
Por Isabella Vilela
Localizado em Minas Gerais, região de origem de artistas como Milton Nascimento, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Adélia Prado e tantos outros, há um fio que conecta a força da arte entre passado e presente. É nessas ruas que respiram história e um cenário de desafios e resistência, que o artista Hilreli desenha sua trajetória com traços múltiplos. Cantor, produtor, artista visual, agitador cultural, sua presença é a de quem entende que a arte não se limita a um palco ou a um quadro e também está presente na costura das relações, na ocupação dos espaços, na reivindicação por uma cena mais diversa e acessível.
Natural de Barbacena, Hilreli carrega em sua obra a identidade do interior mineiro, dialogando com suas belezas, contradições e potências. Sua jornada começou nos anos 2000, entre concursos e experimentações, e hoje se expande para um universo que mistura som, imagem e discurso político.
Em entrevista ao SOM, o cantor compartilhou memórias, inquietações e a construção de seu primeiro álbum, “Dance Aqui”, que já está pré-aquecido em fogo alto, pronto para ser compartilhado. Confira!
SOM: Sua trajetória é marcada por uma atuação multifacetada: música, audiovisual, teatro, design e produção cultural. Como essas diferentes linguagens conversam na sua arte e o que te motiva a não se limitar a um único caminho?
Hilreli: Isso é algo muito potente em mim e foi o que trouxe a oportunidade de romper, abrir caminhos. Não tenho família tradicional, cresci num bairro afastado do centro onde as oportunidades não se apresentam, a gente precisa cavar e ir atrás delas. Quando consegui comprar minha primeira câmera profissional, com o dinheiro de um acerto de contas de um trabalho, foi ela a responsável por me garantir acesso para iniciar de algum lugar. Fui me infiltrando e ocupando, fazendo o que mais gosto na vida: pontes. A mesma coisa com os cartazes de shows, festas e festivais. Teve uma época que meu grande sonho era um dia fazer o cartaz de uma das festas tradicionais da cidade. É bonito olhar de hoje pra essa ingenuidade que me moveu e me fez chegar até aqui.
Durante muito tempo eu tive receio de não soar nítido ou parecer confuso, sem objetivo, num sistema que adora nos moldar e nos dizer que precisa ser uma coisa ou outra, anulando nossas subjetividades, tentando reduzir nossos corpos a unidades de produção, enjaulado nossa complexa pluralidade. Isso me criou desafios, ansiedade e receios. Mas a maturidade me deixou entender que tudo pode ser a seu modo, tempo e organização. Não ‘temos que’ nada, muito menos escolher. Isso tudo enriquece muito a minha expressão e diálogo com quem vai criar e produzir comigo porque vou sempre partir de uma vivência da qual eu tenho propriedade e conhecimento de no mínimo saber os caminhos do por onde a coisa se faz.
SOM: Você começou sua jornada artística lá atrás, nos anos 2000, participando de concursos e se destacando na cena de Barbacena. Como você enxerga essa caminhada até aqui e o que mudou no Hilreli artista desde os primeiros passos?
Hilreli: Eu tenho repetido muito a frase da Fernanda Torres sobre estar em um momento da vida onde “eu não acredito mais em duendes” e é bom sonhar com esse pé fincado no chão. É um fincado no chão não com a ideia de permanecer, mas talvez com o objetivo de fincar a unha cada vez mais fundo para depois revirar a terra toda, sabe? Então o sonhador ainda mora em mim, mas, fantasiar ilusões nesse sistema perverso que nos suga e adoece não é para mim mais, ao mesmo tempo. Eu agarrei cada uma das oportunidades que fui atrás e fiz virar mais alguma coisa, fiz render no mínimo história pra contar. Até porque isso era tudo o que eu tinha. Era isso ou isso.
De uma hora pra outra, aos olhos de fora, eu comecei a tirar um Hilreli diferente da cartola, mas ele estava lá dentro o tempo todo. Demorou a sair porque há toda lógica operando para que o artista não exerça seu ofício, não se expresse, não acredite que dá pra fazer. A precariedade e falta de acesso é violenta nesse nível. Imagina passar uma vida sem experienciar seu talento como toda a beleza e força que ele pode proporcionar. E olha que, aos 3 anos, numa exposição de desenhos e ilustrações, puxei a saia da minha mãe e disse: “eu vou fazer isso aí”, apontando com o dedinho. Era para eu não ter feito outra coisa da vida.
Por outro lado, isso me trouxe nuances e aprofundou meu discurso para entender que minha arte é uma causa. Eu me movo para tentar deixar a minha humilde contribuição na gira da vida.
SOM: Barbacena e Minas Gerais aparecem na sua obra, seja na estética, nas temáticas ou no movimento cultural que você ajuda a construir. Como você diria que esse território molda a sua identidade artística?
Hilreli: Nós somos muito parte dos nossos territórios, né? Isso cada vez mais me salta aos olhos. Quanto mais eu saio e vejo o mundo, mais me dá vontade de voltar e matutar como chacoalhar certas estruturas ou em como trazer minha aldeia, meu bonde para desbravar comigo outros lugares atrás de oportunidades e trocas genuínas.
Barbacena é uma cidade que ainda processa o fato de ter ocorrido tudo o que aconteceu aqui, o título “nobre e leal” dado pela monarquia portuguesa, a frustração de quase ser a capital do estado e, em razão disso, receber o “prêmio de consolação”. Ser referência no tratamento psiquiátrico, que trouxe a sua mancha histórica mais perversa com os horrores do Hospital Colônia. Mas essa história é escrita com outros capítulos com a morada de Guimarães Rosa, Flausino Vale, Emeric Marcier, George Bernanos, Paulão Mattos e tantos outros artistas que escolheram aqui para viver e criar suas obras. Foi aqui em Barbacena que foram realizados os primeiros testes para colocar o som no cinema mudo, com Paulo Benedeti.
É daqui o grupo de teatro resistência no interior com 45 anos de trajetória e luta, Ponto de Partida, que fundou o Bituca, a universidade de música mais concorrida do país. É aqui também o lugar onde apaga-se o passado pela força da especulação imobiliária, gerando uma arquitetura confusa. Então, todo esse caldo, forja e reverbera movimentos na cidade. A gente aqui é um pouco de tudo isso e assim todos somos cada qual em seu território. É impossível fugir desse DNA, pelo menos pra mim.
Eu quero debater e dialogar com meus pares, participar das articulações e transformações e, honestamente, não para pintar um altruísmo barato, vender prosa de bonito, bom moço. Eu entendi desde o início que ou era assim, ou não haveria outra maneira. Nós sempre somos parte de um todo, então para eu existir é necessário existir uma cena, e aí isso vira atitude de sobrevivência. É resistência. Eu tenho muito orgulho de ter travado todos os confrontos e embates que acreditei ser necessário, apesar de muitas vezes trazerem dores. Minhas relações, traumas e afetos brotaram daqui. E vem significando cada vez mais que essa caminhada não parece que em algum momento vá me afastar, pelo contrário, me dá o desejo de expandir e começar a entender que, além da minha cidade, tem o entorno e o entorno do entorno.
Como a zona da mata mineira e o campo das vertentes impactam no cercado do meu bairro, minha rua, meu estado? Está tudo conectado como os desconhecidos que de repente descubro que possuo parentesco. É tudo uma ‘primolandia’. Ser barbacenense, ser mineiro, ser brasileiro, ser latino-americano vai sempre nutrir meus intentos.
SOM: Além dos lançamentos musicais, você tem um histórico de articulação cultural muito forte, promovendo eventos, mobilizações e ocupando espaços. Para você, qual é o papel do artista na transformação social?
Hilreli: Quando nossos olhos se despertam para certas coisas não dá pra voltar mais. Produzir arte queer no interior de Minas, numa cidade com forças conservadoras da tradição agindo, ser LGBTQIAPN+, ser artista, ser agente cultural, ser cidadão, tudo isso. Na verdade, bastava compreender o ‘ser cidadão’ para entender que todos nós precisamos mexer um cadin nessa massa para fazer o bolo crescer.
Minha mãe sempre foi exemplo pela justiça social, ainda que não compreenda nada da lógica partidária, ela sempre agiu desta maneira. Eu cresci com diversos filhos de vizinhas e conhecidas passando temporadas na nossa casa. Cada semana era uma criança, por uma razão e contexto completamente diferentes. Ora a mãe havia separado e precisava recomeçar a vida e não tinha com quem deixar a criança pra trabalhar, ora era pra sair da roça e mudar pra cidade atrás de estudos. Por isso, meu ouvido ficou muito atento para notar que tem muita gente passando por muita coisa, e minha mãe era sempre essa pessoa de estender a mão ou a comprar briga para defender o que acreditava ser justo.
Quando você é artista e começa a entender que tem voz, que pode pautar temas, que pode tocar em feridas e questões sensíveis tendo essa base de formação então, é batata! Não vai dar outra. Quero falar de saúde mental, acolhimento, gozo, revolução, contestação, dignidade, identidade, ancestralidade, ruptura, dança, afeto. Quero mexer nesse balaio. Não dá pra viver, ter consciência, responsabilidade ignorando a contribuição que podemos ter. Pra mim, não dá. E, penso que, todo artista deveria ou poderia estar dedicado a isso. Eu quero entreter e desanuviar, rebolar até o chão sim, mas também me interesso por transformações e elas só vão partir de nós e não do jogo. O jogo tá dado aos interesses de quem já ganha. Eu me importo e preocupo com o outro? Eu tenho empatia? Então, fi, bora lá!
SOM: O que vem por aí? Tem projetos, novas músicas ou colaborações que você pode adiantar para quem acompanha seu trabalho?
Hilreli: Vem aí o disco que minha avó me encomendou quando era menino pequeno aqui em Barbacena.
Um dia, absolutamente do nada, eu nem cantava em casa, nem nada, ela virou pra mim e disse: “por que você não grava um disco? Por que você não canta?” Até hoje me pergunto de onde veio esse desejo dela e porque ela falou isso justamente pra mim. Nunca soube a resposta e infelizmente não tenho como perguntar mais. Mas vem aí o meu primeiro álbum, intitulado ‘Dance Aqui’, fruto de uma pesquisa criativa intensa e resgate da minha criança viada dos anos 90. É uma obra ampla com álbum, curta-metragem, festa e movimentação.
É um reflexo de toda a minha inquietação, angústia e desejo na vida. Foram uns 4 anos de construção e toda uma vida para botar para fora essa cria. Eu tinha o projeto de um outro álbum para produzir e lançar, mas o ‘Dance Aqui’ chegou rasgando quase que como uma erupção. Eu precisava explorar o desejo, falar sobre o desejo. O desejo de me divertir com meus amigos, de dançar, o desejo de gozar, o desejo de me sentir amado, o desejo de brincar, o desejo da utopia por uma revolução. Essa obra passeia por todas essas regiões e instâncias.
É o projeto mais desafiador da vida que já trouxe muitas conquistas, em especial a exibição do curta-metragem na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, sendo o primeiro filme da minha cidade, feito na minha cidade e com profissionais da minha cidade a ser selecionado para o festival. Tem parcerias lindas e a primeira delas a chegar no público é uma gravação com o querido, maravilhoso, generoso, ídolo, Martins que tive a honra de dividir os vocais na faixa que fecha o álbum. Então, vai ter o lançamento disso tudo, está rolando o processo de pesquisa e criação do show, tudo através da Lei Paulo Gustavo e PNAB, ou seja, aquela conversa lá de trás está totalmente ligada a tudo o que falamos aqui agora: é a participação e disposição na construção coletiva que permitiu o acesso à oportunidade de criar, expressar, gerar movimento à minha volta, levar o nome da minha região, da minha cidade, do meu território para romper e cruzar caminhos. É nisso que radicalmente acredito. E eu tô doidinho para compartilhar essa obra inteira com as pessoas, rodar por aí levando muito agito, brilho, luta e diversão porque a vida é curta, breve, pouca e vai passar.
A gente não pode ficar apenas à serviço de entregar, entregar, entregar. A gente tá aqui para mais coisa e usufruir a beleza divina do negócio vida é o principal. Simbora junto!
Ouça!
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