
A dignidade corajosa de Alan Garder, reitor da Universidade de Havard, resgata a dignidade igualmente corajosa de Hélio Lourenço, reitor da Universidade de São Paulo, em tempos de ditadura.
O respeitado brasileiro, Hélio Lourenço, lutou pela autonomia da Universidade de São Paulo, defendeu professores e alunos da macabra perseguição política. Foi cassado, calado pelo governo militar brasileiro, em 1969.
Em momento crítico da história mundial, a memória instiga reflexões sobre o papel das universidades, das instituições internacionais, da educação voltada para o conhecimento e para a ética. A dimensão do desafio sugere união de esforços, busca conjunta de alternativas para sobrevivência da autonomia das universidades dentro e fora das fronteiras nacionais.
Histórias pontuais no interior de diferentes Estados nacionais sugerem alternativas para o enfrentamento dos desafios contemporâneos. O reitor Hélio Lourenço lutou pela liberdade de pensamento dentro e fora da USP, evitou a perseguição assassina de professores e alunos e manteve continuidade em seus trabalhos graças a instituições internacionais. Elas foram espaços responsáveis pela manutenção do diálogo e do pensamento crítico, vivo e atuante no combate à fome, com gotas de humanidade espalhadas pelo mundo por instituições internacionais.
Observem a trajetória do professor Hélio depois de sua cassação.
O professor foi chamado para organizar instituições universitárias na Síria e, como conselheiro da Organização Mundial da Saúde, no setor de ensino médico sediado em Alexandria, no Egito, trabalhou na região do Mediterrâneo Oriental (Oriente Médio e países do nordeste da África). Como consultor da OMS foi encarregado do ensino de nutrição em escolas médicas do Oriente Médio.
As universidades devem estar atentas, unidas neste momento de reconstrução de uma nova ordem internacional. Esforços em conjunto permitem a construção de importantes estratégias para salvaguardar o conhecimento produzido pela humanidade.
Em nome da memória e da história reproduzo em detalhes um pedaço da história brasileira, a partir da USP. História recheada de detalhes, merece ser lida e conhecida pelos jovens professores universitários da atualidade.
Para relembrar os fatos ocorridos, retomo a manifestação da Comissão da Verdade da USP em ato de reparação e justiça. A Comissão da Verdade da USP, valorizando as condutas do reitor, aconselhou a recolocação do quadro do professor Hélio Lourenço na galeria dos reitores da Universidade de São Paulo.
O texto abaixo foi lido durante o evento realizado na USP, em 25 de setembro de 2017.
O professor Hélio Lourenço de Oliveira foi eleito vice-reitor da USP em 13 de outubro de 1968 durante o mandato do reitor professor Luís Antônio da Gama e Silva, afastado do cargo em razão de sua nomeação para o cargo de Ministro da Justiça.
Em 29 de abril de 1969 o professor Hélio Lourenço de Oliveira foi cassado no exercício do cargo de reitor em exercício pelo Ato Institucional no. 5, redigido pelo ministro e reitor Luís Antônio da Gama e Silva, que durante quase quatro anos conservou o cargo de reitor, apesar de exercer em Brasília as funções ministeriais. (Gama e Silva preferiu por meio de uma manobra administrativa impedir que o professor Hélio, de fato reitor da USP, atuasse na direção da Universidade de São Paulo com o título de vice-reitor.)
Convém frisar que a função exercida pelo reitor em exercício – professor Hélio Lourenço – só foi interrompida mediante a utilização de um instrumento aprovado por um regime de exceção, ou seja, o Ato Institucional n. 5. O professor Hélio Loureço foi sucedido, após sua cassação, pelo professor Alfredo Buzaid, também defensor do regime ditatorial.
Embora não tenha ocupado como titular o cargo de reitor da Universidade de São Paulo, o professor Hélio Lourenço de Oliveira merece figurar entre os detentores dessa dignidade tanto como uma forma de desagravo, por ter sido aposentado compulsoriamente com base em ato baixado durante o regime de arbítrio que assolou o país, quanto pelas circunstâncias que envolveram sua eleição pelo Conselho Universitário, por seu papel de liderança na construção de um projeto de reforma universitária pautado, sobretudo, pelas diretrizes de autonomia e integração das diversas áreas de conhecimento, e, finalmente, pelo valor pessoal com que resistiu às pressões pelo cerceamento das liberdades democráticas no seio de nossa universidade.
A eleição pelo Conselho Universitário
Não é demais afirmar que, dadas as circunstâncias históricas da época, a investidura do professor Hélio de Oliveira no cargo de vice-reitor da Universidade teve tanta significação quanto a eleição de reitor na Universidade de São Paulo. Acresce notar que, licenciado de 15/03/1967 a 30/10/1969 para exercer o cargo de ministro da Justiça, o professor Luís Antônio da Gama e Silva esteve afastado durante quase todo o seu segundo mandato, iniciado em 7 de julho de 1966. Assim, os vice-reitores tornaram-se, de facto, os responsáveis pelo comando da Universidade.
Isso ficou patente na famosa “batalha da Maria Antônia”, episódio ocorrido em 3 de outubro de 1968, quando um grupo paramilitar, composto sobretudo por estudantes da Universidade Presbiteriana Mackenzie, auxiliado por forças policiais, invadiu o prédio da Faculdade de Filosofia, localizado naquela rua, o que, afora a depredação das instalações, culminou na morte de um estudante secundarista.
Nessa ocasião, o então vice-reitor professor Mário Guimarães Ferri foi instado pelo governador de São Paulo, Roberto Costa de Abreu Sodré, a solicitar, em ofício a ser dirigido ao governo do Estado, que invadisse o prédio ocupado pelos estudantes. Antevendo a enorme responsabilidade que esse pedido acarretaria, o professor Ferri disse não ao governador, demitindo-se da diretoria da Faculdade. Com isso deixaria também de ser membro do Conselho Universitário e, consequentemente, vice-reitor da USP.
Entretanto, a retomada do prédio da Rua Maria Antônia por forças estaduais tampouco estava nos planos do governador de São Paulo. A ordem viera do Rio de Janeiro, onde ainda estava sediado o Ministério da Justiça, e mais especificamente do próprio ministro, o professor Luís Antônio da Gama e Silva. Este teria ameaçado Abreu Sodré com uma intervenção federal em São Paulo caso não se tomassem providências imediatas, o que provocou um clima de indisposição entre as duas autoridades, acabando por abrir espaço para o surgimento de uma liderança não alinhada com as diretrizes do Ministério da Educação, dentro da USP.
Imediatamente após a saída do professor Mário Guimarães Ferri do cargo de vice-reitor, o Conselho Universitário aprovou lista tríplice encabeçada pelo professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Hélio Lourenço de Oliveira. Como disse o jornal “Correio da Manhã” de 15 de abril de 1967, “causou certo suspense nos meios militares de São Paulo a inclusão do nome do sr. Hélio Lourenço de Oliveira na lista tríplice da qual sairá o novo vice-reitor da Universidade de São Paulo”. O professor Hélio Lourenço era, então, docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Depois de graduar-se pela FMRP-USP, em 1940, passara cerca de dois anos nos Estados Unidos, estagiando na Escola Médica de Nova Iorque como bolsista do Pan-American Sanitary Bureau. Como consequência de sua nomeação como professor catedrático, em 31 de julho de 1963, o especialista em nefrologia passou a ocupar uma cadeira no Conselho Universitário.
Nos meios militares, afirmava-se genericamente que o professor Hélio Lourenço tinha um “passado subversivo”. Porém, a preferência do Conselho Universitário por seu nome deveu-se às suas convicções democráticas, à sua reputação pessoal e à sua atitude aguerrida atitude em defesa da liberdade universitária. Veja-se, a respeito, as palavras do ilustre professor Eduardo Krieger:
“A eleição do prof. Hélio Lourenço para a lista tríplice de vice-reitor ocorreu de forma súbita pela renúncia do professor Mário Ferri, quando ele [Hélio Lourenço] estava ausente, participando de congresso longe de São Paulo. A escolha feita pela maioria do Conselho Universitário era muito natural e refletia o alto conceito granjeado pelo professor Hélio Lourenço, antes e durante a discussão da Reforma Universitária, como representante da Congregação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto”.
A combinação desses três fatores: o atrito entre o governador Abreu Sodré e o ministro Gama e Silva, no plano externo, e a renúncia súbita de Ferri aliada ao bom conceito de que gozava o professor Hélio Lourenço junto a seus pares, no plano interno à Universidade, geraram a atmosfera favorável para que uma figura não alinhada com o projeto de reforma universitária dos dirigentes do regime chegasse, de facto, ao posto de reitor da maior universidade do país.
Hélio Lourenço e a reforma universitária
Nomeado pelo governador imediatamente após o recebimento, por este, da lista tríplice elaborada pelo Conselho Universitário, em 13 de outubro de 1968, o professor Hélio Lourenço passou a capitanear o projeto de Reforma Universitária em discussão na USP.
Em termos gerais, as suas propostas de reforma – em grande medida uma reelaboração daquelas votadas pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – apresentavam, por um lado, cunho marcadamente democrático, em linha com as demandas estudantis do momento. Por outro lado, o projeto de Hélio Lourenço para a USP contemplava simultaneamente uma maior autonomia e um maior diálogo entre as diversas unidades.
As mudanças profundas na estrutura universitária que a implementação dessas propostas traria consigo fizeram-nas esbarrar em dois grandes entraves: em primeiro lugar, as limitações impostas pela legislação federal e estadual. E, em segundo lugar, a oposição levantada pelos membros do Conselho Universitário saídos das três escolas tradicionais: a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a Faculdade de Medicina de Pinheiros e a Escola Politécnica.
Do ponto de vista estrutural, o professor Hélio Lourenço almejava uma universidade constituída por vários campi com autonomia didática – uma ideia que viria a ser caricaturada por seus opositores como a de uma “federação de universidades” – combinada com a criação de câmaras curriculares, que atuariam com vistas a integrar o trabalho das diversas unidades no âmbito do ensino de graduação.
Quanto ao atendimento da demanda estudantil por maior participação, a leitura das atas das reuniões do Co revela que o professor Hélio Lourenço levou avante o objetivo de instituir uma assembleia universitária paritária não deliberativa.
A despeito das resistências mencionadas acima, esta última proposta chegaria a ser aprovada pelo Conselho Universitário na manhã de 28 de abril de 1969. Na tarde desse mesmo dia, o professor Hélio Lourenço de Oliveira, depois de resistir ostensiva e corajosamente à aposentadoria compulsória de três docentes da Universidade de São Paulo, vê-se ele mesmo cassado de seu cargo com base no Ato Institucional nº 5 no dia 29 de abril de 1969.
O súbito término do período em que Hélio Lourenço esteve à frente da USP importou também o sepultamento de um projeto de reforma universitária fruto de anos de trabalhos e debates, onde se delineava uma universidade autônoma e democrática, capaz de oferecer aos seus estudantes uma formação abrangente e interdisciplinar. Em seu lugar, passariam a viger os estatutos desenhados por Alfredo Buzaid, um dos artífices da legalidade que caracterizou a ditadura militar no Brasil.
De acordo com as atas do Co, o tópico mais democrático proposto pelo professor Hélio foi a criação de uma Assembleia Universitária paritária não deliberativa, aprovada pelo Co na manhã de sua demissão pelo AI-5 em 1969.
Resistência às pressões e cassação
É preciso não esquecer que ele se formou e se desenvolveu numa faculdade de cunho tradicionalista, onde eram grandes as resistências à ideia de uma universidade marcada pela integração de diversas áreas do saber, acima dos particularismos de escolas, com vistas a uma constante atualização do conhecimento. Mas na sua faculdade ele se ligou aos que eram capazes de ajustar a organização às exigências do saber e da investigação. Daí ter dirigido com mão de mestre a experiência inovadora do ensino de clínica médica em tempo integral, consolidando a associação entre pesquisa e prática.
Desta forma o professor pôde desenvolver ideias tão adequadas sobre a Reforma Universitária, que naquele momento estava em curso e da qual foi protagonista destacado. Apesar das dificuldades enfrentadas, por um lado, as paixões políticas e, por outro, a defesa dos privilégios, o professor Hélio administrou com prudência e competência um desafio após o outro, aliando o equilíbrio e a firmeza reformadora a um sentimento da justiça acima das tensões e do ressentimento. Lembrar a sua atuação, evocar a sua personalidade harmoniosa e firme é inscrever na memória das novas gerações o que há de mais alto em nossa Universidade de São Paulo.
As palavras do professor Pascoal Senise caracterizam bem o campo em que se dava a discussão na época:
“Um princípio fundamental que está no bojo da reforma, no sentido da integração, é o que se baseia na ideia de que nenhuma unidade universitária deveria ser autossuficiente na formação de um dado profissional. Esse princípio consta explicitamente no texto do primeiro estudo a que aludimos da seguinte forma: “Nenhum instituto se constituirá tendo em vista a formação completa de um profissional, ainda que cada um contribua, em sua área de conhecimentos, para a formação de profissionais”. Pascoal Senise (“USP 1968-1969”, Edusp).
Depois de cassado
Um homem com um projeto arrojado de universidade perseguido pelos militares deixa a sua terra, onde sua contribuição era indispensável, para trabalhar na Unesco que o chamava para reorganizar o ensino universitário na Síria. Foi conselheiro da Organização Mundial da Saúde, no setor de ensino médico sediado em Alexandria, no Egito, com atividade na região do Mediterrâneo Oriental (Oriente Médio e países do nordeste da África) e consultor da OMS encarregado do ensino de nutrição em escolas médicas do Oriente Médio.
De 1973 a 1980 exerceu a profissão de médico clínico em Ribeirão Preto. Em 1980 foi reintegrado no cargo de professor catedrático do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em regime de dedicação integral à docência e a pesquisa, eleito chefe do mesmo departamento e, em seguida (1983), diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.
Em 30 de junho de 1987, o professor José Goldemberg, reitor da Universidade de São Paulo, no uso de suas atribuições legais, baixou a Resolução nº 3356, de 1º de julho de 1987, denominando Unidade de Pesquisa Hélio Lourenço de Oliveira o conjunto de laboratórios do prédio do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.
Hélio Lourenço de Oliveira, falecido em 14 de março de 1985, demonstrou ao longo de toda a sua vida equilíbrio e prudência. Virtudes indispensáveis àqueles que, marcados por um forte sentimento de justiça, pretenderam, em circunstâncias históricas marcadas pela ausência de liberdade, não transgredir frente a valores morais, mantendo íntegros os ideais de uma universidade autônoma e crítica.
Tais razões, aqui suscintamente expressas, justificaram a recolocação do quadro do professor Hélio Lourenço de Oliveira na galeria de quadros de reitores da Universidade de São Paulo como ato de reparação e justiça merecedor de amplo aplauso.
Jovens colegas, professores e alunos, não esqueçam os fatos ocorridos no passado. Eles podem ser úteis em tempos difíceis.