Hugo Motta se inspira em Ulysses Guimarães para parear Congresso com Presidência da República – Jornal da USP

Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

Para quem não lembra, Ulysses Guimarães foi tri-presidente. Nenhum desses títulos foi relativo à Presidência da República, mas, simultaneamente em 1986, ao comando da Assembleia Constituinte em 1986, ao da Câmara dos Deputados e ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro, o MDB que por exigência da ditadura militar virou PMDB, forçado a colocar o P diante da sigla que o consagrou na época. Todos no mesmo período em que o Brasil se desfazia da ditadura militar que sufocou a democracia durante 20 anos, a partir de março de 1964.

Constituinte, presidência natural

A presidência da Assembleia Constituinte foi função natural para um deputado que se notabilizou pelo combate à ditadura militar, mas, em função das circunstâncias políticas da época foi ultrapassado na disputa pela Presidência da República pelo oposicionista moderado Tancredo Neves, então governador de Minas Gerais – escolhido por eleições indiretas para a Presidência, já que o projeto de reestabelecimento das eleições diretas fora bloqueado pelas forças conservadoras, majoritárias no Congresso Nacional.

Quis o destino que Tancredo Neves não resistisse a uma diverticulite antes de tomar posse em março de 1985. E o vice-presidente José Sarney – que às vésperas do pleito havia deixado a presidência do partido da ditadura, o Partido Democrático Social (PDS), ajudando a compor a maioria legislativa necessária para eleger Tancredo –, como eu dizia, assumiu como Presidente da República. Dentro desse quadro, tornou-se natural, de certa forma obrigatório, que Ulysses Guimarães, o principal comandante da oposição ao governo militar, se tornasse o presidente da Assembleia Constituinte, cujo objetivo era criar o arcabouço constitucional para o novo regime democrático que se inaugurava. O qual, por ironia do destino, tinha como presidente um político oriundo do regime anterior, ditatorial.

Executivo e legislativo

Pois bem, um ano depois, após duras e disputadas discussões entre constituintes que perfilavam da direita, ao centro e à esquerda, com maioria das duas primeiras tendências, nasceu o novo diploma constitucional brasileiro. E, na cerimônia de seu lançamento, Ulysses proclamou, nas suas palavras às vezes tortuosas: “Se a democracia é o governo da lei não só ao elaborá-la, mas também para cumpri-la, são governo o Executivo e o Legislativo”.

Trocando em miúdos, explicitava, com essa frase, que o Legislativo ia dividir o poder com o presidente Sarney, que, vindo da ditadura, eleito na condição de vice-presidente, herdara a função que a morte impedira o oposicionista moderado, Tancredo Neves, de exercer. Eram outros tempos, em que Nova República, assim alcunhada por Tancredo, ainda ensaiava os passos iniciais para a reconstrução de um regime democrático no país. E Ulysses queria manter a iniciativa dessa reconstrução principalmente nas mãos dos que haviam batalhado pela volta da democracia ao país. Por isso, julgava importante restringir os graus de liberdade da presidência de Sarney.

Pois bem, o tempo passou, houve momentos em que prevaleceu na política o “presidencialismo de coalização” em que o Executivo tinha maioria no parlamento – que no governo de Fernando Henrique Cardoso possibilitou o até hoje longevo Plano Real. Tal “presidencialismo de coalizão” atravessou razoavelmente os dois primeiros governos Lula, começou a naufragar no segundo mandato de Dilma Roussef e afundou de vez na gestão de Jair Bolsonaro, que não demonstrou aptidão para exercer o exigente e multifacetado dia a dia do comando do Executivo.

Avançando no vácuo

Foi nesse vácuo que as duas casas do poder Legislativo, principalmente a Câmara dos Deputados, comandada até recentemente por Arthur Lira, avançaram na distribuição dos recursos de emendas parlamentares anônimas, direcionando fatias do orçamento público, que apresentam pouca transparência e rastreabilidade, tornando impossível a identificação dos deputados e senadores por elas responsáveis. A questão cresceu, gerou controvérsias públicas, e, em função disso, os três poderes procuraram construir um entendimento sobre o tema, que ainda se encontra sob observação no Supremo Tribunal Federal, sob o juízo do ministro Flávio Dino. É uma questão não totalmente pacificada – que promete desdobramentos.

O fim do presidencialismo absoluto?

Um deles ficou explicitado no discurso de posse do novo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, apadrinhado do que deixou o cargo, Arthur Lira, que lembrou extensamente Ulysses Guimarães, dando destaque a trechos do discurso do então comandante da Constituinte na data de promulgação daquele diploma legal. Repito um trecho da fala de Ulysses Guimarães, que já citei acima: “Se a democracia é o governo da lei não só ao elaborá-la, mas também para cumpri-la, são governo o Executivo e o Legislativo”. E Uysses continuou: “O Legislativo brasileiro investiu-se das competências dos parlamentos contemporâneos”. A interpretação de Motta a esse trecho, segundo seu discurso de posse: “Ele (Ulysses) afirmava que o presidencialismo absoluto deixava de existir com a nova Constituição. Isso já em 1988”.

Qual o objetivo de Hugo Motta ao fazer essa análise histórica em seu discurso de posse? Uma interpretação possível: o desejo de Motta, a exemplo de seu antecessor Lyra, de manter o executivo de Lula sob pressão, preservando o espaço para manter a distribuição das emendas parlamentares que tanto agradam os seus comandados na Câmara, respeitados, espera-se, os limites estabelecidos pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal.

PS: Fui assessor de imprensa de Ulysses Guimarães durante a Campanha das Diretas

_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)

Por jornal.usp

Deixe comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos necessários são marcados com *.