
Por Daniele Agapito
Conheci Tibério Azul debaixo de um pé de cajueiro, numa casa de shows em Recife, no dia em que Igor de Carvalho, outro cantor de mão cheia, ia tocar. Faz tanto tempo dessa história que não lembro o ano, o mês, nada. E nem ele lembrava de mim direito: “Ô Dani, a gente se conhece já ou não?”. Naquele dia, em que eu lembro dele e ele não lembra de mim, Tibério estava na plateia assistindo ao show.
Depois, foi convidado a subir no palco, deu uma palhinha, e lembro que achei bonito porque cantava bem e porque tinha “Azul” no nome. Azul também está no nome do primeiro longa que ele roteirizou: O Último Azul. Filme que ganhou o Urso de Prata na Berlinale 2025, uma das maiores e mais concorridas premiações do mundo. O Último Azul foi escrito a duas mãos, por Tibério Azul e Gabriel Mascaro. Gabriel já é veterano no cinema; Tibério, por outro lado, estreia como roteirista depois de trilhar uma longa estrada na música. E eu, que também tô para estrear como roteirista, presto máxima atenção — pra sacar os caminhos do sucesso do filme lá fora e, de quebra, descobrir se tem alguma superstição escondida por trás de tanto azul.
Marcamos a entrevista para a Cine Ninja por chamada de vídeo. Quando me preparava para fazer a primeira pergunta, ao mesmo tempo que tentava uma gambiarra no gravador de voz, Tibério dá uma dica pra me ajudar na transcrição da conversa: ChatGPT! E começamos a falar sobre ChatGPT. E, como ele disse, “dá noites e noites de conversa”:
Daniele Agapito: Você usou ChatGPT pra te ajudar no roteiro?
Tibério Azul: Nesse roteiro, não. Mas a gente tá trabalhando em outro projeto agora, e Gabriel adora. Ele usa melhor que eu. Tem um domínio bom, sabe fazer as perguntas certas. Ultimamente, a gente tem experimentado usar mais como se fosse um Word super potente. Quando você pede pro chat dar ideia, é difícil… Mas pra algumas coisas, você não precisa ficar escrevendo do zero — ele escreve pra você. Tipo: “Escreve esse cara chegando de tal forma.” Aí ele já adianta um pouco o processo, e isso ajuda mesmo. É uma loucura.
Daniele Agapito: O processo de escrita para cinema é muito lento…
Tibério Azul: Acho que a gente tá vivendo esse momento acelerado também, é foda. Isso rende um papo gigante, gigante mesmo!
Daniele Agapito: Teu nome é Tibério Azul, e eu já achava curioso. Quando saiu o filme “O Último Azul”, achei mais curioso ainda. Azul é proposital?
Tibério Azul: Não, não é. É quase uma sacanagem, inclusive, mas não é proposital. Pelo contrário. “O Último Azul” surgiu aos 48 do segundo tempo, porque o título original não agradava todo mundo. Foi pra um lado, foi pro outro… a distribuidora opinava, os produtores opinavam, a gente opinava. Eu e Gabriel nunca tínhamos chegado a um consenso. Aí veio uma sugestão de incluir “azul” no título, porque na narrativa tem um elemento azul — um animal fantástico que solta uma gosma azul alucinógena. E, ao mesmo tempo, a protagonista está em busca de um sonho, e o sonho dela é voar. Então, voar é alcançar o céu, que é azul. Sugeriram muito que a gente tivesse o azul no título. Aí buscamos esse “último azul”, que é dúbio. E conseguimos um consenso no último minuto.
Daniele Agapito: Pensamos muito sobre o protagonismo feminino na Cine Ninja, e é raro ver uma personagem mais velha assumindo o papel principal sem cair em clichê. Queria que você falasse um pouco sobre a criação da Tereza,( uma mulher de 77 anos que recebe a ordem de exílio compulsório na Amazônia). Como você imaginou essa protagonista?
Tibério Azul: Tu diz de forma concreta ou poética?
Daniele Agapito: Eu prefiro a forma poética, mas você pode incluir um concreto no meio também.
Tibério Azul: Gabriel tinha um desejo, que era falar sobre a saga de uma pessoa velha — a história do corpo velho experimentando o mundo. Então ele tinha esse preâmbulo como um desejo do artista mesmo. Ele dizia que queria filmar isso: “Eu quero filmar um corpo velho dentro de um contexto que não seja condicionado a um corpo velho.” A gente partiu desse princípio. De certa forma, uma mulher velha tem vários dilemas na sua própria existência na sociedade. E um personagem rico é isso. Eu até diria que o homem jovem, hoje em dia, carrega vários dilemas com ele também, mas isso é muito novo. Um homem velho tem um lugar muito enraizado. E uma mulher velha carrega vários dilemas. Então, uma mulher que é contrária ao sistema é muito interessante, porque ela é a pessoa mais empurrada a se encaixar no sistema. Talvez seja a mulher — e a mulher velha — que mais sofram essa pressão, inclusive de diferentes classes sociais.
Daniele Agapito: Como foi essa tua transição da música para o cinema. Você já tinha contato com o cinema antes, ou isso é novo na tua vida?
Tibério Azul: A minha conexão é com a palavra. Eu me entendo com a palavra. Quando era pequenininho, queria ser escritor mesmo, queria ser poeta. Eu queria inventar histórias e tal. Era o que mais gostava de fazer, onde eu tinha muita facilidade. Aos 15 anos, descobri um violão encostado na minha casa. Minha família vem de um processo muito humilde, então, na minha casa, ter acesso a uma arte refinada era algo muito destinado à elite. Minha família consumia o que estava no rádio mesmo. Eu não tinha acesso a algumas coisas, e também não tinha internet. Eu não tive esse ônus e esse bônus. Às vezes eu fico pensando o que seria da minha adolescência se eu tivesse YouTube. Eu seria postado, e talvez me acabasse, me queimasse até hoje. Quando descobri o violão, encontrei um lugar onde as minhas palavras se encaixavam em uma melodia. Mas meu tesão era a palavra. Inclusive, no mundo da música, eu sempre fui conhecido como um músico poeta, um músico que escreve. Os meus maiores elogios sempre são à minha potência lírica. Quando fiz faculdade, a gente tinha um sonho de fazer cinema. E tinha várias pessoas que tinham esse sonho de forma muito mais concreta. Inclusive, várias pessoas desse grupo que eu fazia parte viraram cineastas — e cineastas muito bons. Dentre eles, Gabriel, Daniel Bandeira, Marcelo Pedroso. A gente montou um grupo na época universitária, o Sínios Filmes, que eu fiz parte do comecinho. Assina até Bacurau. Mas cinema ainda era uma coisa distante e difícil.
Daniele Agapito: Como surgiu o convite de Gabriel Mascaro para fazer o filme junto com ele?
Tibério Azul: Durante a pandemia, Gabriel me ligou querendo um apoio pra fazer uma pesquisa de literatura. Ele achava que eu tinha um mergulho maior que o dele e perguntou se eu queria ajudar. E eu tava completamente ansioso, porque a música tinha parado. A gente se empolgou e começou a construir: “Vamos levantar uma história comigo?”. E levantamos. Depois, quando chegou o momento de escrever o roteiro mesmo, ele me convidou. Eu disse: bora! Foi uma dedicação grande. Apesar de eu entender de palavra, de narrativa, alguns conceitos e traquejos de roteiro eu não tinha. E como a gente estava na pandemia e não tinha prazo, foi muito bom pra mim. Deu pra pesquisar, pra estudar o que eu tava em dúvida. Cheguei a fazer dois cursos de roteiro, lia livros, estudava sagas de diretores. Virou quase uma pós-graduação, porque o tempo era muito alongado. Então, meu vínculo sempre foi com a palavra. Tudo que é palavra não me é estranho. Então, para mim, é um lugar que eu tenho muito tesão, de fato. E, embora eu tenha um vínculo afetivo profundo com a música, eu não quero largar o cinema. Não quero migrar. Quero aglutinar.
Daniele Agapito: Que conselho você daria para conquistar um Urso de Prata logo de cara, porque, convenhamos, é um feito e tanto, né?
Tibério Azul: É extraordinário, é realmente um feito. Porque, quando eu estava em Berlim, era muito engraçado. Eu me sentava nas mesas, a gente ia dialogar, e as pessoas que estavam lá também diziam: “Ah, que massa, você escreveu o roteiro do Azul, foi? E quais foram os outros filmes que você fez?” Eu dizia, “Nenhum, esse foi o meu primeiro roteiro.” E as pessoas diziam, “Mentira!” Mas eu venho da arte, venho da música, não é uma coisa assim… não é do nada, né? (…) Mas, cara, uma lição que eu tenho tido no cinema é que ele é uma arte coletiva. Então, um grande roteiro sem um grande diretor não é muita coisa. Um grande roteiro com um grande diretor e uma direção de arte inadequada é um caminho torto. E um grande roteiro com um grande diretor e uma produção perdida vai encontrar pedregulhos que podem travar o filme. Eu entendi que o cinema é isso, ele é profundamente uma arte coletiva. (…) Então, pra chegar nesse lugar, é muito claro: você precisa de um processo de coesão e unidade muito forte no filme. Do protagonista ao roteiro, da direção de arte ao preparador de elenco. Você tem aquele protagonista abalando, super bonito, super emocional, mas se aquele ator que faz uma pequena participação perde muito a mão, ele pode sequestrar o público da imersão na experiência do filme. Não basta saber o que você quer fazer, ter a capacidade técnica e artística, você tem que conseguir fazer todo mundo dar o melhor de si. Eu digo muito que gerir essa quantidade de pessoas e os conflitos é muito difícil. É um talento muito grande. E acho que a gente acaba menosprezando um pouco essas partes.
Daniele Agapito: Pernambuco é um dos estados mais férteis para o cinema nacional, mesmo entre trancos e barrancos financeiros. Ainda assim, tem aberto portas importantes para o Brasil no exterior. Como pode isso?
Tibério Azul: Eu acredito que algumas pessoas romperam essas barreiras, né? A pau e pedra, abriram um caminho que hoje é mais fácil de trilhar. Tem várias pessoas aí que merecem esse reconhecimento. Agora, posso te falar uma coisa que eu acho? Eu acho que Pernambuco tem uma loucura que eu não sei explicar, porque não é só no cinema… O cinema é uma coisa anormal. A música é muito anormal. A literatura é anormal. A gente tem um processo de vanguarda muito insano que eu não sei de onde vem. Pernambuco é uma insanidade, tem uma potência… que eu reconheço. Eu reconheço em vários lugares. Lembro dos direitos urbanos, quando surgiu o Ocupe Estelita, eram arquitetos de vanguarda puxando o movimento. Até na arquitetura tem gente fazendo isso. Acho que Pernambuco tem um lugar que… pra gente, a vanguarda é um caminho. Pra gente, só fazer não é suficiente. Eu acho que temos esse instinto. Na música, pra mim, é muito claro. Se você faz um disco e alguém já fez algo muito parecido, e é só isso, você não se satisfaz como pernambucano. Tem que chegar em um lugar genuinamente seu. Eu acho que essa busca pela vanguarda como um caminho natural e orgânico é uma loucura pernambucana mesmo.
Daniele Agapito: Na tua opinião, qual um bom motivo para assistir “O Último Azul” (com lançamento previsto para o segundo semestre de 2025)? Sem dar muito spoiler.
Tibério Azul: O filme é uma aventura amazônica em um futuro distópico, mas não muito distante, sobre uma mulher indo ao encontro de suas vontades, seus desejos, e se afirmando no mundo. Gabriel é um diretor que tem um diálogo muito forte com o lugar onde está filmando. Eu digo: “Cara, o roteiro tem que ter aberturas para tua improvisação, ela é um pouco a luz do projeto. O roteiro não pode ser muito fechado, não pode ser completamente costurado, tem que ter espaços aí que tu vai descobrir”. Então, o filme tem um processo de encantamento dentro da Amazônia mesmo. Um feedback que a gente teve em Berlim, muito grande, é que o filme joga com a esperança e a beleza. Tem uma catarse. Pelo menos é assim que a gente tem sentido as pessoas que estão assistindo. Em Berlim, na estreia, você sabe que é um cinema muito grande, e as pessoas enlouqueceram pelo filme, foi muito bonito.
Catarse, essa descarga emocional coletiva diante de uma obra de arte, frisson, mais fácil de conquistar com uma canção. Pergunto se ele conhece a frase “todas as artes aspiram à condição de música”, atribuída a Walter Pater, um crítico e ensaísta inglês. Ele fica pensando no assunto. Faz uma pausa. Diz que tem uma coisa bonita que se perdeu muito: o valor poético do que está sendo dito. E então canta um trecho de Futuros Amantes, de Chico Buarque, pra gente lembrar da letra:
“Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios no ar…”
E aí eu volto a pensar na pressa, porque Tibério não gosta de afobação e precisa de tempo para encontrar o valor poético em tudo que se propõe a fazer. Pode passar dias, meses, semanas debruçado sobre a palavra. É onde mais gosta de gastar tempo. Em seu livro de poesias, O Homem Que Nasceu Amanhã, tem três capítulos: nascente, nascente e nascente… Isso é, uma repetição que o ChatGPT consideraria erro. E talvez por isso a IA não o ajude tanto nas ideias. Tibério quer se certificar de que o que está dizendo tem força, tem poesia. E não foi diferente no roteiro — cada diálogo do filme foi milimetricamente pensado, analogicamente.
Tibério Azul: Como eu sou letrista, a sonoridade das palavras tem muito valor pra mim. E quando a gente escreveu o diálogo, eu e Gabriel, a palavra era um lugar muito zeloso. A gente escrevia e eu ficava costurando as palavras. “Esse artigo tem que mudar, tem uma sonoridade aqui que não tá bonita, tem uma cacofonia rolando, tem um eco nessas palavras, a boca não gira bem dessa forma”. E eu adoro os diálogos do filme. Acho que conseguimos alcançar um lugar natural, sem abandonar esse zelo, esse rigor.
Tibério não poupa elogios aos atores Rodrigo Santoro, à atriz cubana Miriam Socarrás e à protagonista Denise Weinberg. E, embora se considere tecnicamente muito rigoroso na construção das palavras, jura que não teria ciúmes do texto caso algum deles alterasse uma coisinha ou outra — desde que fosse para levar a fala a um lugar que realmente coubesse na boca do personagem.
“Eu não penso assim: ‘ah, não pode mudar a minha frase’. Existia essa abertura — Gabriel sabia disso. Mas pouca coisa foi mudada. Os textos ficaram como saíram do papel, e nem parece que saíram de um papel.”
Esta entrevista corre o risco de não terminar nunca. Falamos dos poetas de São José do Egito, de teatro — os que amamos e os que causam dor física —, e do primeiro disco dele, Bandarra ou o Caminho que Vai Dar no Sol, que, segundo o próprio, “parece mais um livro do que um disco”. Falamos também do álbum novo, que finalmente sai este ano! Da obstinação em “dar vida ao personagem a tal ponto que o autor desapareça”, influência direta do mestre Raimundo Carrero.
Tibério diz que não é cinéfilo e que não tem paciência com os jargões de roteiro — punch line, inciting incident, plot twist… Detesta termos em inglês, tanto que já saiu agoniado da faculdade de publicidade por causa disso. Mas acabou cedendo a algumas fórmulas: “Você sabe que existem esses marcos. Ok, eu vou atender a isso. Mas, a partir daí, isso também libera a minha criação.”
E se diverte com o sofrimento de Gabriel escrevendo o roteiro:
Daniele Agapito: Ele sofre?
Tibério Azul: Ele sofre e eu adoro. Quando surge um problema, eu adoro. Eu digo, mas a graça é essa Gabriel! Se não tiver problema, não tem graça.
Várias vezes Tibério cita Gabriel Mascaro, diz que o amigo é um artista plástico fazendo cinema. Depois muda de assunto, lembra de um texto que criou para uma bailarina recitar no meio de uma apresentação. Ela estava achando o processo demorado: “Tu já tem alguma coisa?”. Mas, quando o texto finalmente ficou pronto, ela amou.
Daniele Agapito: Era sobre o quê?
Tibério Azul: Tem a manhã, a tarde e a noite, né? Mas o meu texto falava de um homem que procurava o amor no meio da tarde.
Daniele Agapito: Por que no meio da tarde?
Tibério Azul: É na tarde que o amor se revela, porque é no medíocre, no cotidiano, que consigo perceber a sutileza. Na noite, todo mundo está fazendo suas poses; de manhã, a sensibilidade já está aflorada. Mas eu procuro o amor no meio da tarde.
Daniele Agapito: Que bonito!
Tibério Azul: Tá vendo? Por isso que eu demoro tanto.