Maneiras de olhar e pensar – Jornal da USP

Durante a pandemia desenvolvi o hábito de realizar pequenas fugas para livrarias que ficavam semiabertas em horários limitados. Munido de máscaras, álcool em gel e lenços umedecidos, percorria sorrateiramente as estantes de uma loja que considero a mais completa e agradável de São Paulo.

É uma instalação ampla, com larga variedade de livros de qualidade, às vezes misturados com esses textos pífios de autoajuda e de receitas de coachings. Entretanto, o que mais gosto é uma espécie de puxadinho nerd em frente ao conjunto principal.

Descobri, conversando com um dos funcionários, que o puxadinho é uma espécie de sobrevivente da antiga livraria Triângulo, ponto de encontro do pessoal de exatas nos anos 1970.

Em uma dessas incursões pelo puxadinho encontro o título Maneiras de Ser-Animais, plantas, máquinas: a busca por uma inteligência planetária, que aguçou minha curiosidade. Embora não conhecesse o autor (James Bridle), fiquei maravilhado com o texto, transportando as ideias desenvolvidas para uma tentativa de leitura do cotidiano.

O primeiro capítulo trata do que se denomina Determinismo Tecnológico, linha de pensamento que considera o progresso tecnológico irrefreável, tornando inevitáveis alguns mecanismos de destruição e criação de eventos que provocam mudanças deletérias à vida no planeta.

É, talvez, um raciocínio simplista. Não é a tecnologia que desmata ou destrói importantes nichos ecológicos pois, ao menos no estágio de desenvolvimento atual, não há máquina que realize tarefas sem a determinação do ser humano.

Há que se pensar em expandir o pensamento ecológico, isto é, pensar mais nas relações entre as coisas do que nelas, em si. As destruições atribuídas às máquinas devem ser vistas pelas lentes da soberba e ganância humanas.

Felizmente, há atualmente uma forte tendência em privilegiar a sustentabilidade do planeta com desenvolvimento de processos de fabricação com menor repercussão no uso de recursos naturais, de meios de transporte de baixa emissão de dióxido de carbono e de uso de energia proveniente de fontes renováveis.

Todas essas ações são de grande importância, mas ainda esbarram na clássica ideia de que a inteligência e consciência humanas são consideradas superiores, desprezando-se possíveis aprendizados originários da observação, envolvendo interações com outras formas de vida conhecidas.

Talvez seja importante entender que inteligência se manifesta em formas múltiplas e emaranhadas, demandando abertura a novos mecanismos de comunicação. Reconhecer que há múltiplos mundos, entendendo que plantas, animais e outros não humanos nos deslocam do centro.

Raciocinar usando a observação de comportamentos de outras formas de vida é uma maneira de pensar que pode modificar como olhamos para a vida no planeta. Por exemplo, em 1983, Deneubourg e colaboradores estudaram a estratégia empregada por sociedades de formigas na captura de nutrientes. Esse modelo sugere que há um determinado grau de aleatoriedade na comunicação entre elas que minimiza o tempo de captura do alimento distribuído entre várias fontes.

A ideia de auto-organização, discutida em texto anterior sobre os trabalhos do físico alemão Hermann Haken, está presente nesse modelo que, conforme trabalho sob orientação do professor Luiz Monteiro (Zula), publicado em 1999, pode ser aplicado para solução de problemas de otimização de recursos em processos de produção.

Embora seja um exemplo modesto, trata-se de uma proposta de sair do antropocentrismo habitual e passar a olhar o mundo mais do que humano, integrando inteligências e aproveitando o emaranhado de ações recíprocas que nos acompanham.

Entender que mesmo nosso sistema de pensamento centralizado (Sistema Nervoso Central) emerge de uma infinidade de interconexões entre uma infinidade de células (neurônios), mediadas por nossas interações com o ambiente.

Pensar na inteligência artificial (IA) integrada à vida no planeta e não como simples objeto corporativo e extrativista. Mais do que um conjunto de algoritmos que otimiza operações de mineração e de exploração de recursos naturais, a IA pode ser usada para identificar soluções que erradiquem a fome e diminuam sofrimentos.

Continuando a seguir o texto de Bridle, chego à ideia de Wood Wide Web (traduzindo livremente por Rede Mundial Florestal), cujo funcionamento e regulação mantêm as condições para as diversas formas de vida em nosso planeta. Todos os dias assistimos a desastres climáticos que os especialistas relacionam diretamente à destruição dos diversos tipos de biomas naturais.

As enormes árvores das florestas tropicais estão intimamente conectadas. Além disso recebem nitrogênio de locais muitas vezes longe delas. Redes de distribuição e ajuda mútua existem nos subsolos das florestas e, adicionalmente, as árvores podem receber nitrogênio a partir de fungos especializados que crescem em torno de suas raízes.

Trata-se de uma rede viva que, além da distribuição de nutrientes, produz troca de informações. Se uma árvore de uma floresta é atacada por insetos, libera substâncias de alerta na rede. As outras árvores, ao receberem o sinal, produzem suas próprias defesas químicas.

Acostumado a olhar para equipamentos eletrônicos, dispositivos de controle, software e hardware de redes, depois dessa leitura fico olhando as árvores: os galhos se multiplicam como se formassem um diagrama de bifurcações, as conexões parecem redes sem fio pelo ar, além das ligações entre as raízes.

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Por jornal.usp

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