
Por Paola Cantarini, pesquisadora do C4AI – Centro de Inteligência Artificial da USP
Este artigo apresenta um resumo dos principais argumentos do livro Filosofia da inteligência artificial com base nos valores construcionistas do “homo poieticus”, de minha autoria, inspirando-se e dialogando com uma ampla gama de pensadores: Heidegger, Foucault, Deleuze, Guattari, Byung-Chul Han, Yuk Hui, Floridi e muitos outros. Busca refletir uma ambiciosa síntese entre filosofia continental, ética e estudos sobre inteligência artificial.
O conceito central de Homo Eroticus Poieticus é utilizado como metáfora e modelo para desafiar as lógicas dominantes da ética da IA, propondo uma epistemologia não representacional, poética, erótica e pluralista. Perspectivas como a cosmotécnica (Yuk Hui), tecnodiversidade e epistemologias do Sul são incorporadas, superando os paradigmas eurocêntricos da filosofia da IA. A obra aborda questões urgentes relacionadas à IA — vigilância, viés algorítmico, ética, identidade e poder — a partir de um ângulo profundamente humanista e emancipatório, visando não apenas à crítica, mas à transformação. Trata-se de uma construção teórica que busca uma nova dimensão — além da imagem e da linguagem — e que escapa da alienação provocada pela busca da perfeição conceitual.
O teatro filosófico pode ser concebido não apenas como método, mas também como força disruptiva — uma “peste” de insurreição que obriga o pensamento a ultrapassar os limites da linguagem institucionalizada e das formas estabelecidas de existência. Ele abre um caminho para um modo de expressão ativo, poético e anárquico — uma lógica alternativa do devir que resiste à rigidez da forma e do significado. Como a poesia, desafia o fechamento das relações objeto-a-objeto e reivindica a linguagem não como representação, mas como re-apresentação: um espaço onde o sentido surge novamente, não capturado pelos códigos da lógica formal.
Como cultivar uma filosofia contemporânea da inteligência artificial — enraizada no conceito de acontecimento (no sentido foucaultiano) — por meio de uma articulação renovada do vínculo íntimo entre o humano e o técnico? Isso requer reexaminar o vínculo profundo e frequentemente oculto entre a existência humana (filosoficamente compreendida) e o domínio da técnica. Poderíamos conceber a tecnologia não como ferramenta de controle, mas como poiesis — um desdobramento criativo, expressivo e plural?
Como poderíamos reconceber a tecnologia não como dominação, mas como poiesis: um ato de criação, sensibilidade e construção de mundo? Nessa trajetória, o livro busca refletir se o reconhecimento da tecnodiversidade — e dos valores construtivistas embutidos no Homo Eroticus Poieticus — pode ajudar a libertar o potencial humano das lógicas estreitas da utilidade econômica e do controle algorítmico.
Essa abordagem exige uma mudança: da instrumentalização da tecnologia para sua reativação poética como lugar de empoderamento ético, estético e existencial.
A humanidade sempre se transformou por meio da tecnologia. Contudo, nenhuma mudança anterior alterou tão profundamente o tecido social, econômico e político da sociedade como a inteligência artificial. A IA está remodelando a forma como percebemos, pensamos, sentimos e nos relacionamos — não apenas com os outros, mas com o próprio mundo. Ela reconfigura nossa própria experiência da realidade.
Essa investigação convida-nos a repensar a tecnologia moderna sob a lente da tecnodiversidade: não como imposição de uma racionalidade uniforme, mas como campo de diferença estética, cultural e ética. Como os valores construtivistas do Homo Eroticus Poieticus — figurativamente aqui como símbolo de uma agência incorporada, afetiva e construtora de mundo — podem abrir espaço para um engajamento mais livre e sensível com o técnico? Poderia isso ser a base para uma filosofia da IA que empodere em vez de disciplinar, que conecte em vez de calcular, que imagine em vez de reduzir?
O livro propõe uma abordagem metodológica inspirada em Michel Foucault — não por seus quadros mais canônicos, como a arqueologia ou a genealogia, mas por uma dimensão menos explorada de seu pensamento: o teatro filosófico. Esse conceito reflete uma orientação teórica que excede a linguagem e a imagem, ultrapassando os limites dos sistemas conceituais abstratos que frequentemente conduzem à alienação na busca da perfeição lógica. Busca-se restaurar o que há de mais vital na produção do conhecimento: imaginação, criatividade e intuição.
Nesse sentido, o teatro filosófico é concebido como força de ruptura — aquilo que Foucault metaforicamente chama de “peste” — que impulsiona o pensamento além das fronteiras instituídas da linguagem institucionalizada e das estruturas normativas de existência. Pretende-se revelar um novo modo de expressão, ativo e anárquico. Como a poesia, essa forma de linguagem é irredutivelmente plural e indisciplinada, capaz de subverter todas as relações objetivas e desestabilizar significados fixos. Onde as abordagens tradicionais buscam representação, essa metodologia invoca re-apresentação: uma reencenação ontológica do sentido como emergência.
O teatro filosófico foucaultiano torna-se, assim, um experimento metodológico voltado a acessar uma dimensão “diagonal” do pensamento — aquela que escapa à prisão do formalismo lógico sem rejeitar toda forma de lógica. Sob essa luz, alinha-se ao que Deleuze reconhecia no pensamento de Foucault como uma lógica atonal — análoga à música atonal, que rejeita a harmonia e a linearidade em favor de intensidades diferenciais e temporalidades não lineares. Tal lógica não é regida por categorias rígidas, mas por ressonâncias afetivas, silêncios e rupturas. Oferece um modo de pensar não causal, não representacional, profundamente atento à multiplicidade, ao tempo e à arte.
Em consonância com isso, o livro adota uma postura metodológica que valoriza a intuição e o pensamento criativo em detrimento da sistematização. Os conceitos não são tratados como verdades eternas ou categorias estáticas, mas como ferramentas — provisórias, situadas e relacionais. São ativados em eventos específicos; são locais, imanentes e contingentes. Não servem como explicações universais, mas como aberturas, movimentos e resistências.
Esse recuso metodológico ao paradigma logocêntrico e formalista situa esta obra em tensão com tradições analíticas, que frequentemente priorizam a precisão das definições em detrimento da fertilidade conceitual. Aqui, os conceitos são tecidos em redes — não redes de saber fixo, mas de possibilidade crítica. Em vez de transcendência, o livro abraça a imanência; em lugar da abstração metafísica, propõe uma epistemologia enraizada na experiência poética.
Neste espírito poético e filosófico, a metodologia oferece um caminho não rumo à certeza, mas à metanoia — uma transformação de perspectiva. É um método de pensar com as artes, de ver o mundo em diagonal, de reivindicar a imaginação como potência filosófica essencial.
Caminhar na linha: ou no fim da linha?
Com o advento do que se convencionou chamar de Life 3.0, confrontamo-nos com novas subjetividades e formas inéditas de agência emergindo da complexa interligação entre humanos e máquinas. Vivemos hoje em um mundo de hibridismos e, paradoxalmente, talvez sejamos mais antropocêntricos do que nunca — projetando características e emoções humanas até mesmo sobre máquinas, incluindo robôs com design antropomórfico.
Em meio à ascensão da cultura eletrônica e das estéticas digitais — arte generativa, arte computacional, arte impressa em 3D, arte robótica (R-ART) e realidades virtuais imersivas (VR-Art) — a própria natureza da arte está passando por uma transformação profunda. Assim como a pop art de Andy Warhol proclamava que “tudo é arte”, a era digital parece ir além: tudo se torna informação. Teríamos alcançado o ponto da arte total — ou, mais precisamente, de uma arte totalizada?
Esses desenvolvimentos suscitam questões cruciais: qual é a relação entre IA, criatividade e valor artístico? Obras criadas por inteligência artificial — sem intervenção humana — podem realmente ser consideradas “arte”? Tomemos como exemplo o sistema autônomo AARON, desenvolvido por Harold Cohen, que gera imagens originais: essas produções ainda seriam “arte”, mesmo escapando à previsão ou intenção humana? Mais provocativamente: o que vê o dispositivo? Poderiam novas obras computacionais — animadas por memórias maquínicas — revelar uma estética que desafia e expande nossa própria criatividade? Seriam capazes de improvisar, como fazem artistas de jazz ou hip-hop, remixando dados em algo genuinamente novo?
Ao invés de sucumbir a binarismos simplistas — utopia ou distopia, homem ou máquina, pessimismo ou otimismo —, propomos uma jornada baseada na recusa ao pensamento dualista. A dialética hegeliana, fundamentada na síntese de opostos, é aqui deixada de lado em favor de uma lógica diagonal: uma filosofia da diferença, da multiplicidade e da afirmação. Inspirando-se na noção de teatro filosófico de Foucault, esse caminho abraça a polifonia — a presença simultânea de vozes irredutíveis.
Sob essa ótica, a diferença deixa de ser um problema a ser reconciliado e torna-se um espaço a ser liberado. Nosso desafio não é aperfeiçoar o progresso linear, mas romper com a linha — afastar-se completamente dela. O fim da linha não é um fim, mas um limiar.
O inútil e a pontuação algorítmica
Os sistemas de classificação algorítmica que sustentam práticas como policiamento preditivo, sentenças automatizadas e publicidade direcionada estão criando novas categorias sociais: não apenas os vigiados, mas os inúteis. Nesse paradigma emergente, aqueles que recebem pontuações algorítmicas baixas são considerados “resíduos”, “lixo” ou irrelevantes frente às métricas de produtividade e utilidade. Essas classificações não são meramente metafóricas — elas se codificam em exclusões sociais e econômicas concretas.
Byung-Chul Han, em Capitalismo e o impulso da morte, descreve como o capitalismo moderno produz sua própria subclasse de forma algorítmica. Empresas privadas de dados, como a Acxiom, já categorizam indivíduos em perfis baseados em valor, reforçando sistemas de castas digitais. Essas classificações podem determinar acesso a crédito, oportunidades de emprego, taxas de seguro e até mesmo o grau de visibilidade concedido à persona digital de uma pessoa. Nos Estados Unidos, o sistema COMPAS exemplifica essa lógica. Amplamente utilizado em decisões judiciais, ele gera uma pontuação de risco com base em critérios opacos para avaliar a probabilidade de reincidência criminal. No entanto, investigações demonstraram que o COMPAS atribui níveis de risco mais altos, de forma desproporcional, a minorias étnicas, incorporando vieses raciais em seu algoritmo. Os tribunais continuaram a respaldar seu uso, mesmo reconhecendo suas limitações — evidência de como a autoridade algorítmica vem suplantando cada vez mais a discricionariedade judicial.
Esses sistemas achatam a complexidade humana em perfis probabilísticos. Eles obscurecem a historicidade e a singularidade dos casos jurídicos e sociais ao tratarem os indivíduos como variáveis em modelos estatísticos. Isso resulta no que se denomina como “delírio racionalista” — a crença de que o julgamento jurídico pode ser reduzido a equações, desconsiderando as dimensões normativas, interpretativas e poéticas da justiça.
Na Europa, há algumas resistências a essas tendências. A Lei Francesa 2019-222 restringe o uso da IA em análises judiciais ao proibir dados que identifiquem juízes, buscando impedir a modelagem preditiva do comportamento judicial. Embora isso represente um avanço, continua sendo uma exceção em um mundo cada vez mais regido por IA — um mundo que David Restrepo Amariles chama de “virada matemática do direito”.
Globalmente, a disseminação das tecnologias de pontuação algorítmica reflete não apenas uma mudança tecnológica, mas uma mudança ontológica: a emergência de uma sociedade em que visibilidade e valor são calculados, e onde ser visto é equivalente a ser pontuado. Nesse mundo, indivíduos com pontuações baixas tornam-se socialmente invisíveis. São excluídos não por leis explícitas, mas por infraestruturas silenciosas de cálculo.
As implicações éticas são vastas. Esses sistemas não apenas refletem preconceitos sociais — eles os amplificam e os naturalizam. Sua opacidade os protege da contestação. Como alerta Cathy O’Neil, os algoritmos podem se tornar “armas de destruição matemática”, aprisionando indivíduos em ciclos de desvantagem sem prestação de contas.
Em contraste com essa lógica tecnocrática, é urgente desenvolver uma epistemologia da diferença — que valorize a singularidade, a relacionalidade e a localização histórica, em vez da regularidade estatística. O olhar algorítmico deve ser confrontado por um contragolpe: um olhar poético, erótico e político. O humano não deve ser reduzido a uma pontuação, mas resgatado como ser de narrativa, experiência e profundidade ética.
Quantizar as humanidades
Em resposta às especificidades socioculturais do Brasil e à sua posição enquanto país do Sul Global, desenvolvemos em sede de pós-doutorado na USP e no âmbito do Instituto Ethikai uma estrutura regulatória diferenciada. Essa estrutura é informada por anos de experiência acadêmica interdisciplinar — abrangendo desde compliance e governança até pesquisas pós-doutorais em inteligência artificial. Seu objetivo central é permitir a proteção sistêmica dos direitos fundamentais que podem ser impactados por aplicações de IA, sem sufocar a inovação, evitando assim uma lógica de soma zero.
Diferentemente do AI Act da União Europeia, que opera com uma rígida classificação de riscos, essa abordagem avalia os riscos caso a caso, adaptando proporcionalmente as estratégias de mitigação. Por exemplo, enquanto um chatbot pode parecer de risco baixo em termos gerais, ele pode representar alto risco em contextos específicos — como o suporte à saúde mental. O reconhecimento facial, geralmente considerado de alto risco, pode oferecer pouco perigo se utilizado, por exemplo, para rastrear gado. Assim, uma lente flexível e contextual é essencial.
Um caso ilustrativo é o do chatbot TESSA, desenvolvido pela National Eating Disorders Association nos Estados Unidos. Inicialmente visto como uma ferramenta de suporte à saúde mental, ele rapidamente foi classificado como de alto risco devido a sérias preocupações éticas e foi desativado. Esse exemplo destaca a necessidade de avaliar o risco tecnológico não por categoria, mas por contexto.
Os modelos dominantes do Norte Global — como a ideologia californiana — são insuficientes. O Brasil deve ir além de seu papel periférico na inovação global. É preciso imaginar futuros não ancorados na imitação, mas no pensamento descolonizado — onde o universal seja acessado pelo local.
Sonhar é necessário. Como escreveu Rubem Alves em Religião e repressão, há um “direito de sonhar”. Esse direito resiste à troca moderna da incerteza pelo conforto — à renúncia da imaginação em favor de um racionalismo rígido:
“Sonhamos com o voo, mas temos medo das alturas. Para voar, é preciso amar o vazio. No entanto, as pessoas preferem as gaiolas ao voo porque as gaiolas contêm certezas.”
Abraçar a poiesis é abraçar esse vazio — não como niilismo, mas como potência. Inovar, como voar, exige a coragem de abandonar as certezas e acolher horizontes abertos. Este é o núcleo epistemológico e ético do Homo Eroticus Poieticus: um ser definido não pela dominação, mas pela imaginação, vulnerabilidade e criação. Nas humanidades, isso significa adotar uma ética quântica — uma ética processual e contextual, inspirada em pensadores como James Der Derian e Alexander Wendt. Significa aceitar antinomias e contradições, como já fez a física moderna. Exige abraçar a tecnodiversidade, a crítica decolonial e a resistência poética.
Essa mudança não apenas restaurará a relevância das humanidades na era da IA — tornará as humanidades indispensáveis.
Este trabalho propôs o desenvolvimento de uma prática filosófica — enraizada em uma epistemologia poética e hermenêutica, em uma filosofia do acontecimento, como vislumbrada por Foucault.
Nessa concepção, a filosofia não é apenas teoria, mas uma forma de design conceitual — um engajamento crítico, aberto e transformador com o mundo. É um modo de investigação comprometido não com respostas, mas com o poder infinito do questionamento. Essa prática é heterotópica, forjando um espaço de possibilidades, um espaço para a diferença além dos limites da racionalidade tecnocientífica.
Vivemos uma era marcada pela simultaneidade e pela justaposição, onde o distante e o próximo, o real e o virtual coexistem lado a lado. Nesse ambiente fragmentado e acelerado, como recuperar um modo de pensar que afirme a diferença em vez de apagá-la? Poderia a tecnologia — se reimaginada como poiesis e não como dominação — oferecer-nos novas visões de liberdade, solidariedade e cuidado?
A resposta está na arte, na poética e no compromisso com um pensamento do “fora”. Um pensamento que recusa o fechamento. Que resiste à classificação, à sistematização e à redução da vida a métricas. Que escuta o não dito, o excesso, o vestígio. Que ouve o Outro onde os dados só ouvem o Mesmo.
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