
Por Lohuama Alves
Cláudia Di Moura é mais do que uma intérprete consagrada — é uma artista que faz da sua trajetória um verdadeiro manifesto. Com uma presença cênica marcante, seja nos palcos ou nas telas, sua atuação carrega a força de um corpo que traduz gerações de resistência, ancestralidade e poesia. Nascida em Salvador, a atriz vem conquistando espaço em diferentes linguagens do audiovisual brasileiro, sempre com um olhar crítico e profundamente conectado à sua história.
Em entrevista exclusiva à Cine Ninja, Cláudia compartilha com franqueza e sensibilidade o que move sua arte. Para ela, a ancestralidade afro-indígena não é apenas pano de fundo: é base, impulso, bússola. “Da mesma forma que molda meu estar no mundo: demanda de mim que eu seja mais atenta à dinâmica racial dos ambientes e projetos dos quais faço parte, ao mesmo tempo que me presenteia com um repertório único, fruto desse encontro de raízes ancestrais no meu DNA. Ter o entendimento de quão mágica e assombrosa é a minha linhagem é um dos meus maiores recursos na arte e na vida.”
Em tempos em que a diversidade ainda é tratada como exceção e não como regra, ela se mantém atenta ao jogo da indústria. Sem ilusões, reconhece os avanços, mas também denuncia os limites do sistema: “Por força da lei e da maravilhosa pressão social, o audiovisual está sendo obrigado a pensar a diversidade como parte das suas estratégias. Há artistas que já têm compromisso com essa agenda há muitos anos, mas o audiovisual é uma indústria tocada por executivos, e para eles a prioridade é outra. Precisamos sempre nos lembrar de que leis estão sempre sendo criadas e derrubadas, então nós temos que nos manter vigilantes, por maior que seja o cansaço. Quem é posto ao pé da mesa no banquete de privilégios não pode interpretar as migalhas que vêm de cima como uma chuva permanente de fartura, nem pode aproveitar um instante de silêncio para cochilar no meio da batalha.”
Ao longo da carreira, Cláudia viveu personagens que a transformaram profundamente. Cada papel, uma travessia. “Todos os papéis que já representei tiveram um grau de impacto transformador que não pode ser ranqueado. Há sempre um grande aprendizado neste ritual de compartilhar meu corpo com uma personagem, porque isso vai momentaneamente moldar meus gestos e minha voz na construção de uma outra identidade. Trata-se de um exercício radical de empatia, e nesse exercício todas as personas têm a mesma relevância, na medida em que todas refletem a complexidade e a diversidade do que é ser humano.”
Com um olhar comprometido com a coletividade, a artista celebra o protagonismo feminino nos dois novos filmes que vai estrelar — Irmãs de Sangue e Tempo Meio Azul Piscina —, ambos dirigidos por mulheres e com equipes diversas. “Eu celebro o momento que vivemos, no qual as mulheres têm podido assumir o controle das suas narrativas, em oposição à voz onipresente do patriarcado. Fazer parte desses dois filmes, também com equipes majoritariamente femininas, inclusive com a presença numerosa de mulheres trans, é algo que me motiva e me orgulha.”
Sobre os critérios na escolha de projetos, ela é enfática: precisa haver afinidade com o discurso. “Eu procuro personagens, narrativas e projetos cujos discursos eu possa compactuar, para que a voz deles amplifique a minha, e vice-versa. Isso significa que eu posso inclusive interpretar uma figura controversa que diga o exato oposto de tudo em que eu acredito, desde que isto seja posto sob crítica e venha a enriquecer as discussões que me interessam e das quais eu faço parte. Além disso, é claro que me seduzem histórias bem contadas, com uma afiada engenharia de ideias e palavras.”
Questionada sobre o etarismo feminino e a invulnerabilidade masculina, Cláudia aponta o cerne da desigualdade estrutural com precisão: “O grande desafio é que nós todos vamos morrer, e o patriarcado, não. Nossa luta é para sobrevivermos a ele, ou seja, levantar nossas conquistas com a consciência de que jamais poderemos descansar sobre os louros, pois eles não são definitivos e demandam vigilância constante”, disse ela.

Autora e amante da poesia, Cláudia entende a palavra como ferramenta estética e política — um território de encantamento e resistência. “A palavra preciosa me encanta. Não apenas aquela que vem da boca de uma personagem, mas toda a poética discursiva que vai muito além das falas. Isso significa um grande apreço pela gentileza na comunicação, pela escolha caprichada e intencional do vocabulário, em que cada palavra é polida e incrustada com a precisão de uma joia. Porque até por trás dos silêncios de uma cena existe o labor sofisticado de uma rubrica.”
Cláudia se dedica atualmente a dois longas que exigem muito de sua entrega emocional. Para ela, não há zona de conforto na atuação: “Não existe zona de conforto para uma atriz. Estou sendo acolhida majestosamente pelas duas equipes, os elencos são incríveis, tenho recebido muita escuta. Mas o gesto de atuar, embora amparado por estudo e técnica, passa longe de qualquer conforto — e isso é um bom sinal.” Mesmo com a rotina intensa, ela busca manter viva a chama da sensibilidade: “Neste momento não existe o ‘entre’, pois estou saindo direto de um projeto para o outro, e voltando. Mas sempre há oportunidade de ir ao cinema, ver exposições, fazer minhas leituras e ter as mais enriquecedoras trocas com os colegas de filme.”
As temáticas dos dois filmes são potentes. Irmãs de Sangue, baseado em um caso real de assassinato, exigiu uma preparação intensa e dolorosa: “Fiz uma longa pesquisa sobre as irmãs Papin, o caso real no qual o filme se baseia, desde artigos relatando o crime em si até a extensiva análise de Lacan. A crueza dos atos dessas duas mulheres é algo aterrador, e a minha personagem tem um papel fundamental na fermentação do ódio que culminará nos assassinatos.”
Já Tempo Meio Azul Piscina mergulha no luto e na superação: “Todos nós temos uma história de perdas e de luto. Eu já tive uma parcela de vivência suficiente para a composição. Mas é claro que a tragédia de uma mãe que perde a sua cria, independentemente da estrada de cada uma, ressoa em todas nós.”
Cláudia encerra com uma mensagem que é quase um manifesto coletivo: “Eu sou uma mulher com um pé em cada século e posso aconselhar que estejamos atentos a nossas demandas, nossos comportamentos, nossos aprendizados. Mas também nos atentemos ao outro, na justa medida, para que não percamos jamais o senso de comunidade, de aldeia, de quilombo e de nação.”
Assim é Cláudia Di Moura: uma artista que atua com o corpo, a palavra e a memória. Que honra o passado para construir futuros possíveis. Que transforma cada cena em território de cura, embate e afeto.