conexões arte e ciência – Jornal da USP

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

Do lugar onde escrevo, Rosana Paulino é vista como ponta de lança de uma arte afro-brasileira que tem sido produzida e legitimada nacional e internacionalmente. O alcance de seus trabalhos tem se mostrado assustador aos olhos dos críticos de arte mais conservadores. Isto porque sua produção artística aborda temas difíceis, tais como a hipersexualização, a violência e a colonialidade. Notadamente, suas propostas discutem conceitos mal resolvidos e refletem sobre construções psicossociais que, muitas vezes, conectam a história pessoal à do Brasil.

Questionadora, Paulino não hesita; desmascara o racismo brasileiro – “esse emaranhado de sutilezas”, como nos ensinou a historiadora Beatriz Nascimento – e, nesse exercício, ela revisita a história e reconfigura narrativas. Numa primeira visão, suas proposições, geralmente, são lidas a partir do campo político-estético da arte afro-brasileira. Como desprezar a construção temática de suas obras? Claro! Essa é uma pergunta retórica porque não há como secundarizar seus temas! Na sua práxis, a artista não dá margem aos subterfúgios. Ela expõe a crueza do passado colonial e nos faz entender os seus desdobramentos contemporâneos. Mas, não é apenas isso!

Na leitura das obras de arte, sabemos que existem múltiplas camadas que quase nunca se excluem. Nessa interpretação, as questões despertadas pelos temas, linguagens, materiais e técnicas dizem mais sobre o fruidor do que sobre a própria obra e o artista. Parece que cada obra constantemente nos interpela: “Decifra-me!”. E, de fato, o contato com uma obra provoca, instiga, estimula os sentidos; nos faz tropeçar nas certezas. Por isso, a aquisição de repertório é tão necessária para que se possa ativar interações estéticas, políticas e ir além. Na produção artística de Paulino não é diferente. Nem tudo está dado, por exemplo, existe uma camada de interpretação que sempre esteve ali, mas pouco ou nada dela foi dito: a relação arte e ciência.

Evidente que esse viés de leitura sobre suas obras não é inédito. Diversos estudos e artigos mencionaram essa singularidade. A própria artista, em várias entrevistas e particularmente na conferência Raízes que emergem: entrelaçamentos arte e ciência, organizada no âmbito da série Conferências Fapesp 2023, mostrou suas motivações e seu processo criativo ancorados por saberes científicos.

Nosso convite hoje é para uma visada sobre algumas de suas obras pela chave “arte e ciência”. Tenciona-se, então, dirigir o foco para a problemática que envolve os conceitos de ciência e, em especial, as relações desses com os fenômenos históricos e culturais. Mas fique registrado que os diálogos interdisciplinares possíveis a partir da produção de Paulino são densos. Merecem o aprofundamento que não temos disponível aqui. Tomem este texto como um exercício inicial de reflexão, ou mais, ainda como um enunciado provocativo.

Com formação em artes visuais e educação, em algumas entrevistas ela contou sobre seu interesse por Biologia e da relação dessa disciplina com seu trabalho. No modo como lida com temas que envolvem ancestralidade, corpo e território, estão as referências históricas, mas também as biológicas para abordar problemas sociais, étnicos e de gênero. No seu itinerário, a memória, a identidade, e, ainda, os pressupostos científicos são utilizados para o reexame de narrativas racistas e sexistas.

Nesse sentido, merece destaque uma de suas primeiras séries: Aracnes (1996), instalação exposta no Paço das Artes – uma obra que evoca o mito grego da mulher transformada em aranha por ter desafiado a deusa Atena. Metaforicamente, nessa série, a artista expõe as similitudes entre as mulheres e as aranhas que retiram do próprio corpo o material que compõe a teia e garante a sobrevivência de suas crias. Por meio de técnicas tais como o bordado, a costura e a colagem, o meio social, político e, sobretudo, a resiliência das mulheres são evocados na leitura das peças. Acrescente-se ainda que a artista faz alusão à sua história pessoal, quando nos conta que sua mãe sustentava a família como costureira e bordadeira.

Nos anos 2000, as conexões entre arte e ciência encontram-se ainda na afinidade da artista com insetos – essa característica também pode ser vista na produção de Regina Silveira, outra artista de contribuição indiscutível na arte brasileira. Conhecida por seu trabalho com luz, sombras e distorções, Silveira frequentemente insere imagens de insetos em suas obras para tecer comentários sociais e políticos. Em Surveillance (2015-2016), por exemplo, as imagens de moscas projetadas, em grande escala, nas fachadas dos edifícios, trazem um ar disruptivo, além de evocar a vigilância e a invasão da privacidade nos centros urbanos.

Já em Rosana Paulino, insetos e humanos fundem-se: as figuras femininas saem dos casulos, como em Tecelãs (2003). São mulheres, moldadas em barro, que se transformam em bichos-da-seda ou, talvez, o inverso, são os bichos que se convertem em mulheres. O fio presente nas Aracnes, agora, é a base dos casulos. Como vimos, esses elementos relacionam-se à história pessoal da artista e, simultaneamente, promovem uma releitura dos aspectos típicos da experiência das mulheres em ambiente doméstico.

Observamos, então, que as séries de Paulino que se sucedem, costumeiramente, trazem atributos que rememoram as passadas, guardando um elo de coerência entre um trabalho e outro. Na série Carapaça de proteção (2004), os desenhos mostram, mais uma vez, os seres híbridos (entre a anatomia humana e a animal). Neles, os ciclos de vida e as metamorfoses dos insetos se inscrevem como metáforas para as transformações pessoais. Os fios continuam a emergir dos corpos alterados geneticamente. O que chama a atenção são as mulheres que surgem por vezes protegidas por invólucros translúcidos – as carapaças que protegem.

Nos anos de 2010, Paulino mergulhou na história da ciência, em particular naquela forjada no século 19. Nesse século, as relações entre arte e ciência estão focadas no descritivo dos espécimes e na dominação das terras colonizadas. Por intermédio do desenho, da gravura e da aquarela, artistas presentes nas expedições científicas preocuparam-se com a representação da natureza com “fidelidade”. Nesse contexto, são eles que forneceram os registros da ciência.

A visão intelectual engendrada por essa relação entre arte e ciência enunciada no século 14 se desenvolveu plenamente com o projeto enciclopédico que vigorou até as primeiras décadas do século 19. Em muitos casos, o conhecimento de animais e plantas só chegou até os tempos atuais pelo registro artístico-científico desses viajantes. Suas imagens até pouco tempo estavam nos livros didáticos nacionais para ilustrar cenas coloniais e imperiais. Mas é premente sabermos que o registro dos viajantes trouxe as marcas do projeto colonizador e a construção de uma versão da história centralizada no continente europeu.

Ao repensar a prática das expedições científicas a partir do emprego de linguagens, tais como o desenho, a gravura, a tecelagem e a fotografia, Paulino nos mostra como a ciência sustentou o discurso da existência de raças superiores e inferiores e, ainda, a criação de uma iconografia que legitimou a coisificação de pessoas. Suas imagens trazem a “fotografia antropológica”, no registro da fauna e da flora da “nova terra”, mas acrescidas de suturas grosseiras e de colagens desconcertantes – elas contam sobre memórias silenciadas nos livros didáticos, por exemplo.

Nesse espectro, a série Assentamento (2013) remete ao ato de “assentar um país” (como inserir suas fundações ou alicerces), ao lugar reservado para os grupos refugiados que vagam pelo mundo, mas, sobretudo, à força mágica que mantém a casa do terreiro de candomblé firme. O corpo de uma mulher escravizada é fotografado (frente, costa e perfil) por Louis Agassiz, durante a expedição Thayer, conduzida pelo zoólogo suíço-americano em 1865. Essa imagem desumanizada alude à inferioridade da raça e, em última análise, justifica a escravidão. Paulino “refaz” a imagem através de intervenções, tais como ampliações digitais, suturas, colagens, novos elementos compositivos e transposição às litografias. Em depoimento, ela nos elucida que as suturas são as marcas do trauma da escravidão; uma memória em desencaixe. Já nas litografias, às vezes, surgem as raízes aéreas que “ainda assim assentaram um país”.

A imagem da mulher escravizada de Agassiz se repete em alguns trabalhos da série As filhas de Eva (2014). Nessa série, a artista emprega técnicas mistas sobre papel azul para recriar imagens, incluindo retratos de africanos e sombras que evocam os pretos novos (escravos recém-chegados que pereciam frente aos maus tratos da viagem). Nessa imagética, Paulino recria a origem da flora e fauna brasilis. Lembremos ainda que todas as mulheres, inclusive as negras, são “filhas de Eva” – a primeira a provar do fruto do saber e, por consequência, ser expulsa do Éden.

Atlântico vermelho (2016) presta referência à obra de Paul Gilroy, Atlântico negro: modernidade e consciência dupla (Harvard University Press, 1993). No livro, Gilroy aborda uma cultura negra do Atlântico com raízes africanas, americanas, britânicas e caribenhas. No seu trabalho, Paulino converge forças para uma das metáforas mais sensíveis aos afrodescendentes: a travessia (a diáspora). Mar e caravelas assinalam esse imaginário, contudo, a viagem de navio tumbeiro pelo desconhecido assinalou definitivamente a privação dos escravizados. O Atlântico dela é vermelho, tingido pelo sangue que jorra entre África e Brasil. Os escritos são rubros, assim como as marcas sobre os azulejos portugueses.

Por três séculos, a captura e a venda de homens e mulheres os destituíram de humanidade, lançando-os à condição de “coisas naturais”. Em Atlântico vermelho, esses homens e mulheres surgem sem rosto, com os olhos encobertos ou ainda sobrepostos por ícones que transitam entre o lembrar e o esquecer o que há de humano. Compartilham a superfície do trabalho com flores e animais exóticos, coloridos e exuberantes, quebrando a aspereza das gravuras e das fotos em preto e branco.

¿História natural? (2016) é um livro de artista com 12 pranchas que remetem aos volumes enciclopédicos que se tornaram reconhecidos pela tentativa de ordenação dos reinos animal e vegetal. Motivada por entender a lógica colonialista, Paulino dedica-se à pesquisa das teorias da classificação das raças; subverte e sutura imagens e argumentos, mostrando o avesso desse discurso. Através da gravura e das colagens, a artista oferece imagens borradas, sujas e costuradas como se nos mostrasse que aquela história, legitimada pelo discurso moral, religioso e pseudocientífico, é falsa; é uma grande trapaça. A artista discute o papel da “ciência” que deu bases para as teses de higienização e darwinismo social presentes, especialmente na transição entre o Império e a República.

Assim, suas obras, a partir da recombinação de imagens, palavras e suturas, questionam, de modo afetivo e lírico, a história forjada pelos relatos dos artistas-viajantes. Faz refletir sobre as bases da ciência e da arte que permitiram que pessoas escravizadas fossem retratadas como “coisas da terra”. Através da disputa de memórias e imagens, suas obras denunciam que o racismo é resultante de uma construção e como tal pode ser desconstruído.

Búfala e Senhora das plantas (2019) é um livro de artista – tal como ¿História natural?. Nessa publicação, a búfala surge como um forte emblema de energia feminina e da capacidade de enfrentar desafios. Em algumas tradições, a búfala é ligada às yabás, como Iansã (Oyá), que é a orixá dos ventos, tempestades e raios. Iansã é conhecida por sua coragem e determinação, e a búfala é um de seus símbolos, representando seu poder. A presença da búfala nas religiões de matriz africana também reflete a interação profunda entre os praticantes dessas religiões e a natureza.

Nesses trabalhos, Paulino não busca os arquétipos vindos dos mitos gregos, mas sim aqueles vindos de outras cosmovisões. A artista lembra que as práticas e teorias psicológicas tradicionais frequentemente foram desenvolvidas a partir de uma perspectiva eurocêntrica, o que pode ignorar ou não considerar adequadamente as experiências e desafios enfrentados pela subjetividade negra. Assim, ela evoca imagens de mulheres-natureza, buscando pensar sobre representatividade, mas, sobretudo, as interações entre arte e construções psicossociais.

Nos anos 2020, nossa artista continua a discussão sobre arquétipos femininos, a partir da relação das mulheres negras com os saberes ancestrais e com a natureza. Na série Mangue (2023), existem novas narrativas críticas e afetivas a partir da representação de mulheres e animais do mangue. São imagens hieráticas, nas quais as mulheres são o centro e a força da obra. Essa coleção de desenhos, em grande escala, explora o manguezal como um bioma cheio de significados simbólicos. Nele, as raízes aéreas interligadas representam a interdependência e a dualidade (vida e morte; úmido e seco). Assim, a série torna-se uma reflexão profunda sobre a diversidade, a exploração e a resistência da natureza, assim como das comunidades humanas que dependem desses ecossistemas e sofrem com o racismo ambiental.

No fundo, as investigações de Rosana Paulino nos lembram que as interações entre arte e ciência podem estabelecer conexões profundas com a natureza. Nem a arte e tão pouco a ciência devem incorrer em cisão com o mundo natural; arte e ciência são discursos de conhecimento e deles devem emergir soluções para futuros possíveis. O conhecimento sobre plantas, animais e ecossistemas, transmitido de geração em geração, é essencial para práticas de conservação e manejo sustentável dos recursos naturais – e essa tarefa muitas vezes cabe às mulheres. Suas obras nos lembram que o viver de forma sustentável, respeitando os ciclos naturais e empregando os recursos de modo equilibrado pode nos ensinar a viver, apaziguar memórias, equacionar conflitos e promover equidade.

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