
Acabei de ler O Vazamento, de Natalia Viana, livro que deveria ser obrigatório para todo estudante de jornalismo. Em novembro de 2010, Natalia trabalhou com o Wikileaks e Julian Assange para publicar a fatia brasileira de mais de 200 mil telegramas diplomáticos do governo dos Estados Unidos. Cerca de 100 mil eram considerados confidenciais, trazendo segredos e indiscrições reportadas pelas embaixadas norte-americanas de diversos países. Antes de divulgá-los, coube à Natalia e a jornalistas parceiros selecionarem os assuntos conforme o interesse público e preservar as fontes que corriam riscos.
A publicação fez a política mundial tremer e produziu crises em todos os cantos do planeta. Os primeiros levantes populares na era das redes sociais ocorreram ainda em 2010, em países com governos autoritários, na chamada Primavera Árabe. Alcançariam as ruas do Brasil em 2013, nas manifestações de junho.
Apesar de terem se passado apenas 15 anos, a leitura do mundo e as expectativas sobre o futuro eram bem diferentes naquela época. As redes sociais e as big techs ainda não tinham o poder que alcançariam na década seguinte. Havia um imenso otimismo em relação à capacidade da tecnologia em aprofundar a transparência e a democracia. Com as redes, as verdades sobre os fatos emergiriam sem o filtro dos donos dos meios de comunicação. A vigilância sobre os abusos dos poderosos poderia se ampliar em benefício dos indivíduos.
O Estado, a burocracia e seus líderes eram vistos como representantes dos interesses de um capitalismo excludente, enquanto a internet e as redes sociais eram celebradas porque amplificavam as vozes que não podiam ser ouvidas. Havia um clamor por liberdade, que também se refletia na popularidade de livros como 1984, clássico de George Orwell. O romance distópico, publicado em 1949, depois da Segunda Guerra mundial, imaginava um futuro totalitário, hipervigiado por um Estado que observava a todos e manipulava a população por meio de mentiras e por um revisionismo histórico que seria a marca do stalinismo. Tanto Wikileaks como Orwell dialogavam com o espírito de seu tempo.
Neste mês de abril, na primeira semana, o livro voltou a causar comoção nas redes depois que o empresário e influenciador Felipe Neto promoveu uma campanha publicitária para lançar o audiobook de 1984, interpretado por atores consagrados. Na publicidade, Neto citava trechos do romance e simulava o lançamento de sua candidatura a presidente, revelando apenas no dia seguinte os reais objetivos de seu vídeo.
O livro segue relevante porque o Big Brother parece mais ativo do que nunca. As mentiras e os mantras ilusórios, capazes de manipular multidões, parecem mais influentes do que nunca, assim como a “novafala” ou “novilíngua”, que inverte o sentido das palavras para confundir a realidade, como nos famosos bordões “guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”, que funcionavam como slogan do partido que tiranizava a população.
Se o mal-estar e a sensação de vigilância permanecem, porém, os vilões mudaram. O Estado, em vez de caminhar para o totalitarismo, se fragilizou. Não parece ter forças e apoio para reduzir as desigualdades e limitar a concentração de renda e poder em um contexto democrático. Já as big techs e as redes sociais se transformaram nas principais responsáveis pela vigilância e pela manipulação das vontades individuais, com o objetivo de ampliar seus lucos e acumular poder.
Com o descrédito da política, restou o mercado como a instituição garantidora da vida e da sobrevivência dos que sabem ganhar dinheiro. As novas tecnologias, contudo, aceleraram a diminuição dos empregos e esvaziaram as identidades modernas, criando imensas crises existenciais, em que a função social do trabalho deixou de ter relevância. O reconhecimento passou a estar relacionado com a capacidade de lucrar em um sistema concentrador de renda. Para sobreviver nessa nova realidade e conquistar respeito, mais do que qualquer coisa, é preciso saber ganhar dinheiro e participar ativamente da ciranda financeira.
A desregulamentação crescente do mercado favoreceu o faturamento de máfias de todos os tipos, que passaram a negociar em ambientes virtuais protegidos, com criptomoedas que podem circular pelo mundo sem serem rastreadas. As crenças no empreendedorismo se propagaram pelos profetas da autoajuda e da prosperidade, definindo o comportamento de um número crescente de pessoas que assumiram postos de destaque na elite econômica e política nacional.
Como escreve Natalia no último capítulo de seu livro, quinze anos depois do vazamento do Wikileaks, “o que era praça pública virou um shopping center regido por um algoritmo dinheirista”. Ela cita alguns dados: o valor do Google saltou de 28 bilhões de dólares em 2010 para 237 bilhões em 2023. Nesse ano, o Google e o Facebook mordiam quase 60% do total de receita com anúncios digitais no mundo. Cinco conglomerados passaram a controlar a internet no mundo e os Estados se mostravam impotentes diante da tentativa de regulamentar o novo mundo virtual.
Dito isso, é inegável que existem pitadas de 1984 na distopia que parecemos seguir, incapazes de nos libertar da jaula sufocante do mercado, que parece hipnotizar a todos na competição pelo consumo e pela ostentação, em detrimento de um projeto coletivo. Ocorre que cada vez menos serão capazes de alcançar essa riqueza, reservada aos mais dispostos a vencer, talvez 3% ou menos da população. Assim como na série brasileira da Netflix, cujo título é 3%, caberá aos que conseguirem fazer parte desse grupo se isolar e se proteger dos 97% que ficarem de fora. O Estado, nessa distopia, levantará muros, fortalecerá fronteiras e armará exércitos para proteger os super-ricos da massa empobrecida. Enquanto houver mundo.
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