O silêncio dos bugios e o alerta da febre amarela – Jornal da USP

A morte de bugios-do-cerrado no campus da USP em Ribeirão Preto expõe a ameaça da febre amarela e mobiliza pesquisadores na busca por soluções

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Foto: Ouwesok/Flickr/CC BY-NC 2.0

Durante anos, os guturais dos bugios-do-cerrado (Alouatta caraya) compunham a trilha sonora natural do campus da USP em Ribeirão Preto, marcando o amanhecer e o entardecer com seus sons graves e potentes. Esses chamados não eram apenas um som característico da região, mas também uma forma essencial de comunicação entre os grupos, delimitando território e mantendo a organização social dos bandos.

No final de dezembro de 2024 e início deste ano, a comunidade acadêmica foi surpreendida com o silêncio desses animais e com a triste notícia das mortes de vários deles, encontrados nas imediações entre o Viveiro de Mudas e o Biotério Central. Exames realizados pelo Instituto Adolpho Lutz identificaram a febre amarela como a causa das mortes. 

O surto acendeu um alerta entre as autoridades sanitárias, levando pesquisadores, gestores da Prefeitura do Campus e a Divisão de Vigilância em Saúde do Município a intensificarem o monitoramento da situação. Até o momento, foram registradas cerca de 12 mortes de bugios e três de saguis.

Os bugios no campus da USP

Os bugios não eram nativos do campus da USP em Ribeirão Preto. Sua presença foi resultado do Projeto Barba Negra, coordenado pelo professor Wagner Ferreira, do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP). Segundo ele, a espécie Alouatta caraya estava confinada em pequenos fragmentos de mata urbana na região, como o Bosque Municipal Fábio Barreto. Esse isolamento levava a intensos conflitos entre machos e a altos índices de endogamia, o que comprometia a viabilidade da população. “No Bosque, há mais de 20 anos, eram frequentes brigas entre machos, e os perdedores fugiam para as casas do entorno. Muitos bugios, fêmeas e filhotes, morriam nesses conflitos”, explica Ferreira​.

A ideia original do projeto, com apoio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), era introduzir os bugios em uma fazenda no município de Cajuru. Entretanto, dificuldades logísticas fizeram com que os primeiros indivíduos fossem trazidos para o campus da USP. A chegada dos animais aconteceu gradativamente: um filhote resgatado na Fazenda Vassoural, encontrado agarrado à mãe morta, foi acolhido por uma fêmea já presente no campus. Em seguida, um macho foi introduzido, depois um casal resgatado do Bosque Fábio Barreto. Esses indivíduos deram origem aos grupos que se estabeleceram na universidade.

Estima-se que a população tenha variado entre 48 e 62 indivíduos entre 2023 e 2024​. Segundo a professora Patrícia Ferreira Monticelli, do Departamento de Psicologia da FFCLRP, o campus abrigava cinco grupos territorialistas, cuja comunicação era essencialmente vocal. “A vocalização deles não é apenas um chamado, mas um elemento essencial para a organização social da espécie. Quando percebemos que os sons haviam desaparecido, sabíamos que algo muito errado estava acontecendo”, relata Monticelli​.

Febre amarela e vacinação

Patrícia Monticelli – Foto: ResearchGate

O surto de febre amarela que atingiu os bugios do campus não foi um evento isolado. Historicamente, surtos da doença já eliminaram populações inteiras de bugios, como ocorreu na Serra da Cantareira. “Infelizmente, os bugios são extremamente sensíveis ao vírus da febre amarela, muito mais do que outras espécies de primatas”, afirma Patrícia.  “Quando um grupo começa a morrer, é um sinal de que o vírus está circulando na região e que os humanos também podem estar em risco”​.

Após a confirmação da febre amarela no campus, uma campanha de vacinação foi iniciada para imunizar a comunidade universitária e reduzir o risco de transmissão do vírus. A febre amarela é uma doença grave, podendo ser fatal em humanos não vacinados, e sua única proteção eficaz é a imunização. Além da vacina, medidas como o uso de repelentes e roupas de mangas longas são recomendadas para evitar a picada do mosquito transmissor, principalmente em áreas de vegetação densa.

Vacina para os bugios

Benedito Antônio Lopes da Fonseca – Foto: Arquivo pessoal

Diante da gravidade da situação e do risco de extinção da espécie no estado de São Paulo, pesquisadores da USP trabalham no desenvolvimento de uma vacina específica para os bugios. O professor Benedito Antonio Lopes da Fonseca, do Centro de Pesquisa em Virologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), lidera os testes com uma nova formulação. “Tentamos imunizar bugios em cativeiro com a vacina de vírus vivo atenuado, mas eles não desenvolveram anticorpos neutralizantes”, explica​.

Agora, os pesquisadores estão testando uma nova abordagem, utilizando uma vacina de vírus inativado combinada com uma proteína do próprio vírus para potencializar a resposta imunológica. “Se a imunização dos bugios for bem-sucedida e aplicada em larga escala, a vacinação pode proteger a espécie e também reduzir a circulação do vírus da febre amarela na natureza, impactando positivamente a saúde humana​”, relata Fonseca. A implementação da vacina, no entanto, ainda precisa passar por aprovações regulatórias. “Antes de aplicá-la em larga escala, precisamos da autorização da comissão de ética em experimentação animal e de outros órgãos competentes”. 

O silêncio dos bugios na USP de Ribeirão Preto é um alerta para pesquisadores e autoridades ambientais. “A perda desses primatas representa não apenas um impacto para a biodiversidade local, mas também um indicativo claro da necessidade de medidas preventivas contra a febre amarela”, conclui Patrícia. 

Por jornal.usp

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