
Por Hyader Epaminondas
Stitch está em todo lugar: de camisetas a garrafinhas, de cadernos a pelúcias. O alienígena azul virou um ícone pop absoluto, estampando todo tipo de produto com um carisma quase impossível de ignorar. Por isso mesmo, eu já esperava um efeito Barbenheimer: gente fantasiada, redes sociais em alta e todo mundo de azul colorindo o cinema. A verdadeira surpresa foi ver esse entusiasmo se manter até a terceira semana de exibição, provando que o apelo do personagem vai muito além do marketing: ele é genuíno, afetivo e multigeracional.
O remake é uma adaptação fiel, quase uma reconstrução quadro a quadro da animação original e isso, longe de soar preguiçoso, funciona muito bem aqui, mesmo com algumas alterações pensadas para dar mais identidade ao live-action. O CGI do Stitch está maravilhoso, ele continua sendo um caos adorável que domina a tela toda vez que aparece, principalmente quando ele mexe suas orelhinhas para dar mais ênfase em sua expressão emocional. Mas, apesar de tudo isso, saí da sessão com um incômodo.
Maia Kealoha, a nova Lilo, ao lado da também havaiana Sydney Agudong, que interpreta Nani, reconstrói com delicadeza o núcleo emocional de um filme que sempre foi sobre amor, desajuste e resistência. Seus olhos carregam o peso de uma infância que já entendeu demais. Seus silêncios, que nos melhores momentos lembram a animação original, dizem mais do que qualquer linha de diálogo.
Só depois de adulta percebi o quanto a história de Lilo também é atravessada por camadas de pertencimento, apagamento cultural e o impacto da colonização no Havaí. Esse subtexto, que me escapava na infância, hoje ressoa com mais impacto, e torna cada gesto de Kealoha ainda mais comovente, sobretudo ao lembrar que este é seu primeiro trabalho como atriz e que ela tinha apenas 6 anos durante as filmagens.
É com igual força que Sydney sustenta a complexidade da irmã mais velha, Nani é uma jovem no limiar entre a adolescência e a vida adulta, prestes a entrar na faculdade, mas ainda lidando com sua própria formação emocional. Jogada precocemente no papel de mãe após a perda dos pais, ela tenta conciliar o luto com a responsabilidade de manter a irmã sob custódia, uma responsabilidade imensa para alguém que mal teve tempo de entender quem é. Há uma cena particularmente simbólica em que Nani se vê entre a assistente social e o agente Cobra Bubbles, prestes a tomar uma decisão difícil. É nesse momento que o filme deixa claro: Nani também é, ainda, uma criança. No fundo, trata-se de uma criança cuidando de outra.
Ohana quer dizer família. Família quer dizer nunca abandonar ou esquecer
Essa ambiguidade da responsabilidade, de alguém tentando amadurecer rápido demais, atravessa toda a narrativa e ganha camadas a partir da relação com Tutu de Amy Hill, a mãe do ex-namorado, que acolhe as irmãs e transmite um saber sobre cuidado, sobrevivência e responsabilidade. Recentemente, tive contato com o conceito de Nêgo Bispo sobre o “conhecimento orgânico”, e ele ecoa aqui com força: trata-se de um saber que não vem da escola, mas da experiência, da oralidade, do vínculo com o território e com os afetos, um conhecimento vivido, que se compartilha no corpo e na prática cotidiana.
Por meio de Tutu, esse saber é absorvido por Nani, que o transmite a Lilo, e que, por sua vez, o repassa, de forma lúdica e inconsciente, ao próprio Stitch. É um ciclo delicado de afeto, dor e resistência que só se sustenta porque todas essas personagens, à sua maneira, compreendem o que significa cuidar mesmo quando ainda estão aprendendo a cuidar de si mesmas.
Por mais irresistível que seja o Stitch, a relação entre as irmãs é o verdadeiro núcleo do filme, sempre tomando cuidado para dividir os holofotes de forma igual entre as duas. Maia entende profundamente quem é essa personagem intensa, esquisita, doce, com um mundo emocional enorme por trás daqueles olhos curiosos. Sua entrega segura tudo: é ela quem carrega o filme, define seu tom e, de certa forma, nos reconecta com o que Lilo & Stitch sempre foi, uma história sobre ser diferente e, ainda assim, pertencer.
E tudo isso ganha ainda mais força com a ambientação havaiana, que não é só cenário, é parte viva da narrativa. As paisagens, os sons, as ausências, os pequenos detalhes do cotidiano local estão ali com carinho e com uma subjetividade ácida, ancorando a história em uma cultura rica, que molda quem Lilo é. Fora da tela, no entanto, essa menina foi literalmente retirada do quadro.
E é aqui que está o problema: cadê a Lilo na divulgação?
A ausência do rosto de Maia nas peças promocionais, especialmente no Brasil, não é acidental, é uma escolha. Diferentemente do material de divulgação da animação original, a nova campanha evita destacar Lilo, uma menina havaiana de traços não eurocêntricos, que não se encaixa no pôster-padrão reciclado há décadas: branco, globalizado e “neutro”. Ao celebrar a cultura havaiana, o mercado ainda decide quem pode ser visto. O Havaí turístico: praias, flores, músicas, é amplamente consumido. O Havaí real, com suas crianças, corpos e vozes dissonantes, segue invisível.
A direção de Dean Fleischer Camp acerta no tom, equilibrando afeto, absurdo e estranheza. Mas o verdadeiro brilho vem das irmãs que ninguém viu no cartaz. Como se nos convidasse a amar a história, mas exigissem silêncio sobre quem a vive. Maia compreende o absurdo de ser criança num mundo que exige posturas adultas e a sua Lilo não busca se encaixar: ela insiste em existir.
Ao lado dela, Sydney entrega uma Nani com nervos expostos, marcada pela tensão entre a juventude interrompida e a responsabilidade precoce. Juntas, elas projetam com perfeição um lar em ruínas tentando sobreviver pelo afeto. Ainda assim, ambas foram apagadas da narrativa visual da divulgação, como se o filme fosse apenas sobre Stitch e uma paleta tropical genérica. Como se ohana não fosse sobre rosto, sobre corpo, sobre pertencimento.
A Disney acertou ao manter o coração da história. Mas errou profundamente ao permitir que o mundo em torno dela se organizasse para invisibilizar suas protagonistas. Não se trata de um erro de marketing, e sim da repetição de uma lógica antiga: a de que meninas racializadas, mesmo quando centrais, devem ser empurradas para a periferia do imaginário.
A história é sobre Lilo, a menina que dança sozinha, que conversa com o que ninguém vê, que sente demais e, ainda assim, insiste em amar.
É uma contradição cruel dentro de um filme cuja mensagem é justamente o oposto: que o afeto é mais poderoso quando abraça o que é diferente. Porque uma história sobre acolhimento não pode permitir o apagamento.