
O governo federal americano está usando verbas destinadas à pesquisa científica para pressionar universidades a concordarem com uma série de demandas da administração Trump. O caso mais emblemático é o de Harvard: o governo suspendeu o repasse de US$ 2,2 bilhões previstos para projetos de pesquisa da universidade depois que ela se recusou a acatar uma lista de medidas que dariam à Casa Branca a prerrogativa de intervir sobre diversos aspectos de gestão da instituição — entre elas, o direito de auditar a contratação de docentes, a admissão de alunos e a origem e alocação de recursos por parte da universidade.
As exigências estão descritas em uma carta de cinco páginas enviada por via eletrônica à reitoria de Harvard na noite de 11 de abril, uma sexta-feira. Assinada por três autoridades, ela acusa Harvard de desonrar as “condicionantes intelectuais e de direitos civis que justificam investimento federal” na universidade, e apresenta uma série de medidas a serem adotadas, em caráter imediato e mandatório, para “preservar a relação financeira” dela com o governo federal.
O documento exige, entre outras coisas, a extinção “imediata” de todas as políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) da universidade, e a realização anual de auditorias externas sobre a “diversidade de pontos de vista” contemplados nas atividades e no corpo acadêmico da instituição. Em departamentos ou disciplinas onde essa diversidade fosse considerada insuficiente, segundo a carta, a universidade seria obrigada a recrutar uma “massa crítica” de professores e alunos com pontos de vista distintos para, supostamente, equilibrar o debate. O documento também exige que Harvard “reduza o poder” de estudantes e docentes envolvidos com ativismo, e adote regras mais rigorosas para punir alunos e grupos envolvidos em protestos ou transgressões disciplinares.
Três dias depois, em 14 de abril, o reitor de Harvard, Alan Garber, publicou uma carta aberta à comunidade, informando que não iria acatar as demandas do governo. “A universidade não abrirá mão de sua independência nem abdicará de seus direitos constitucionais”, escreveu Garber. Foi a primeira universidade a confrontar abertamente as demandas do governo Trump. “Nenhum governo, independentemente de qual partido está no poder, deveria ditar o que as universidades privadas podem ensinar, quem elas podem admitir ou contratar, e em quais áreas de estudo ou pesquisa ela podem investir”, justificou Garber.
A reitoria de Harvard já vinha conversando reservadamente com o governo desde 3 de abril, quando recebeu uma lista de demandas iniciais; mas a carta do dia 11 implodiu as negociações. “É, praticamente, uma tentativa de intervir na universidade”, avalia Jacques Marcovitch, professor emérito da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) e ex-reitor da USP, referindo-se ao teor da carta. Um dos objetivos dessa intervenção, segundo ele, seria inibir questionamentos e críticas da comunidade acadêmica às políticas de “baixa densidade intelectual” que o governo Trump vem apresentando. “Na história mundial, todos os governos populistas acabaram procurando inibir a liberdade dentro das instituições, especialmente as instituições acadêmicas”, afirma Marcovitch, em entrevista ao Jornal da USP.
“A ideia de pegar Harvard é a ideia de calar um sistema que está na base daquilo que se chama de democracia liberal americana”, argumenta, também, o sociólogo Glauco Arbix, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e ex-presidente da Finep, em entrevista ao programa Além do Algoritmo, da Rádio USP. “Quando ele (Trump) quer calar essas universidades, ele quer evitar que elas falem, que elas se pronunciem, que elas tenham voz, que elas se mobilizem e que elas anunciem que existem outras opções”, afirma Arbix, que realizou pesquisas de pós-doutorado em várias instituições americanas, incluindo Columbia, MIT e Universidade da Califórnia em Berkeley. “Ele quer chegar a ter o controle e o cancelamento de qualquer tipo de oposição a ele.”
A retórica trumpista é frequentemente hostil às universidades. Em um vídeo de campanha postado em julho de 2023, Trump descreve-as como instituições “dominadas por maníacos e lunáticos marxistas” e promete “recuperar nossas outrora grandes instituições educacionais da esquerda radical”. Já o vice-presidente J.D. Vance fez um discurso em 2021 na Flórida intitulado “As universidades são o inimigo”, em que diz ser necessário “atacar agressivamente” essas instituições para avançar com reformas conservadoras na política americana. Ele acusa as universidades de manipular o debate público e produzir “pesquisas que dão credibilidade a algumas das ideias mais ridículas que existem em nosso país”. “Senhoras e senhores, as universidades não buscam o conhecimento e a verdade; elas buscam o engano e a mentira, e está na hora de sermos honestos sobre esse fato”, disse.
Na avaliação da professora Lorena Barberia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, para além da questão ideológica, essa pressão sobre as universidades tem como pano de fundo, também, uma frustração mais antiga da base política de Trump (majoritariamente branca, de classe média e conservadora), que se ressente da estagnação socioeconômica e do fato de não ter acesso a essas instituições de elite, tanto por conta dos altos custos quanto das políticas de diversidade e equidade, que são interpretadas como uma forma de discriminação racial contra brancos. “A universidade é símbolo de um problema muito grave da crise econômica americana”, diz Barberia, que fez mestrado em Harvard. “O custo de estudar em uma instituição privada nos Estados Unidos está cada vez mais inacessível para a classe média. Isso é dramático, porque a maioria das famílias não consegue ascender a essas universidades”, apesar de elas também receberem recursos públicos, completa a professora.
Trump começa seu vídeo de campanha tocando justamente nesta ferida: “Por muitos anos, os custos de mensalidades em faculdades e universidades vêm explodindo, e digo explodindo absolutamente, enquanto acadêmicos têm estado obcecados em doutrinar a juventude americana. (…) As faculdades receberam centenas de bilhões de dólares de contribuintes que trabalham duro e agora vamos tirar essa insanidade antiamericana de nossas instituições de uma vez por todas”, diz o então candidato republicano.
O resultado agora, com a volta de Trump à Casa Branca, é que a autonomia acadêmica como um todo está sob risco. “Nunca vi uma crise tão grande como essa”, diz Barberia. Segundo ela, a estratégia de defesa de Harvard só vai funcionar se outras universidades se juntarem a ela. “Só Harvard, sozinha, não vai dar certo.”