
Recentemente, fui convidada a integrar o Núcleo de Estudos de Filosofia da Energia (NEFE) da Universidade Federal de Uberlândia. O grupo leu o artigo Em
Recentemente, fui convidada a integrar o Núcleo de Estudos de Filosofia da Energia (NEFE) da Universidade Federal de Uberlândia. O grupo leu o artigo Em busca de uma sociologia da energia, que publiquei nesta coluna, e notou a minha insistência em propor a sociologia da energia como um campo de pesquisa pouco explorado. Acharam que faria sentido uma aproximação entre os campos da sociologia e da filosofia.
Quando escrevi esse texto, que agora já se tornou um pouco mais denso, tentei entender por que a sociologia, na área dos empreendimentos energéticos, se limitou a catalogar danos e fazer denúncias. Em um cenário marcado por uma crescente desconfiança da opinião pública quanto à capacidade da ciência de responder aos impactos dessa transição, enquanto o embate entre a continuidade do uso do petróleo e a expansão das chamadas energias renováveis persiste, a sociologia parece estar cada vez mais presente neste tema, porém hesita num aprofundamento e se limita a reinterpretar e renomear os problemas existentes.
No mesmo artigo, eu dizia que a energia é o fundamento da produção social – sem energia, não há sociedade, tampouco produção –, mas, por alguma razão, o debate sobre a energia no Brasil permaneceu distante das preocupações sociais, econômicas e políticas sob uma perspectiva sociológica. Os filósofos da energia, no entanto, me desafiaram a pensar – sim, pensar – algo quase na contramão de nosso tempo. Na primeira conversa com o grupo, fui instigada a refletir sobre quais momentos históricos foram marcados por transições energéticas com convulsões sociais e mudanças produtivas. A ideia era entender se estamos ou não vivenciando uma transição a partir da mudança energética.
Pessoalmente, quando escuto as pessoas dizerem que querem uma transição energética justa – um conceito que se tornou ao mesmo tempo tudo e nada, versando sobre justiça em uma sociedade cujo cerne é injusto –, percebo que ele sofre um esvaziamento. E ainda mais… na medida em que os impactos das renováveis vão ficando cada vez mais visíveis e diversos movimentos negacionistas da transição energética surgem em diversos países, parece que todo esse debate se dissolve em uma grande névoa.
Para se ter uma ideia, um dia desses assisti a um debate sobre os impactos da instalação dos painéis solares e ouvi uma pessoa no público afirmar que “perdeu as esperanças nas energias renováveis”. A declaração me chocou! Como alguém pode depositar esperança em um tipo específico de energia? Que otimismo excessivo seria esse, capaz de gerar tamanha desilusão? Será que ela esperava que as renováveis fizessem mais do que fornecer energia e reduzir o uso do petróleo, apesar dos problemas em suas cadeias de produção e locais de instalação?
Fiquei pensando que talvez essa pessoa, de fato, esperasse uma transição da sociedade no seu sentido mais transformador, em que as chamadas “energias limpas” – que não são limpas, como todos sabemos – foram propagandeadas de uma maneira quase messiânica, como se fontes de energia transformassem a sociedade por si sós, a priori. Quando, na realidade, é o contrário: é a necessidade de produção e de abastecimento que sempre fez buscar a diversidade de fontes energéticas. Ou seja, transformamos a energia que dispomos na natureza em forma de energia de que necessitamos, individualmente, mas também coletivamente. E aí essa transformação ocorre a partir da organização da sociedade tal como ela está.
Aqui, podemos mencionar o caso europeu, que dispõe de menos recursos fósseis do que sua necessidade. O incentivo às renováveis fala mais sobre sua sobrevivência produtiva do que sobre uma transformação social, embora essa sobrevivência produtiva também seja a sobrevivência dessa sociedade em sua atual organização. Em 2020, a maior parte da energia disponível nos Estados-Membros da UE era importada (58%).
Em março de 2022, os dirigentes da UE decidiram eliminar progressivamente a dependência da UE em relação aos combustíveis fósseis russos, à luz da invasão russa da Ucrânia e das preocupações quanto à segurança do abastecimento energético, o que gerou mais financiamento e incentivo às renováveis.
Não pretendo aqui oferecer um termo de solução ou esgotar o debate, seria impossível neste formato de texto, mas é algo que tenho pensado junto aos filósofos. O fato é que, historicamente, as transições energéticas sempre renovaram, mas raramente romperam, o sistema: da lenha ao carvão, do carvão ao petróleo, e do petróleo à energia nuclear – marcada por episódios como Chernobyl –, cada transição renovou as bases produtivas, aumentou a eficiência e a escala de produção. Por outro lado, reforçaram as estruturas de poder existentes, como a concentração de capital, a exploração de recursos naturais e as desigualdades sociais.
Como escrevi em 2009, em um momento em que o “pico do petróleo” dominava os debates, o petróleo era visto como insubstituível devido às suas propriedades únicas – fácil armazenamento, transporte e uso como matéria-prima energética e química –, funcionando como um “combustível político” que sustentava o crescimento econômico global, mas também alimentava uma fantasia de abundância atrelada aos interesses de países produtores e consumidores. Naquela época, alternativas como gás natural ou uma retomada do uso do carvão pareciam insuficientes, e as energias renováveis ainda estavam em estágios iniciais, incapazes de competir em escala ou custo. Hoje, embora as renováveis tenham avançado (e muito rapidamente), os desafios persistem, tais como a dependência de matérias-primas como lítio, cobalto e terras-raras, além dos interesses econômicos fossilizados no petróleo e a geopolítica da transição energética, que mostram que o sistema continua se renovando. Portanto, a transição energética é cada vez mais mercadológica e muito menos justa e popular, como defendem alguns grupos.
Esse debate ganha urgência em um momento conturbado, política e economicamente. Observando a rivalidade entre Estados Unidos e China, pergunto-me para onde vamos ou se vivemos uma crise permanente. Como Tim Marshall argumenta em O Poder da Geografia, estamos entrando em uma nova era de rivalidades entre potências, após os anos 1990, a “década unipolar” do poder americano. Essa tensão é evidente na guerra comercial dos Estados Unidos em relação à China, e essas disputas geopolíticas vão influenciar diretamente as transições energéticas, transformando tecnologias, recursos e suas cadeias em verdadeiros campos de batalha.
Voltando ao desafio proposto pelos filósofos da energia, comecei a ler a teoria das transições sociotécnicas, proposta por Frank Geels, que ajuda a compreender essas mudanças. Geels explica que transições ocorrem quando nichos de inovação rompem o regime estabelecido – o modo “normal” de fazer as coisas. Por exemplo, a transição de carruagens para os automóveis não envolveu apenas novos veículos, mas também estradas, postos de gasolina, regulações (como limites de velocidade) e mudanças culturais, como a valorização da liberdade e da velocidade. Essas inovações podem ser incrementais, radicais ou arquitetônicas, desestabilizando sistemas ao criar novas redes econômicas e sociais. No entanto, Geels foca nas dinâmicas internas dos sistemas sociotécnicos, deixando uma lacuna: uma perspectiva mais ampla sobre as forças sociais e econômicas.
Aqui, István Mészáros, que também aborda a teoria da transição de uma maneira mais ampla, oferece uma leitura complementar, mais cética. Para ele, as transições não são apenas tecnológicas ou incrementais; exigem uma transformação radical da lógica social e econômica do capital. A tecnologia, por si só, não é suficiente, pois está sempre enredada em estruturas de poder que resistem à mudança. Talvez seja isso que explique a desilusão com as energias renováveis: elas são vistas como promessas de salvação, mas, sem uma ruptura sistêmica, permanecem limitadas.
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