das resiliências e ressonâncias da busca pelo conhecimento – Jornal da USP

Por Guilherme Ary Plonski, professor sênior da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP e do Instituto de Estudos Avançados da USP
Durante a oitava edição do Encontro Docente USP, realizado em outubro de 2024, um docente veterano pediu a opinião dos palestrantes sobre o estado da conexão contemporânea entre a universidade e a sociedade. O que o levou a formular a pergunta era aferir o seu entendimento, segundo o qual “todos os que estão presentes no auditório e todos os que estão no meio acadêmico há tempo acreditam e compartilham o mesmo sentimento de que contribuímos para melhorar o mundo”.
Segue trecho da resposta do palestrante Simon Schwartzman, que foi professor visitante do Instituto de Estudos Avançados e colaborador do então Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da USP: “Temos evidentemente neste momento um questionamento em relação a isso. Existe toda uma situação, que aparece inclusive na política, de muito ceticismo em relação ao trabalho acadêmico, ao trabalho da base universitária. Isso no passado era dado por óbvio. A universidade era claramente entendida como foco do conhecimento, da irradiação das normas, da maneira de pensar, da maneira de ensinar e, também, de produção de valor, de ciência e tecnologia. Hoje isso é questionado”.
Um amplo leque de iniciativas vem sendo empreendido por universidades para reverter a tendência de queda em sua bem-sonância na sociedade ampla. Entre as que ganharam impulso recente estão a ênfase em ações de reforço da conexão com o segmento empresarial, de engajamento com comunidades e de contribuição para políticas públicas – iniciativas por vezes envelopadas na expressão “terceira missão da universidade”. Outras medidas são o aumento da acessibilidade, a modernização do ensino e a curricularização da extensão. Um capítulo à parte é a apregoação altissonante da presença da universidade nas agora já cerca de 20 classificações (rankings) nacionais e globais.
Sonidos da universidade nem sempre a favorecem. Ressalvado o papel vital da imprensa para assegurar a transparência requerida pela sociedade a todas as suas instituições, inclusive as voltadas ao ensino superior, em certas ocasiões ela é instrumentalizada para veicular matérias que, amparadas no legítimo exercício da crítica, em verdade se destinam a promover pautas de outra natureza. Um exemplo foi o aproveitamento de dificuldades financeiras transitórias das universidades paulistas em meados da década de 2010 para impulsionar uma agenda ruidosa de desqualificação do conjunto das universidades públicas. Essas ocasiões são por vezes oportunizadas também para hostilizar o setor público como um todo.
Ocorrem ademais malsonâncias, como no caso da corrida à USP para fornecimento maciço de uma substância química, a fosfoetanolamina, anunciada falsamente como cura para diversos tipos de cânceres. Por liminares judiciais, a instituição chegou a ser obrigada a fornecer o produto para os que a solicitavam, mesmo contrariando a sua convicção e pública afirmação de que ela não é um medicamento.
A percepção da universidade por parte da sociedade ampla é perturbada pela diversidade de sonâncias que ela emite em questões relevantes. É compreensível a dificuldade de diferenciar o parecer profissional subscrito por um/a “professor da USP”, ou a manifestação política de um pequeno grupo trovejante de docentes nas páginas de opinião de jornais de grande circulação, incluindo até alguns aposentados, da “voz da universidade” à qual estão filiados.
E se dissonâncias fazem parte do ethos acadêmico, a sua estridência em alguns contextos torna a universidade fonte de cacofonias insuportáveis. Um exemplo atual é o das manifestações inconsonantes emitidas em universidades de elevado prestígio na sequência dos acontecimentos trágicos deflagrados pelo ataque terrorista de 7 de outubro de 2023.
A história das notáveis universidades alemãs, luminares seculares na produção de conhecimentos até o começo dos anos 1930, nos informa a que podem levar estardalhaços ideologicamente motivados. Eles ali germinaram ações que contrariam frontalmente a própria ideia de universidade. Deixaram marcas indeléveis os episódios de queima pública de livros do acervo de instituições de ensino superior da lavra de autores considerados não consonantes com o ideário adotado pela União dos Estudantes Alemães. Entre as categorias banidas estavam literatura pacifista, livros sobre arte decadente e, ça va sans dire, livros marxistas e de autores judeus. Docentes apoiaram os estudantes, como relata o jornal Guardian de 10 de maio de 1933 (em tradução livre): “Cerca de 15.000 pessoas se reuniram em Romerberg [praça do mercado histórico de Frankfurt] hoje à noite para ver milhares de livros sendo mergulhados em parafina e queimados. Professores marcharam com estudantes e tropas de assalto nazistas acompanhando as carroças de bois nas quais os livros estavam sendo carregados até a Ópera, onde foram lançados em uma fogueira de tochas”.
Se não é razoável esperar que haja unissonância de uma universidade em temas controversos, é frustrante verificar casos de insuficiente aderência a padrões básicos de conduta inscritos em códigos de ética aprovados de forma equissonante pelos órgãos deliberativos superiores. O da USP, por exemplo, preceitua comportamentos essenciais à manutenção de um ambiente de convivência conducente à realização dos objetivos de uma universidade sustentada por impostos pagos pela população do Estado. Regula a sonoridade do ambiente pela disposição de garantia do “intercâmbio de ideias e opiniões sem preconceitos ou discriminações entre as partes envolvidas”, assim como “o direito à liberdade de expressão dentro de normas de civilidade e sem quaisquer formas de desrespeito”.
Comportamento ético não é idêntico a ser silente em qualquer circunstância. A Universidade “tem lado”. De fato, o referido código estabelece situações em que, mantido o princípio da não adoção de posições de natureza partidária, a voz coletiva da Universidade deve se fazer ouvir em alto e bom som: “A Universidade deve sempre agir e se manifestar a favor da defesa e da promoção dos direitos humanos, aí incluídos os direitos individuais e liberdades públicas, os direitos sociais, econômicos e culturais e os direitos da humanidade”. Exemplo recente dessa manifestação foi o ato público em defesa da democracia organizado pelo Reitoria e a Faculdade de Direito no dia 9 de janeiro de 2023 no Largo São Francisco, no centro de São Paulo. O ato foi uma reação à ação de golpistas que, no dia anterior, haviam vandalizado o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.
Mais além de se expressar vocalmente nas situações apontadas, prescreve o código que todos os membros da Universidade devem “prestar colaboração ao Estado e à sociedade no esclarecimento e na busca e encaminhamento de soluções em questões relacionadas com o bem-estar do ser humano e com o desenvolvimento cultural, social e econômico”. A universidade pública tem uma posição singularmente propícia a esse mister, uma vez que é parte integrante tanto do Estado (como entidade pública que é) como da sociedade (como instituição universitária que é). Qual a sonância da universidade que facilita a colaboração pretendida?
Parece razoável pressupor que parcela importante da sociedade ampla está em busca de formas de superar dificuldades e traumas ecológicos, políticos, econômicos, sociais, psicológicos e espirituais, que a afetam nos níveis individual e coletivo. Para tanto, pessoas e comunidades mobilizam recursos diversos, inclusive os simbólicos, que possam contribuir para a sua reconstrução. Um expediente que é evocado cada vez mais nesses contextos é o apelo à noção de resiliência. Conceito inicialmente restrito à física, trata-se da propriedade de um material retornar à forma ou posição original depois de cessar a tensão incidente sobre ele.
Essa imagem é inspiradora, mas precisa ser tomada com reservas quando aplicada a pessoas ou a coletividades. A primeira é a viabilidade de retornar ao estado original, uma vez que, pela extensão do trauma e/ou pelo tempo decorrido, esse regresso pode não mais ser possível. E cabe também ponderar se vale a pena buscar voltar à condição inicial. No exemplo clássico do Holocausto, numerosos sobreviventes dos campos de extermínio que buscaram retornar às suas residências nas cidades de origem encontraram, ao invés de acolhimento e apoio à reconstrução de suas vidas, uma reação revoltosa (e revoltante) dos moradores locais que haviam tomado posse delas, na crença de que os moradores legítimos tinham sido obliterados. É ainda mais surpreendente que reações dessa natureza tenham ocorrido também em nações que foram vítimas do expansionismo alemão, como evidencia o pogrom havido na cidade polonesa de Kielce em 4 de julho de 1946, um ano apenas após o final da Segunda Guerra Mundial.
Pela sua própria característica de formação de jovens e produção sistemática de conhecimentos novos, a universidade favorece os encaminhamentos progressivos aos regressivos. Cabe então buscar uma imagem inspiradora mais adequada. Uma candidata, também originada da física, é a ressonância. Em palavras simples, trata-se de um fenômeno no qual dois corpos, em certas condições, interagem de forma que forças periódicas pequenas aplicadas por um produzem vibrações de grande amplitude no outro. Vivenciamos esse fenômeno no balanço de um parque. Pequenos empurrões dados por um/a acompanhante em ritmo com a frequência natural do balanço produzem nele grandes amplitudes, fazendo a alegria das crianças.
A vibração de dois corpos pode levar a um reforço mútuo que aumenta as amplitudes vibracionais de ambos. Essas relações podem se desenvolver em movimentos de adaptação mútua, num ajuste vibracional recíproco dos corpos ressonantes envolvidos. É verdade que essa interação pode ser destrutiva, como no caso conhecido de pontes frágeis que colapsam quando o ritmo da marcha dos passantes se iguala à frequência natural da estrutura.
A ideia de ressonância como um sistema vibratório em que ambas as partes dialogam com a sua própria voz e se estimulam mutuamente coaduna-se com as bases para uma relação frutífera entre universidades e outros segmentos da sociedade ampla (sociedade da qual as universidades são parte integrante, sempre é importante sublinhar).
Resiliência e ressonância passaram a integrar o vocabulário de domínios distintos do original, as ciências físicas e as engenharias. Resiliência está presente também na psicologia, ecologia, administração, gestão pública, literatura, cinema e música, entre outros. Ressonância se faz ouvir também evidentemente na música e, mais recentemente, na sociologia. Um esforço para estabelecimento de uma teoria sociológica da ressonância está em curso, liderada pelo professor Hartmut Rosa, diretor do Centro Max Weber de Estudos Avançados da Cultura e da Sociedade, vinculado à Universidade de Erfurt, na Alemanha.
É natural o interesse de institutos de estudos avançados nas possibilidades de aplicação de uma compreensão ampliada da ressonância. Ela pode contribuir expressivamente para operacionalizar o eixo central de atuação desses institutos, que é a abordagem interdisciplinar de questões complexas. Conforme aponta o professor William H. Newell, pioneiro do campo de estudos interdisciplinares, “a criação de um terreno comum envolve a modificação ou reinterpretação de componentes ou relações de diferentes disciplinas para trazer suas confluências”.
Um panorama de ressonâncias da universidade está apresentado na obra Avançados em quê?, publicada ao ensejo dos 90 anos da USP e disponível no Portal de Livros Abertos, que descreve a trajetória pioneira do seu Instituto de Estudos Avançados.
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