
Por Thiago Galdino
Com prêmios de Melhor Direção para Kleber Mendonça Filho e Melhor Ator para Wagner Moura na seleção oficial, o thriller político O Agente Secreto foi uma das grandes surpresas do Festival de Cannes 2025 — recebendo inclusive uma ovação de 13 minutos em sua première mundial.
O longa, ambientado no Recife dos anos 70, também chamou atenção pela pluralidade de seu elenco. Três dos nomes que compõem essa diversidade são do Rio Grande do Norte: Kaiony Venâncio, Alice Carvalho e Tânia Maria. Em entrevista exclusiva à Cine Ninja, os artistas falam sobre suas trajetórias, os bastidores da produção e o impacto de ver o talento potiguar ser reconhecido em uma das maiores vitrines do cinema mundial.
Kaiony Venâncio (Vilmar – estivador e assassino de aluguel)
Kaiony, você interpreta Vilmar, um estivador que também atua como assassino de aluguel. Como foi o processo para compor um personagem com essa dualidade tão intensa e cheia de camadas?
Kaiony Venâncio: Para dar vida a Vilmar, eu tive o apoio do preparador de elenco Leonardo Lacca, que desde o dia do teste presencial já estava me ajudando na construção, usando técnicas provocativas que me faziam acessar sentimentos escondidos do personagem. Mas, o grande diferencial para eu construir Vilmar foram os detalhes na direção de Kleber Mendonça Filho. Cada gesto, cada movimento corporal, um olhar, uma fala menos intensa, que ele me orientava, me mostravam a estrada que eu precisava percorrer na construção desse personagem tão misterioso. Foi através da sensibilidade da direção de Kleber que eu entendi quem era Vilmar.
Seu trabalho em O Agente Secreto marca mais uma colaboração com produções de peso no cenário audiovisual brasileiro. Como você enxerga a evolução do seu percurso artístico?
Kaiony Venâncio: Mesmo que difícil, tudo tem acontecido da forma certa. O meu desenvolvimento e crescimento artístico não se baseia na carreira de outros, apesar que às vezes a gente olha a grama do vizinho. Se no meu início profissional eu achava que estava atrasado em relação aos meus companheiros de cena, hoje eu percebo que eu estou trilhando o caminho que só funciona para mim e que tem me feito feliz. Minha evolução não se apressa, ela está no tempo certo.
Além de ator, você atua como preparador de elenco e roteirista. De que maneira esses outros papéis influenciam ou enriquecem sua atuação?
Kaiony Venâncio: As funções de roteirista, preparador e diretor surgiram como necessidades. Eu precisava me sustentar enquanto artista e só o cachê de ator não compensava. Mas essa necessidade me ajudou e ajuda até hoje a conhecer melhor meus personagens, a construí-los de forma mais profunda, acessando todos os seus segredos.
Como potiguar e profissional multifacetado, o que representa para você estar em um filme que foi aplaudido por 13 minutos em Cannes e premiado internacionalmente? Que impacto isso tem, especialmente para quem conhece as dificuldades de se construir carreira longe do eixo Rio-SP?
Kaiony Venâncio: Esses aplausos não foram só para nós, mas para todo o Nordeste ali representado. É um orgulho um filme brasileiro ter o reconhecimento do festival através dos prêmios e depoimentos emocionados de vários profissionais estrangeiros, mas o mais gratificante é quando esta obra é feita no Nordeste e por nordestinos de vários estados. A cada ano o Nordeste tem rompido todos os eixos.
Alice Carvalho (Fátima – professora universitária e companheira de Marcelo, personagem de Wagner Moura)
Alice, sua personagem, Fátima, é uma professora universitária e companheira do protagonista. Como foi construir essa personagem e qual o peso dela dentro da trama política do filme?
Alice Carvalho: Ela é uma personagem muito emblemática, muito firme e elegante. A construção dela foi muito intuitiva, porque recebi o convite de Kleber Mendonça Filho e da Emilie Lesclaux numa quarta-feira à noite, e no domingo já estava no set, caracterizada. Na época, eu gravava novela (Renascer) de segunda a sábado, então não tive tempo de fazer preparação convencional. Foi tudo muito a partir do encontro com o Wagner, que foi meu parceiro de cena e de escuta. Acho que essa urgência trouxe também uma verdade bonita para a Fátima porque ela entra em cena já inteira, como quem sabe muito bem o que está em jogo.
Você tem uma trajetória sólida, marcada por personagens potentes e uma presença forte nas discussões sobre regionalidade e diversidade. Como foi, pessoalmente e profissionalmente, receber essa notícia da premiação de O Agente Secreto em Cannes?
Alice Carvalho: Todos os quatro prêmios que o filme recebeu em Cannes me contemplam de uma forma inexplicável. Estar ao lado de Wagner e de Kleber, dois artistas que admiro profundamente, caras importantíssimos para nossa cultura e para essa cena audiovisual potente que insurge do Nordeste foi, por si só, uma honra. Mas vê-los reconhecidos ali, naquele santuário do cinema, por um trabalho coletivo que celebra nossa identidade, foi arrebatador. É um marco para o cinema brasileiro e, ao mesmo tempo, uma ferramenta poderosa de impulsionamento para tudo o que está nascendo agora — especialmente no Norte e no Nordeste.
De Septo à novela das nove, passando por produções como Cangaço Novo, sua carreira é marcada por escolhas corajosas. Que tipo de escolhas você fez — ou teve que fazer — para manter sua identidade artística ligada ao RN em todos esses projetos?
Alice Carvalho: Desde o começo, insisti em criar a partir de onde eu estava, da minha gente, do nosso sotaque, da nossa estética. Septo foi um divisor de águas nesse sentido: ali eu entendi que era possível fazer audiovisual potente a partir de Natal, com a nossa cara e a nossa urgência. Eu tinha 19 anos na época, acho que a forma como foi recebido o projeto e tudo que me aconteceu depois dele foi formador moral para mim, e me deu um norte para o querer artístico. Persigo o mesmo até hoje, me vejo a mesma menina.
O filme é ambientado no Brasil de 1977, mas traz discussões que ainda ecoam no presente. Como atriz e cidadã, o que mais te tocou nesse roteiro? O que ele te fez pensar sobre o país hoje?
Alice Carvalho: A história já me impactava quando li as minhas cenas e entendi o contexto histórico, mas assistir ao filme completo foi uma outra camada de arrebatamento. O que mais me deixa abismada é sempre perceber como as violências e silenciamentos daquela época nos assombram hoje, conversam com o país de hoje e com as feridas abertas do sul global: explorado, desmemoriado e em busca da mátria numa pátria flagelada há tanto tempo.
Tânia Maria (Sebastiana – proprietária que acolhe Marcelo e refugiados em Recife)
Dona Tânia, a senhora estreou no cinema em Bacurau e, desde então, já atuou em cinco filmes. Como foi receber o convite para atuar novamente com Kleber Mendonça e interpretar Sebastiana em O Agente Secreto?
Tânia Maria: Recebi com imensa alegria! Desde Bacurau, desenvolvi uma relação de grande amizade com o diretor Kleber Mendonça, com o preparador de elenco Leonardo Lacca e com artistas. O convite para fazer o papel da Sebastiana, proprietária de apartamentos em Recife que abriga refugiados, veio junto de várias apostilas contendo os textos que precisavam ser memorizados. Depois disso, foram quinze viagens à capital de Pernambuco para gravações.
A senhora representa muitas mulheres do interior do Brasil: fortes, criativas, e que seguem produzindo arte em suas próprias formas. O que a senhora gostaria que as pessoas soubessem sobre sua vida no povoado Cobra e sobre o que é fazer arte aos 78 anos?
Tânia Maria: Comecei a fazer cinema aos 72 anos de idade, mas me considero, sobretudo, uma artesã do povoado Cobra, da zona rural de Parelhas. Aqui, utilizo material reciclável e confecciono tapetes e conjuntos de banheiro. Sou feliz em ser, a essa fase da vida, lúcida e ativa.
A participação de Kaiony Venâncio, Alice Carvalho e Tânia Maria em O Agente Secreto revela mais do que talento em cena. Revela camadas de pertencimento, resistência e imaginação vindas de um lugar muitas vezes ignorado pela indústria.
Seus caminhos, tão distintos entre si, convergem num mesmo gesto: o de existir artisticamente com autenticidade e coragem. De afirmar que o Rio Grande do Norte não é margem — é também centro, origem e pulsação.