Por Dani Balbi*

Se a abordagem funda o objeto, em se tratando de fotografia em movimentos, então, serão as decisões sobre limites, bordas e contorno, em última instância, responsáveis por criar o filme.  

E tanto é verdade que, quando a sequência de abertura em Emília Pérez utiliza o recurso de focalização — relativamente previsível – para nos conduzir da imensidão de uma presumida Cidade do México à contiguidade física e simbólica em que se encontra Rita, pensei: “ lá vem”! Não demorou muito pra que o frenesi típico de certa qualidade de vaudeville rompesse  dos planos fechados para  expandir o número dançante e sussurrado que nos informa  a desgraça da personagem. Desgraça que, pretendendo-se justificativa, funciona mesmo como pretexto para que  Emília, seu nome morto,  sua situação embaraçosa e o plano que tenciona  executar sejam introduzidos. Em um intervalo relativamente curto na disposição das duas horas de filme, as motivações  pelas  quais a protagonista recruta  advogada através de sequestro, coação e aliciamento são reveladas: dar sequência à sua transição  de gênero, nos termos de uma cirurgia de redesignação. 

Seria admissível sustentar que essa compressão de eventos dramaticamente relevantes se deve à necessidade de instalar  a crise inaugural o quanto antes, a fim de capturar a audiência e investi-la no desenrolar do conflito. Ocorre, todavia, que a resolução simples desse “imbróglio” passa por um  feirão da cirurgia plástica, uma artificial resistência ética vencida com mais coação, muito dinheiro, despojo e pelo do descarte da vida pregressa de Emília. 

Adiante, outros conflitos e eventos  se insinuam para que, resolvidos, apenas ensejem mais diligências, de forma sucessiva  e apenas frouxamente  articulados aos motivos de Emília  durante seu nome morto.  E é por isso que saímos do cinema com a sensação de que, apesar dos esforços pirotécnicos, das performances bem executadas e de uma qualidade técnica digna de nota, o filme é frágil. É porque ele se recusa a aprofundar expedientes dramáticos, se nega a testar mecanismo pelos quais pode conferir maior elasticidade ao conjunto  através da aposta em ao menos um dentre esses  tantos eventos, conflitos e situações dramáticas cuja eficiência é episódica, nunca estrutural. 

Aqui, precisamos retomar o problema da abordagem.

Como professora de narrativa e dramaturgia em audiovisual, minha tarefa é  refletir com meus alunos como a escrita do roteiro, em todas as fases, concretiza a  perspectiva dramática sobre a materialidade do filme propriamente considerado – luz, quadro, campo e textura, transições, direção, elenco, contracena etc. –; como a estória se conforma e se atualiza, pois, nesses termos. Não tem mistério: se há empenho em  construir personagens complexas em camadas e fraturas, universos ficcionais potentes em sua inteireza, diversidade e possibilidades, situações e eventos encarados na multiplicidade do que podem produzir e reagir, temos um ótimo começo. Em seguida, cabe flexionar, experimentar, resenhar, desenvolver e descartar, até que uma certa dinâmica combinatória, flexões e sintaxe amadureçam a ponto de se verificar a funcionalidade quase orgânica que brota da lapidação da matéria bruta. 

Para isso, é necessário mais que tempo – muito importante –, mas uma postura de perscrutador, que desconfia do que sabe, do que parece familiar e é pressuposto. É esforçando-se  em conhecer tudo  o que compõe o material bruto que se extraem as possibilidades; somente por tentativa e erro, aproximação e recuo que se  descortinam  as estratégias mais produtivas, originais e potentes para o desenvolvimento de uma história. 

O tal laboratório começa mesmo no roteiro e exige humildade. 

Emília Pérez nos dá a conhecer um México tão superficial quanto o constrangimento dos planos fechados em almoços curtos numa feira folclórica  é capaz; entrega um processo de transição de gênero enciclopédico o suficiente para resolver genitália e silicone como identidade; entra e sai de uma trama de assassinato que assola países da periferia do capital por quem os assiste da tranquilidade que o sensacionalismo midiático europeu proporciona; se satisfaz com a certeza que o estereótipo da latina inconsequente e seu furor sexual pintados como despudor  são tão reais que chegam  para mais  sequestro e assassinato.  No mais, é a redução da compleição dramática de três personagens femininas que só agem porque reagem aos seus desejos, instintos e frustrações. 

Diante da  recusa à profundidade no desenvolvimento dramático de temas extremamente delicados – no mínimo -, restam números de Revista mal ajustados. Uma sucessão de diálogos disfuncionais cuja explanação serve apenas pra plasmar estereotipais, transições rápidas e irregularidades dos planos e  das cenas, sequências de elo frágil, filtro amarelo(!), fumaça (!), planos fechados  constrangidos por parecer  tudo e qualquer coisa, menos o México. Uma lástima. 

Também notei falta do Zocalo  da imponência do Museu de antropologia, dos murais, da vastidão de Teotihuacan, do centro histórico e do Agave. Mais falta ainda, entretanto, eu senti do México que eu tive a certeza de que não conheci nem mesmo um pouco no afã de experimentar tudo o que pude em menos de duas semanas.  Seguramente  passaria meses e até anos, talvez.  E porque eu amo e acima de tudo respeito seu povo, sua terra e cultura, nem assim eu aceitaria fazer um filme tão próprio, tão deles. 

E por que se cometeu Emília Pérez? 

Provavelmente porque, em função de muitos fatores, chegou o “cansaço” de  permitir que o subalterno se defina. Tem sido unicamente  o incômodo em perder a licença de determiná-lo e lucrar sem desconfortos? Ou foi a constatação de que a perspectiva detida, interessada e identificada  tem entregado mais densidade em arte,  escancarando, assim, a sua necessidade? 

Em tempos de Trumps, bombas, golpes e terapias de conversão, quando termos como energia masculina voltam a circular com força de determinação, Emilia Pérez parece, enfim, soltar a voz pra dizer, sem rubores e com desfaçatez: Devolva-me o direito à exotificação! 

*Dani Balbi  é roteirista, dramaturga, contista e romancista; Doutora em Ciência da Literatura (UFRJ), professora de Narrativa e Dramaturgia para cinema (ESPM); Deputada estadual -RJ, mulher transexual. 

Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.

Por Midia Ninja

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