
Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP
Para alguns historiadores, essa proposição pode até não parecer totalmente absurda, porém, é bastante complexa. Isto porque o uso da partícula “se” introduz a ideia de cenários hipotéticos – uma ação, muitas vezes, distante da abordagem metodológica da história, enraizada na análise do fato, ou ainda, do que efetivamente aconteceu. O exercício reflexivo ao explorar o “se” arrisca-se às especulações, anacronismos e simplificações, mas, também, abre-se à causalidade e à compreensão de que eventos ou decisões moldam o curso da história.
Nesse contexto, a provocação “E se o Museu Afro Brasil não existisse?” força ao entendimento sobre qual seria o impacto da ausência de um espaço essencial para preservar, valorizar e disseminar a história e a memória de pessoas negras. O questionamento nos confronta com a possibilidade de um vazio histórico e cultural, onde as contribuições afro-brasileiras talvez ficassem ainda mais escanteadas. A não existência do museu levantaria perguntas inquietantes, tal como: quais seriam os efeitos para a representatividade, para o combate ao racismo e para as relações étnico-raciais? Além disso, sem o museu, muitos artistas, educadores e pesquisadores talvez não encontrassem um espaço para expressar, estudar e celebrar suas memórias.
A questão disparadora aqui foi inspirada no texto E se a África não existisse?, de Elísio Macamo, publicado na revista Ideias. Nesse artigo, o mote central é: o que realmente conta como conhecimento, especialmente no que diz respeito à África? Para o autor, esse problema, imerso na produção teórica, tensiona o real e o possível e, ao mesmo tempo, envolve silenciamentos e negligências. Macamo discute se a visibilidade do que existe não é, de certa forma, uma função do que é esquecido ou marginalizado, levando a uma “morte epistemológica e metodológica” de outras realidades.
No caso do Museu Afro Brasil, essa mesma pergunta, abstraída nesses mais de 20 anos de existência da instituição, leva a um exame de percurso e, simultaneamente, de investigação sobre suas funções históricas, sociais e políticas. Considerado um espaço de valorização da identidade afro-diaspórica, o museu toca em memórias difíceis no (e para) o território da branquitude – o Parque Ibirapuera.
Ironicamente ou não, alguns “mitos paulistas” estão por ali, entre eles: a modernidade do complexo arquitetônico do Parque (erigido em comemoração ao IV centenário da cidade), o monumento à Revolução de 1932, a avenida Pedro Álvares Cabral e, por fim, o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret. Todas são memórias intencionalmente construídas para e por aqueles que se veem representados por elas – a exclusão de indígenas e negros parece ser mais do que simbólica neste lugar.
Assim sendo, em 2004, quando surgiu o Museu Afro Brasil, criou-se, neste território, uma velada disputa de memórias e narrativas. E acrescente-se mais retesamento, quando o museu se propôs a conectar arte, história e espiritualidade. Quando sua exposição de longa duração tratou do trabalho, do profano, do sagrado, da pluralidade e das artes visuais, em meio às paredes coloridas e acumulação de objetos numa disposição diversa à estética modernista, o estranhamento estava ali: lembrar o navio tumbeiro e os instrumentos de torturas da escravidão era ato ousado.
Convêm, assinalar, então, que a memória de negros e negras no mundo é profundamente moldada por séculos de escravidão, colonialismo e marginalização, mas também marcada pela resistência, resiliência e criatividade. Numa perspectiva eurocêntrica, a discussão sobre essa memória de exclusão é até, de modo condescendente, permitida nas margens, mas não é algo desejável em territórios “centrais” como o Parque Ibirapuera.
Notadamente, sabe-se que a história de negros e negras sempre foi minimizada em currículos escolares, museus e espaços de memória em várias partes do mundo (e não tão somente no Brasil). Com frequência, a construção de uma memória hegemônica secundariza os impactos do colonialismo, os genocídios culturais e as violações dos direitos humanos que continuam marcando a diáspora africana. Esse apagamento dificulta a reconstrução de identidades culturais e perpetua desigualdades raciais. Dia após dia, as pessoas negras sempre estão reconstituindo suas memórias.
Outro ponto importante é a crítica ao uso superficial ou instrumental da memória negra em espaços institucionais – quem não conhece aquela salinha isolada e cheia de objetos etnográficos e antropológicos dos grandes museus? Museus e monumentos frequentemente transformam histórias de resistência em narrativas estáticas e descontextualizadas, que não dialogam com as lutas contemporâneas contra o racismo e a desigualdade. É essencial que a memória não seja apenas celebrativa, mas também um instrumento de transformação social.
Nessa direção, comunidades negras têm resistido a esse processo de invisibilidade e de descontextualização. Museus, tais como, o Museu Afro Brasil (São Paulo), o National Museum of African American History and Culture (Washington), o Apartheid Museum (Joanesburgo), District Six Museum (Cidade do Cabo), entre outros, têm exercido funções cruciais na preservação da memória negra. Além disso, movimentos culturais, com enfoque na ancestralidade através da música, literatura e arte contemporânea, tornam-se cada vez mais estratégias fundamentais para retratação de histórias negras.
Hoje, movimentos sociais como o Black Lives Matter nos EUA e iniciativas locais em países como Brasil e África do Sul têm colocado a memória no centro de suas pautas. A memória é usada não apenas como ferramenta de reconexão com o passado, mas também como base para reivindicações de justiça, reparação e equidade no presente. O debate sobre a memória de negros e negras no mundo é, portanto, um campo de disputa que requer não apenas a preservação do passado, mas também um engajamento crítico com as demandas atuais.
Nesse sentido, o Museu Afro Brasil tem integrado esse processo de mudança epistemológica, reivindicação e de legitimação de memórias. Criado por iniciativa de Emanoel Araújo, a partir de sua coleção particular, o museu sempre teve como intenção destacar as contribuições africanas na formação da sociedade brasileira – e, tudo isso, abrigado em edifício projetado por Oscar Niemeyer, como já dizemos no “centro da memória branco-cêntrica”. Dos seus quadros iniciais, surgiram artistas, educadores e diversos intelectuais preocupados com o legado da cultura afro-diaspórica.
Incontornável, Emanoel, nascido em Santo Amaro da Purificação, tornou-se figura central no histórico do museu e na arte brasileira: ele começou sua trajetória artística como gravurista e escultor, concomitantemente, ocupou posições, como diretor do Museu de Arte da Bahia e da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Durante sua gestão na Pinacoteca, por exemplo, Emanoel foi responsável por modernizar a instituição e ampliar seu alcance cultural.
Após 18 anos à frente do Museu Afro Brasil, em 2022, ocorreu um movimento de inflexão: a morte de Emanoel Araújo. O Afro Brasil ganhou, então, o nome de seu fundador. Já a escolha de Hélio Menezes como diretor-artístico mostrou-se como caminho para continuidade e, ao mesmo tempo, renovação. Nascido em Salvador, Menezes é um intelectual de postura crítica e sofisticada. Seu percurso envolve contribuições, tais como, a co-curadoria da exposição “Histórias Afro-Atlânticas”, realizada no MASP e no Instituto Tomie Ohtake em 2018, na qual as conexões culturais entre África, Brasil e o Atlântico foram exploradas. Além disso, ele foi curador da 35ª. edição da Bienal de São Paulo “Coreografias do Impossível”, curador de arte contemporânea no Centro Cultural São Paulo e participou de inúmeros eventos nacionais e internacionais.
Sob sua gestão, o Museu Afro Brasil tem buscado um olhar contemporâneo para sua programação e seu acervo. Menezes tem enfatizado a importância de abrir canais de diálogo com artistas, pesquisadores e intelectuais afro-brasileiros e da diáspora, promovendo uma abordagem inclusiva e inovadora. Assim, ele inaugurou novas exposições que exploram narrativas plurais e tensionam fronteiras entre arte, memória e história, bem como são mostras que se inscrevem em um projeto museológico voltado à escuta, à experimentação e à interdisciplinaridade.
Além disso, celebrações como o aniversário de 20 anos do museu destacaram sua relevância contínua, com exposições que conectam a arte popular brasileira e africana, sem recorrer a saques, mas sim a réplicas e colaborações contemporâneas. São exposições emblemáticas que conectam a história afro-brasileira com a diáspora africana global.
Em suma, a resposta à pergunta “E se o Museu Afro Brasil não existisse?” envereda-se por constatar que a ausência de espaço apropriado para o exercício de uma memória viva e provocativa seria um grande prejuízo cultural – um meio a menos na luta e na quebra de estruturas de poder e, acima de tudo, um lugar a menos onde seja possível criar futuros mais inclusivos. Porém, o Museu existe e tem se tornado cada vez mais instrumento de pesquisa, educação, extroversão e, acima de tudo, território de debate sobre as relações étnico-raciais – um espaço de resistência e de justiça social.
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