado para conversas entre professores e estudantes.
Esdras Marchezan: Minha parceria com Izaíra vem de longe, do tempo que éramos repórteres no Jornal De Fato. Gosto muito da parceria com Iza. Aprendo sempre com ela. E ela tem um trabalho de pesquisa muito interessante com a temática indígena, além de um trabalho muito respeitoso sobre isso. Longe de Casa nos juntou, no documentário, e seguimos aprendendo deste mundo novo, para nós, do audiovisual.

Esdras, sua trajetória como jornalista e educador se entrelaça com projetos de extensão e narrativas do Semiárido. De que forma sua experiência no HiperLAB e no Cine Árido influenciou a construção de Ancestrais?
Esdras Marchezan: Em 2013, pouco depois de assumir o cargo de professor, no curso de Jornalismo da UERN, criei com colegas um projeto chamado Repórter de Rua, que nasceu do desejo de continuar produzindo reportagem, mas experimentando novos tipos de narrativas. As reportagens eram hipermídia e com forte perfil documental. Daí comecei a me interessar mais pelo documentário e estudar sobre o tema. Fui conhecendo a turma do audiovisual, festivais como o Curta Caicó, e percebi que poderia contribuir neste mundo contando histórias por meio deste tipo de linguagem. Daí surgem projetos como o Laboratório de Narrativas Hipermídia (HiperLAB/UERN) e o Vozes do Semiárido, com o objetivo de contar histórias desta região em multiplataformas. Sempre procuro envolver estudantes nos projetos que participo. Acho que essa interação é muito rica, e todo mundo aprende.
Izaíra, sua atuação como jornalista e pesquisadora/etnóloga indígena certamente trouxe uma perspectiva fundamental para o filme. Como sua experiência acadêmica e profissional influenciou a abordagem narrativa e estética de Ancestrais?
Izaíra Thalita: A ideia de Ancestrais nasceu de um desejo muito particular e de busca pela minha própria ancestralidade. Mas, no campo profissional, enquanto jornalista e pesquisadora, meu percurso com a temática indígena se deu a partir da pesquisa de mestrado concluída em 2014, sobre ciberativismo indígena. Foi por causa do ciberativismo indígena que percebi que muitos estavam reivindicando o reconhecimento de seus povos, reconhecimento ao território ancestral, inclusive no RN, associado a um longo período de apagamento desses povos. Então, sabíamos que queríamos dar esse espaço para que os sujeitos pudessem falar sobre suas histórias, contadas antes por suas mães, pais, avós, tios e não partindo da visão do que os outros dizem sobre eles nos livros, mas de sua memória familiar, pessoal. Já a estética mostra indígenas e negros, demarcando seus territórios – sejam territórios geográficos (como a lagoa do Apodi, os Museus, as lutas pela demarcação), sejam territórios simbólicos (no sagrado toré, nos terreiros de umbanda) – são percebidas no filme com muito respeito e beleza.
O documentário discute ancestralidade como resistência e projeção de futuro. Como vocês percebem a recepção dessa temática entre os públicos jovens, especialmente em ambientes urbanos?
Izaíra Thalita: Ainda há quem se surpreenda em ver que os povos indígenas resistem, pois ainda é forte uma visão equivocada de que para ser indígena é preciso viver isolado, em meio à natureza e que aqueles que estão nas cidades, não seriam indígenas. O antropólogo João Pacheco de Oliveira, em um dos seus trabalhos como pesquisador, constatou que esse pensamento foi muito utilizado pelo estado brasileiro, por muitas décadas, para tomar os territórios ancestrais, expulsar populações indígenas de suas terras, alegando que na região nordeste “os índios são misturados” devido às relações interétnicas em áreas de colonização muito antigas, portanto, para aqueles que buscavam expulsar e expropriar, não haveriam indígenas, ou “menos indígenas”. Então, eu creio que o público verá através do filme, outros jovens indígenas, verá outros jovens negros e negras reafirmando sua cultura e religiosidade com força, será importante para a quebra de estereótipos e preconceitos.
Esdras Marchezan: Acho que o documentário vai ter uma boa recepção entre os jovens. Percebo uma abertura maior deste público para descobrir novos valores e histórias, desmistificando algumas imagens que foram sendo construídas ao longo do tempo.
A produção foi viabilizada com recursos da Lei Paulo Gustavo. Quais estratégias vocês adotaram para garantir que o resultado final refletisse o cuidado e a urgência que o tema exige, mesmo dentro dos limites orçamentários e, talvez, logísticos?
Izaíra Thalita: A primeira estratégia foi contar com uma equipe de excelentes e experientes profissionais em Mossoró, comprometidos com as datas e prazos estabelecidos no projeto, garantindo assim a qualidade do que iríamos entregar adiante. Além disso, há cronogramas contendo o tempo de cada etapa e a execução de cada item do planejamento. Na produção executiva eu aprendi, inclusive com outros produtores, que o trabalho de produção é antes, durante e depois do filme. É uma das etapas mais longas de todo o processo e cada fase precisa estar bem ajustada. Mas o fato dessa temática ser urgente, porque são vozes que não possuem espaços nas mídias, também nos motivou muito para a entrega do resultado que conseguimos — apesar dos eventuais percalços ao longo do processo, que são normais de acontecer também.
A trilha sonora, o design sonoro e a fotografia têm um papel sensível em Ancestrais. Como se deu a colaboração com a equipe técnica, e que elementos vocês consideram fundamentais na construção sensorial do filme?
Izaíra Thalita: O trabalho de design sonoro e trilha acompanhei de perto e me emocionei muito na construção. Ficou a cargo do experiente produtor de áudio Gilliano Midson (Gilboy), que tem essa sensibilidade e entendeu, desde o início, quais instrumentos também contam essa história ancestral. Nas pesquisas, os instrumentos de percussão e cordas tinham de estar presentes e, em conjunto com o musicista Adeirton Pinheiro, eles chegaram a uma bela trilha autoral, que nos enche de emoção, nessa união de som e imagem. Esdras pode falar mais sobre a fotografia.
Esdras Marchezan: Queríamos trabalhar com alguém que tivesse a sensibilidade necessária para contar essa história como pensávamos. Assim, encontramos em Evelyn essa pessoa. Uma profissional em ascensão, na direção de fotografia e também na direção de filmes pelo Brasil. A sensibilidade e o profissionalismo dela são essenciais para o resultado final.


A estreia acontecerá às vésperas do Dia dos Povos Indígenas. O que representa para vocês lançar o documentário nesse contexto simbólico e político?
Izaíra Thalita: Muito importante! O dia 19 de abril deixou de ser mais uma data lembrada recreativamente nas escolas, para ser um dos mais importantes dias de luta dos povos indígenas, na reivindicação por seus direitos. Poder entregar ao mundo este documentário é também somar-nos a eles nessa luta, que é ancestral e, portanto, é nossa também.
Esdras Marchezan: É também uma forma de recado, para dizer que os povos indígenas não estão sós. Há muita gente ao lado deles, assim como na luta do povo negro, e, humildemente, nos colocamos juntos na tentativa de contribuir por meio de nossos filmes.
Por fim, o que vocês esperam que o público leve consigo ao sair da sessão de Ancestrais? Existe alguma resposta que o próprio processo de filmagem trouxe para vocês que não esperavam encontrar?
Izaíra Thalita: Minha avó, Áurea (Dona Neném), era uma mulher rezadeira católica de muita fé, que curava com plantas, e minha bisavó, mãe dela, Dona Anália, conhecida como ‘Mãezinha’, era uma mãe de santo de terreiro de umbanda, filha de Xangô, na cidade de Areia Branca (RN), no início do século XX. Ao falar nelas, lembro daquela frase popular bem comum: “Quem não sabe de onde veio, não sabe para onde vai”. Pois bem, foi um encontro comigo, com elas. Me emocionei com os depoimentos. E eu tenho a expectativa de que todos possamos nos reconhecer no filme — nossas histórias de família, as histórias e segredos, o que trazemos deles em nós no presente —, que cada um possa ver que só teremos futuro se dermos o devido reconhecimento às memórias do passado, de quem veio antes, e que elas sejam heranças repassadas por nós para quem vier depois de nós.
Esdras Marchezan: Uma experiência especial para mim foi filmar a gira no terreiro, com Tony Silva. Tony é uma pessoa que admiro demais e tenho extremo carinho por ela. A considero uma de nossas maiores atrizes do teatro. E conheço Tony da época da minha infância/adolescência, mas de outra perspectiva. Filho de família evangélica, sempre via Tony passando na rua da minha casa, indo ao terreiro, e as pessoas sussurrando, a chamando de macumbeira. Cresci como tantas pessoas, tendo uma visão deturpada sobre as religiões de matrizes africanas.
Poder desconstruir isso, filmando em um terreiro, e poder trazer isso para públicos diversos, buscando uma mensagem de tolerância e respeito, foi muito especial para mim. Agradeço a confiança de cada pessoa que nos confiou suas histórias. Espero que Ancestrais construa uma longa e bonita jornada.

Serviço:
Data: 17 de abril de 2025
Horário: 19h
Local: Auditório Dorian Jorge Freire, Estação das Artes Elizeu Ventania, Mossoró/RN
Entrada: Gratuita