
Por Hyader Epaminondas
Com Prédio Vazio, Rodrigo Aragão venceu o Prêmio Retrato Filmes na 28ª Mostra de Tiradentes, e reafirmou sua posição como um dos grandes nomes do cinema de gênero no Brasil. Longe de orçamentos grandiosos ou truques digitais vistosos, o diretor aposta no que sabe fazer melhor: um terror de atmosfera densa, efeitos práticos meticulosamente construídos e uma linguagem visual que carrega identidade folclórica própria, direto de Guarapari, moldada por anos de experimentação no fantástico nacional.
Aragão não vê o espaço urbano como mero cenário, mas como um corpo em lenta putrefação, uma entidade que guarda segredos e memórias corroídas pelo tempo, quase como um mágico que, por meio de truques simples e objetos inesperados, constrói uma ilusão palpável e utiliza a miopia para criar uma perspectiva um tanto quanto criativa sobre seus monstros.
A sanguinolência, por sua vez, assume aqui o seu papel de marca nacional, intensa, suada e visceral, mas pode afastar olhares menos acostumados. É justamente essa crueza que dá autenticidade à obra, que performa perfeitamente dentro da estética plástica, na medida certa para expor uma brutalidade sem perder a força narrativa.
Em vez de apostar no susto fácil, o filme constrói uma inquietação profunda ao explorar as nuances reais da violência doméstica. O horror não é apenas visual, mas sensorial: tem cheiro, textura e peso, sempre pairando sobre a realidade de forma incômoda. É um cinema artesanal que não disfarça suas marcas de criação, ao contrário, as valoriza. Cada efeito prático, cada máscara, cada sombra lançada pela iluminação diferenciada é parte do discurso, evocando um Brasil onde o abandono e o trauma coletivo são parte do cenário, não do subtexto.
Tonalidades sépias, mescladas a cores que vazam pelas frestas, revestem a arquitetura envelhecida do edifício abandonado, um corpo concreto que parece ganhar vida, respirando, pulsando, sussurrando histórias esquecidas. O verdadeiro terror não está no que é mostrado, mas nas sombras que escondem o invisível, na ausência que preenche cada silêncio. Entrar ali é como adentrar uma memória esquecida, um espaço onde as marcas nas paredes contam histórias silenciosas, narrativas que talvez nunca tenham existido de fato, mas que ganham vida intensa na nossa imaginação.
Para quem vive em centros urbanos, a simples existência desses prédios vazios já provoca uma sensação de desconforto, um estranho eco de abandono. Agora, imagine isso em regiões litorâneas, onde essas construções são ocupadas apenas por curtos períodos, durante os quais brilham efemeramente, para depois serem completamente esquecidas pelo tempo.
Apesar do gênero de terror, é por meio do humor que fica subentendido o abandono físico, acompanhado por uma exclusão social: enquanto esses espaços esvaziam e perdem sua função original, a população local é empurrada, quase que invisivelmente, para as periferias dos grandes centros, vítimas de um processo cruel de gentrificação que redefine quem tem direito de habitar a cidade.
Um elenco imerso na arte artesanal
A dupla de protagonistas, Lorena Corrêa e Caio Macedo, encarna o velho ditado: os opostos se atraem, surpreendendo ao abraçar com carisma seus próprios estereótipos, transformando-os em uma força cômica precisa dentro dessa comédia sombria, temperada com cuidado por momentos de humor ácido e situacional. Eles parecem uma fusão improvável entre a leveza desastrada da gangue do Scooby-Doo e a morbidez charmosa da Família Addams.
A atuação de Gilda Nomacce se destaca ao dar vida a uma figura desconcertante, que evoca com ironia a aura enigmática e por vezes sinistra de síndicos de prédio: um tipo de autoridade ambígua, ao mesmo tempo banal e perturbadora. Mais um acerto de Aragão em mirar no mundano para criar uma vilã fora da caixinha. Ela encarna com precisão o estranhamento que o filme propõe, transitando com naturalidade entre a malemolência absurda do slasher e a tensão fria do suspense escrachado.
Essa produção pulsa em uma frequência própria, menos linear e mais onírica, por vezes até alucinatória, principalmente levando em consideração o material usado para criar as cenas no edifício. Tudo ali é construído com materiais que evocam maquetes visivelmente artificiais, com uma criatividade encantadora para driblar a questão de orçamento, sem jamais abandonar suas raízes capixabas, imprimindo uma identidade singular que mescla o universal ao local.
Prédio Vazio propõe sensações. É o tipo de produção que assombra menos pela lógica e mais pela permanência: termina e continua somente existindo. Mesmo em salas vazias, algo permanece ali, ocupando o espaço, à espreita na visão periférica. Um exemplar potente do terror brasileiro, feito com coragem, inventividade e um profundo entendimento de que o medo também é uma forma de expressão cultural.