
Esses episódios não são exceção nem acidente. Grupos organizados em plataformas como Telegram, Discord e fóruns on-line vêm sequestrando e fidelizando adolescentes para redes de ódio, oferecendo identidade, pertencimento, acolhimento e propósito com base em ideologias misóginas, racistas e autoritárias. A promessa é de força, redenção e controle em um mundo caótico. O preço é a adesão a discursos que desumanizam o outro e corroem os valores democráticos.
Contra dados, não há ilusão
Não é exagero. É dado. Em um mapeamento sobre comunidades do Telegram que tenho coordenado e está disponível em painel interativo, vemos que, entre março de 2019 e março de 2025, comunidades anti-woke e antigênero publicaram 3.591.327 conteúdos em países da América Latina e do Caribe. O Brasil responde sozinho por 1.897.852 dessas publicações (53%), com 166.091 usuários ativos em comunidades digitais. Em paralelo, outro estudo já aponta preliminarmente que as comunidades redpill brasileiras publicaram 5.429.774 conteúdos entre setembro de 2015 e março de 2025, com 87.645 usuários pertencentes às redes redpill apenas em comunidades brasileiras abertas no Telegram. São ambientes vivos, coordenados e em expansão.
Com nota técnica disponibilizada, vemos que essas comunidades não estão apenas opinando sobre política ou comportamento — elas funcionam como encruzilhadas da rede conspiratória. Um dos mecanismos mais utilizados nesse processo são os links de convite: URLs compartilhadas dentro de canais públicos que direcionam usuários a outros grupos, funcionando como conexões diretas para migração e fidelização. A análise desses links revelou que comunidades anti-woke e antigênero recebem um volume expressivo de convites oriundos de outros universos conspiratórios. Funciona assim: quem ingressa nos grupos sobre “Nova Ordem Mundial” irá se deparar com 965 links convidando para canais anti-woke; já quem acessa as comunidades antivacinas encontrará 599 links direcionando para redes da chamada “machosfera”, como ambientes redpill ou de masculinidade reativa. Em outras palavras, antes de chegarem a conteúdos antigênero, muitos usuários já foram expostos a espaços que atacam a ciência, questionam a democracia e difundem desconfiança em relação ao “sistema”.
Em contrapartida, os próprios canais anti-woke não apenas recebem esse fluxo, mas eles também redirecionam usuários para conteúdos ainda mais radicais. A análise dos convites compartilhados nesses grupos mostra conexões diretas com canais sobre globalismo, terraplanismo, negacionismo climático e revisionismo histórico. Trata-se de um sistema integrado e escalonado de circulação de convites, em que as comunidades antigênero atuam como gatekeepers: pontos de transição simbólica para radicalizações mais profundas, guiando usuários por uma jornada gradual de imersão em crenças anticientíficas e antidemocráticas.
Misturam “verdades incômodas” sobre a suposta “cultura da lacração” ou “ditadura do politicamente correto” com teorias conspiratórias que posicionam a virilidade masculina como “alvo central de um sistema oculto”. Esse processo de captura simbólica costuma seguir uma lógica gradual. Primeiro, o adolescente entra na rede por alguma live ou publicação viral em redes abertas, com piadas e vídeos de autoajuda com tons provocativos. Em seguida, surgem influenciadores com discursos de masculinidade tóxica, teorias conspiratórias, anticiência e culto à autoridade. Aos poucos, o jovem começa a enxergar o mundo sob a lente da guerra cultural: toda forma de diversidade vira ameaça. Toda tentativa de empatia é sinal de fraqueza. O “despertar” está feito.
De beta submisso a alpha redpillado
O que essas comunidades oferecem, afinal? Mais do que ideias, oferecem uma espécie de pedagogia afetiva. Criam espaços onde adolescentes encontram respostas simples para dilemas complexos. Um lugar onde suas frustrações são interpretadas como provas de que estão sendo enganados pelo sistema. Onde há uma narrativa clara sobre o que é ser “forte”, “livre” e “homem de verdade”. É a pedagogia do ressentimento, fantasiada de libertação.
Nos levantamentos que tenho coordenado, um padrão se repete: usuários são convertidos de forma simbólica a partir de códigos e vocabulários que lhes prometem status e reconhecimento. De “beta submisso” a “alpha redpillado”, este deixa de ser visto como vítima e passa a se enxergar como parte de uma elite desperta. A entrada se dá por memes, vídeos curtos, fóruns com humor corrosivo. Mas não demora até que ele comece a reproduzir, com naturalidade, teorias da conspiração, misoginia e supremacismo disfarçados de “liberdade de expressão”.
Em alguma medida, a série Adolescência, da Netflix, ajuda a visualizar esse processo. Embora seja uma obra de ficção e com algum distanciamento da realidade, seus personagens revelam traços recorrentes de um padrão que aparece nos dados: o vazio afetivo, a busca por pertencimento, a dor mascarada de cinismo. As redes não criam esse sofrimento, mas o transformam em produto monetizável, engajamento e recrutamento. A captura não é feita pela coerção, mas pelo acolhimento enviesado. E quem acolhe primeiro, fideliza.
A responsabilidade das plataformas de redes sociais
A necessidade que temos é dupla. De um lado, é urgente aprovar marcos regulatórios como o PL 2630/2020, que estabelece responsabilidades para plataformas digitais, o PL 2338/2023, que define regras para sistemas de inteligência artificial, e o PL 2628/2022, que trata da proteção de crianças e adolescentes na internet. Esses projetos são importantes não apenas pelo seu conteúdo jurídico, mas pelo recado que trazem: não é aceitável que empresas multinacionais operem no Brasil sem prestar contas à sociedade. Mas isso, por si só, não resolve o problema. Essas medidas lidam com os excessos do que é feito no nosso quintal. O que precisamos, em paralelo, é construir a casa inteira, com infraestrutura digital nacional, soberania de dados, inteligência artificial desenvolvida com valores brasileiros e comprometida com os direitos humanos.
Mais do que ausência de regulação, o que temos hoje é uma arquitetura pensada para a radicalização. No caso do Telegram, por exemplo, o recurso disponibilizado pela plataforma chamado “Canais Similares” recomenda automaticamente outros grupos com base em padrões de audiência, sem qualquer transparência ou critério de moderação pública. Isso significa que, ao entrar em um canal com conteúdos antivacinas, o usuário é frequentemente conduzido a canais que promovem negacionismo climático, teorias sobre “cura gay”, terraplanismo ou curas milagrosas.
O mesmo padrão se repete em redes ideológicas mais radicais. Canais com discursos antigênero, anti-“politicamente correto”, ou que promovem masculinidade tóxica, são conectados por esse sistema a canais redpill, conspiratórios, reacionários e, em alguns casos, neonazistas, recomendados pela própria interface do Telegram. Em poucos cliques, o usuário sai de um canal de memes com críticas à “cultura woke” e já está inserido em ambientes que pregam supremacia racial, armamento como solução social, ódio a minorias e teorias conspiratórias antidemocráticas. O resultado é que a própria plataforma se torna parte do problema, ao amplificar circuitos de ódio, impulsionar comunidades tóxicas e lucrar com o engajamento gerado por esses fluxos.
Em alguma medida, esse debate já começa a ganhar corpo em espaços legislativos. Em São Paulo, a deputada estadual Marina Helou protocolou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a atuação das big techs sobre crianças e adolescentes. Outros Estados sinalizam iniciativas semelhantes. Trata-se de um esforço suprapartidário, que coloca a infância e a juventude no centro da proteção pública. Como deve ser. Porque o futuro das nossas crianças e adolescentes não pode ser sequestrado por quem lucra com o caos. E porque nenhuma geração deveria crescer acreditando que o ódio é a única resposta para a dor.
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