
Por Layla Alves
A cidade parece silenciosa no meio da noite, como se respeitasse a hierarquia da lua acima dos prédios.
Está escuro o suficiente para que não faça diferença se você mantém os olhos abertos ou fechados — a visão será a mesma: nada.
Você está ao lado do seu amigo. Talvez do seu namorado. Ninguém diz nada, vidrados na cena que se desenrola. Chocados demais para tentar transmitir alguma reação. Parte de você quer se levantar, agarrar sua companhia pela mão e sair daquele lugar. Fingir que tudo havia sido um sonho febril.
Mas não tem como. A cada segundo, você se vê mais envolvida com aquilo. Um vento gélido beija o seu pescoço e você se encolhe. Medo, antecipação, dúvida. Cada emoção corre nas suas veias enquanto seu coração acelera.
O barulho chega baixo, como se escondesse um susto à espreita. Passos pesados em folhas secas de outono, o cenário bem conhecido. O ritmo aumenta como numa música, eles estão desesperados, correndo por suas vidas. Você sabe que é inútil, sempre soube; há uma diversão masoquista em ver eles tentarem.
O assassino levanta o machado e enfia na cabeça da vítima. O sangue jorra como doces de uma pinhata de aniversário. É nojento, é assustador. Um leve tremor se instala debaixo dos seus ossos. E, de repente, uma voz grita ao fundo:
— É O LEITÃO!
Essa foi a quebra de expectativa que atingiu não só a mim, mas a uma sessão inteira no cinema do shopping mais antigo da minha cidade, que exibia o filme de terror menos aguardado do momento: Ursinho Pooh: Sangue e Mel. Dirigido e escrito por Rhys Frake-Waterfield, o longa-metragem de 2023 conta a história do Ursinho Pooh em uma versão de terror, misturando as categorias trash e slasher.
Corta a cena! O que é trash?
Antes de prosseguir com a análise da visão visceral (literalmente) dessa categoria cinematográfica em ascensão, é preciso definir o que se encaixa na divisão de filmes trash: o termo se refere a obras de baixo orçamento, atuações duvidosas e enredos absurdos.
Caio Cabral, de Florianópolis, tem 23 anos e faz parte de um grupo de fãs de terror. Grande consumidor do gênero, ele assistiu ao seu primeiro filme horripilante, A Hora do Pesadelo, aos 6 anos de idade e não parou mais.
“Por incrível que pareça, tem muita gente que diz que (o gênero) trash só tem filmes ruins. Eu discordo. Sim, tem muitos filmes ruins, mas também se encontram algumas coisas boas”, disse ele ao ser questionado sobre a medição de qualidade desses exemplares. Pois o trash é o inverso no mundo do cinema. Quanto pior, melhor. Todavia, é preciso que seus idealizadores saibam como fazer graça de si mesmos. O texto tem que ser irreal, mas não tão complicado. O ritmo deve ser dinâmico e os assassinatos, divertidos.
Já os slashers, que tiveram seu auge nos anos 80, são um subgênero do terror onde várias pessoas morrem de maneira grotesca (e explícita) pelas mãos de um assassino cruel, como Jason Voorhees.
A união do trash com o slasher é quase inevitável. Nos recentes casos de reinterpretação dos desenhos infantis, esse casamento ocorre de maneira mais sanguinária do que em Kill Bill. As mortes nem sempre fazem sentido — essa é uma palavra que devemos esquecer ao assistir a um longa sobre um urso mutante ou um rato de meio metro de altura que rói pessoas —, mas não falham em arrancar risadas de descrença dos telespectadores ou até mesmo um suspiro agoniado ao ver a dor dos personagens.
Bom, isso, caso o intérprete consiga exprimir alguma reação. Filmes trash não são conhecidos pelas boas atuações. Porém, quem assiste a esse tipo de terror não busca uma performance digna de Oscar, e sim uma diversão rápida, espalhafatosa e em tons de gore.
Ao menos era isso que eu e meus amigos procurávamos naquela noite. Nós e a outra única pessoa que estava na sala de cinema: uma mulher na casa dos 30 anos, que saiu antes da metade do filme e nunca mais voltou.
Eu não pude culpá-la. Entretanto, acreditei que a moça havia perdido uma oportunidade única: assistir ao Ursinho Pooh e seus amigos dando uma de serial killers, matando um grupo de mulheres inocentes (mas burras, bem naquele padrão de terror americano) e dar boas gargalhadas.
Eu estava errada.
Mais sangue, menos qualidade
Um ano depois, estreava a continuação. Ursinho Pooh: Sangue e Mel 2 tratava a primeira obra como um filme dentro do filme, à la Pânico, que fazia referência a um crime real naquele universo: o Massacre dos Cem Acres. O longa seguia o protagonista Christopher Robin e como ele lidava com as acusações de ser o responsável pelos homicídios – quando, na verdade, foi o Ursinho Pooh e sua turminha. Rhys Frake-Waterfield retornou como diretor, enquanto o roteiro ficou por conta de Matt Leslie, que, ao menos, tentou incorporar migalhas de coerência na história dos personagens.
A sala estava um pouco mais cheia, embora não chegasse a preencher nem metade da sessão. Todavia, diferente do primeiro lançamento da franquia, a obra estava sendo exibida em mais de uma rede de cinema na minha cidade. Assisti ao novo capítulo com os mesmos amigos da última vez; somente um deles havia desistido, traumatizado demais pelo péssimo nível do primeiro filme. Outros dois, um graduando em medicina e uma veterinária em formação, toparam o desafio.
A primeira parte parecia saída diretamente do estúdio de um diretor mediano dos anos 1990: todos em cena eram brancos, todos caricatos demais, as mulheres sexualizadas ao extremo e a ambientação poderia se confundir com qualquer floresta dos Estados Unidos. Cada aspecto gritava “ridículo, não leve a sério!” Na segunda parte, o que eu assistia parecia um pouco mais atual. Os atores tentavam demonstrar um talento escondido sob as camadas de irracionalidade da trama, o enredo buscava conectar algumas pontas soltas e a objetificação dos corpos, pelo menos, ocorreu tanto com homens quanto com mulheres – algo que, por si só, não é um ponto positivo. Mas, em meio àquela aberração e muita pipoca, não havia bons aspectos além da incredulidade.
Saí daquela sessão rindo como se tivesse assistido a uma comédia. Os assassinatos não me mantiveram acordada de madrugada, a história parecia saída de um quadro humorístico, e os vilões, conhecidos como animais cientificamente modificados, eram ridículos demais para causar medo. Pensei: é isso, a diversão chegou ao fim. Porque, de verdade, quem iria investir nesse mercado?
Até que surgiu o primeiro teaser de The Mouse Trap. Em português, Mouse Trap: A Diversão Agora é Outra, dirigido por Jamie Bailey, a mente por trás do filme sem sentido Viralize ou Morra (2022). O longa contava a história de um gerente, fã do clássico, que acaba possuído por um espírito maligno que reside na máscara do ratinho.
Um filme de terror, trash e slasher, do Mickey.
Os idealizadores dessa categoria do cinema não estavam escolhendo apenas um ou outro animalzinho amado por gerações anteriores. Eles estavam mexendo com o maior símbolo da Walt Disney Studios. Aquilo parecia inacreditável. Quem, em sã consciência, bateria de frente com os advogados do lugar mais feliz do mundo? Tive que pesquisar sobre o assunto.
E foi aí que eu soube: A Maldição dos 100 Anos era real.
E estava acontecendo naquele exato momento.
A sua infância vai ser estragada e vamos rir disso
A Maldição dos 100 Anos é o apelido carinhoso que dei para o fenômeno dos filmes trash (no bom português, ruins) protagonizados por personagens outrora fofos e amados pelo público — e tudo isso respaldado pela Lei de Proteção de Direitos Autorais dos Estados Unidos. São 95 anos para a liberação oficial e uma média de 2 a 5 anos para a produção das releituras gore-tescas.
Vamos tomar como exemplo Steamboat Willie (O Vapor Willie, na tradução), que apresentou oficialmente o Mickey ao mundo — embora ele já tivesse aparecido em outras produções menores. Lançado em 1928, o curta foi uma virada de chave para seu criador. Walt Disney havia acabado de perder os direitos autorais de seu primeiro personagem, Oswaldo, o Coelho Sortudo, para o distribuidor Charles Mintz.
O ratinho marinheiro nasceu de uma colaboração entre Walt e Ub Iwerks e foi um sucesso entre o público e a crítica — a animação foi a primeira do gênero a sincronizar áudio e imagem, representando uma evolução da arte na época.
A popularidade do Mickey só cresceu e, com o tempo, ele ganhou mais companheiros, suas famosas luvas vermelhas e uma série de curtas. O final dessa história você já conhece — ou achava que conhecia.
Em 2024, enquanto todos comemoravam a chegada do ano novo, eu imagino os executivos da Disney correndo de um lado para o outro, talvez até tomando uma naquele clima de saideira de despedida, se perguntando como fazer o relógio voltar no tempo. Afinal, aquela virada abriu um precedente nunca antes visto para os personagens da empresa: os direitos autorais da primeira versão do Mickey haviam expirado.
Em juridiquês, isso significava que a obra havia caído em domínio público. Segundo o site oficial de copyright do governo dos Estados Unidos: “Como regra geral, para obras criadas após 1º de janeiro de 1978, a proteção de direitos autorais dura a vida do autor mais 70 anos adicionais. Para uma obra anônima, pseudônima ou contratada, os direitos duram por 95 anos a partir da publicação ou 120 anos desde a criação, o que expirar primeiro.”
Na prática, para leigos e especialistas, isso significava algo maior. Algo pior. Algo… assustador.
Os diretores de filmes trash podiam, agora, fazer obras sobre um rato assassino. Além de The Mouse Trap, em 2025 foi lançado Steamboat Willie – Terror a Bordo. Ambientado em Nova York, o filme acompanha um grupo de jovens que é atacado, durante um passeio de balsa, por uma criatura sanguinária: um camundongo matador preso no convés há décadas — uma alfinetada direta nos direitos outrora resguardados pelos advogados implacáveis da Disney.
O projeto é recheado de referências vexatórias ao estúdio e até aos fanboys da marca, com personagens vestidas de princesas que fazem conteúdo adulto e a aparição de um homem bonzinho chamado Walt. A direção ficou por conta de Steven LaMorte, conhecido pela versão satírica do Grinch em O Malvado – Horror no Natal (2023). David Howard Thornton, ator que deu vida ao palhaço Art em Terrifier e ao monstro verde no filme citado, interpreta o roedor mais famoso do planeta. E isso sem contar os jogos de terror e curtas-metragens inspirados no tema.
Engana-se quem pensa que o sangue estava jorrando só dos camundongos. Diversas obras fazem parte da lista de desejos dessas mãozinhas ansiosas por capitalizar ainda mais em cima de personagens já engolidos pelo capitalismo.
Um urso tarado por mel e BDSM.
Um marinheiro deformado viciado em espinafre.
Peter Pan: Pesadelo na Terra do Nunca já foi lançado no exterior. Bambi: The Reckoning, que transforma o pobre cervo órfão em uma máquina de matar, tem estreia marcada para 2025 nos Estados Unidos. Pinocchio: Unstrung promete mostrar o simpático boneco de madeira vestindo a pele das vítimas para, finalmente, se tornar um menino de verdade.
E quem sabe o que mais está por vir?
Se depender de Scott Chambers, produtor de Ursinho Pooh: Sangue e Mel, essa tendência cinematográfica está longe de acabar — e talvez só aumente a fúria dos reclamões que choram pelas novas versões dos clássicos, como se suas memórias de infância estivessem sendo violentadas (curiosamente, eles parecem bem mais irritados com os live actions que preservam a história original do que com essas aberrações sangrentas). Em entrevista à revista Variety, Chambers declarou: “Como fãs de terror, nós adoraríamos fazer um Vingadores só com vilões.”
“Pra mim, o trash ser irreal é o que dá o grande diferencial”, conta Caio, um consumidor assíduo de terror. Quando perguntei se ele acreditava no crescimento do consumo desse subgênero, respondeu com um otimismo que, imagino, deve ecoar nos corações dos diretores mencionados anteriormente: “Sim, de certa forma eu acredito sim que ele [o consumo] está aumentando, ainda mais agora com essa onda de fazer adaptações dos filmes da Disney como o Ursinho Pooh, Peter Pan… E sempre tem um ou outro que quer ver: ‘Ah, como seria um filme da Pequena Sereia assassina? Já que teve do Ursinho Pooh, eu quero ver dela também.’ Eu acredito [no consumo].”
Aparentemente, o público existe — e é maior do que se imaginava. O Twisted Childhood Universe (em português, Universo Infantil Distorcido) está sendo desenvolvido como o grande multiverso desse subgênero, nos moldes do MCU — ou melhor, da Disney — onde os personagens de diferentes histórias se encontram em um mesmo universo grotesco. E o grande evento já tem nome e data: Poohniverse: Monsters Assemble, o primeiro crossover que promete reunir Ursinho Pooh, Pinóquio, Bambi e Peter Pan em uma só carnificina, com estreia prevista ainda para este ano.
A dúvida que fica é: essas trasheiras realmente têm força para levar o público ao cinema, ou vão lucrar mesmo é no streaming e se espalhar pelas redes sociais? No Brasil, a maioria desses títulos ainda está indisponível nas telonas, mas o catálogo da Prime Video já reúne boa parte deles em outros países.
Na visão de Caio Cabral, a diversão exagerada vale o preço do ingresso: “Falando de trash, o que me faz ir até o cinema é justamente a diversão. Quando você vai acompanhado também. Até sozinho a gente acaba se divertindo com esse tipo de filme, tipo ‘nossa, que coisa absurda, irreal’. Mas é divertido.”
No fim das contas, uma coisa é certa: A Maldição dos 100 Anos está assombrando criadores e fãs de animações infantis.
Reza a lenda que o seu desenho favorito será a próxima vítima.