
Por Maria Fernanda
O Sábado de Aleluia, que marca o terceiro dia da Paixão de Cristo, é uma data que carrega significados múltiplos — espirituais, históricos e populares. Encravado entre o luto da Sexta-Feira Santa e o júbilo da Ressurreição no Domingo de Páscoa, o dia costuma ser, para muitos cristãos, um tempo de recolhimento e vigília. Mas também é neste sábado que o Brasil assiste a um dos rituais populares mais emblemáticos e controversos de sua religiosidade popular: a tradicional “malhação do Judas”.
Essa tensão entre silêncio sagrado e manifestação cultural efusiva é um retrato do próprio sincretismo que marca nossa identidade religiosa. O Sábado de Aleluia é, portanto, mais do que uma data no calendário litúrgico — é um espelho da alma brasileira.
A origem e o sentido religioso do Sábado de Aleluia
Do ponto de vista da tradição cristã, o Sábado de Aleluia é o dia do grande silêncio. Após o sofrimento e morte de Jesus Cristo na cruz, os fiéis aguardam em luto a sua ressurreição. Segundo a fé católica, é o tempo em que o corpo de Cristo repousa no túmulo, enquanto os discípulos e Maria vivem o luto, mas também a esperança.
“É um dia de silêncio, de meditação e de preparação para a grande festa da Páscoa”, explica o teólogo e padre Marcos Peres, da Diocese de Mogi das Cruzes. “A Igreja não celebra missa durante o dia. O altar permanece desnudo, sem toalhas, sem flores, sem música. É só à noite, com a Vigília Pascal, que se rompe esse silêncio e começa a celebração da vida que venceu a morte”.
A malhação do Judas: folclore, crítica e resistência
Enquanto dentro das igrejas o silêncio ecoa, nas ruas de várias cidades do Brasil — sobretudo no interior — ecoa o riso, o grito e até a catarse. Bonecos de pano representando Judas Iscariotes — o apóstolo que traiu Jesus por 30 moedas de prata — são espancados, queimados e até explodidos em rituais que misturam sátira, política e tradição.
“A malhação do Judas é um ato simbólico, mas também social. Ela serve como válvula de escape, como crítica e como uma forma popular de justiça simbólica”, afirma a antropóloga Marisa Rezende, da USP. “Ao longo do tempo, o Judas deixou de ser apenas o traidor bíblico. Ele passou a representar políticos corruptos, celebridades envolvidas em escândalos ou até temas mais abstratos, como o preconceito ou a injustiça”.
Em muitas cidades, os bonecos trazem cartazes com frases bem-humoradas, trocadilhos ou até poesias de protesto. Em outras, são encenadas verdadeiras “execuções públicas”, com direito a júri popular, banda e fogos.

Entre a tradição e a polêmica
Apesar do caráter festivo e catártico, a malhação do Judas também vem sendo criticada por reproduzir discursos de ódio e promover violência simbólica. Em tempos de polarização política e avanço das redes sociais, bonecos de Judas têm representado minorias, personalidades públicas e até religiosos — o que tem gerado denúncias de intolerância e desrespeito.
Em 2023, um episódio em Minas Gerais ganhou repercussão nacional após um boneco de Judas ser vestido com trajes que remetiam a um orixá, o que foi interpretado como um ataque às religiões de matriz africana. Em nota, o Ministério da Igualdade Racial classificou o ato como “intolerância religiosa camuflada de folclore”.
Diante dessas tensões, algumas comunidades têm optado por ressignificar a tradição. Em vez da malhação, realizam o “Judas da Esperança” — onde o boneco representa o que deve ser superado, e não eliminado com violência. Outras organizam rodas de conversa ou oficinas educativas para discutir os sentidos da celebração.
Entre a cruz e a cultura: o Sábado de Aleluia no Brasil de hoje
A dualidade entre a dimensão religiosa e a manifestação cultural é um traço marcante do Brasil. O Sábado de Aleluia, nesse sentido, escancara nossa capacidade de transitar entre o sagrado e o profano, o recolhimento e a festa.
Nas igrejas, fiéis se preparam para a liturgia mais importante do ano: a Vigília Pascal, com a bênção do fogo novo, a proclamação da Páscoa e a renovação das promessas batismais. Nas ruas, a cultura popular vive sua expressão mais visceral, ainda que, cada vez mais, tenha que lidar com os dilemas éticos do presente.
Vozes da comunidade
“Quando eu era criança, malhar o Judas era a coisa mais divertida da semana santa. A gente fazia o boneco com roupas velhas e jornais, e cada um da rua dava sua opinião sobre quem merecia ser o Judas naquele ano”, conta dona Nair da Silva, de 68 anos, moradora de Ferraz de Vasconcelos. “Hoje em dia, com tanta violência, acho que é melhor ensinar as crianças a perdoar do que a bater, mesmo que seja num boneco”.
Já o jovem ativista cultural Jefferson Andrade acredita que a tradição pode e deve ser resgatada com novos significados: “Em vez de malhar o Judas, que tal homenagear quem lutou por justiça no ano? Em vez da traição, celebrar a resistência. A cultura precisa evoluir com a sociedade”.
Reflexão final: o que ainda nos ensina o Sábado de Aleluia?
No Brasil de 2025, onde a espiritualidade se reinventa e a cultura popular busca novos caminhos, o Sábado de Aleluia permanece como um espaço simbólico potente. Ele nos convida a refletir sobre a dor da perda, mas também sobre a esperança do renascimento. Sobre a justiça, a memória e o perdão.
Seja nos bancos da igreja ou nas vielas das comunidades, o espírito da Aleluia continua vivo. E talvez, mais do que nunca, seja hora de perguntar: quem são nossos Judas hoje? E o mais importante: como escolheremos lidar com eles?