
Por Daniele Agapito
Eu não sabia bem o que esperar do filme. A foto do cartaz é uma imagem de Bárbara Colen com roupas sujas de barro, e o nome me chamava atenção: O Silêncio das Ostras. Ostras? Um filme geolocalizado em Minas Gerais, um estado sem litoral, rodado numa vila de operários de uma mina. Onde caberia uma ostra nessa narrativa?
Vou seguir a matéria na difícil tentativa de evitar spoilers, pois essa questão — em aberto e depois respondida — revela uma das cenas mais sensíveis do filme, em que filha (Kaylane), mãe (Cleude) e uma artista circense (Flor de Lis), interpretadas por Lavínia Castelari, Sinara Teles e Lira Ribas, respectivamente, jogam conversa fora e se entretêm com as últimas novidades de maquiagem do momento, incluindo aquele clássico batom de vó com bala verde que deixa a boca rosada. Uma ode ao feminino que se desenrola por trás das lonas de um circo de interior que visita o vilarejo.
O que posso adiantar é que a vontade de mar da mãe é grande. E grandes também são as imagens. O lugar onde o filme é ambientado ganha força no telão: quando a câmera se afasta, as atrizes parecem miniaturas, engolidas por uma cratera descomunal. Mergulhamos nas entranhas da terra, mas a sensação é de estarmos em Marte, ou em qualquer outro planeta morto, com lagos tóxicos formados por metais pesados em tons de merthiolate. Como uma espécie de baixa estatura como a nossa consegue abrir um buraco desse tamanho? As cenas de devastação provocam arrepios. Parafraseando Nação Zumbi: “Estamos comendo o mundo pelas beiradas.” Penso que deve ser esse o pecado da gula ao qual a Bíblia se refere, além do excesso de McDonald’s.
Outra coisa que quero destacar logo de cara: este é o primeiro longa de ficção de Marcos Pimentel, que possui uma extensa trajetória como documentarista. Ele não pretende pular de uma linguagem para outra: “O documentário é meu jeito de falar com o mundo”, pontua. De fato, O Silêncio das Ostras mistura essas duas linguagens com classe, e, de certa forma, me remete à obra do cineasta iraniano Abbas Kiarostami, mestre-mor nessa arte de confundir os limites entre o documental e o ficcional. As referências do diretor também incluem um sucesso de massa, numa reintrodução da música apocalíptica “Minha Pequena Eva”, em um cenário a milhas distante da alegria contagiante do axé. Aqui, parece mesmo o fim da aventura humana na Terra.
Na sessão especial em Curitiba, quando o diretor abriu o microfone para conversar com a gente, ele assume que sentiu necessidade de fazer uma ficção porque foi impedido de fazer documentário: as mineradoras não permitiam sua entrada, não tinha conversa. O espaço aéreo é fechado, não passa drone, câmera não entra de jeito nenhum. Selando a estratégia do filme ficcional, também, sobre os não ditos.
Apesar do impacto causado no grupo que assistiu ao filme, a direção tem consciência de que não vai fazer cócegas nessas gigantes da mineração, velhas conhecidas, responsáveis pelos crimes ambientais e humanitários de Brumadinho e Mariana. Que jamais esquecerei, por motivos pessoais.
Quando Brumadinho estourou, eu estava internada, tomando soro num hospital do Rio de Janeiro, e a TV no quarto só pegava canal aberto. Não tinha outra opção senão ouvir notícias sobre o rompimento da barragem até receber alta.
Quero lembrar: os últimos vazamentos de minério em Brumadinho, em termos de destruição de ecossistemas de água potável e mata ciliar, afetaram pesca, agricultura, turismo e ceifaram vidas de um povoado inteiro. Danos que eliminaram recursos insubstituíveis para a vida, e desembocaram até o mar de outro estado: o Espírito Santo. Já em Mariana, segundo fontes da UFMG, a “tragédia-crime” atingiu diretamente cerca de 126 famílias do povo indígena Krenak, causou a perda de mais de 11 toneladas de peixes por asfixia, e resultou na morte do Rio Doce.
Apesar dos crimes ambientais sabidos e, até aqui, imparáveis, segundo Marcos Pimentel, o estado de Minas Gerais tem por volta de 300 mineradoras em funcionamento — sabe-se lá em quais condições.
Lembrando: documentarista não entra nessas minas de jeito nenhum!
Mas ele peitou. E, de alguma maneira, furou o cerco como deu. Espiou. Conversou com Deus e o mundo. Fez o caminho da lama tóxica e, ao fim, evocou um renascimento. Eu disse que não vou dar spoiler, mas penso que, acima de tudo, o filme é sobre uma jornada de purificação do feminino, encarnado na personagem Kaylane, que, já adulta, de alguma maneira vai se desintoxicar dos metais pesados no seio de uma nação indígena.
Bárbara Colen conta que um portal se abriu quando mergulhou nos estudos para compor a personagem, especialmente ao ler A Queda do Céu, de Bruce Albert e Davi Kopenawa. Suas palavras confirmam o que eu já suspeitava como espectadora: viver essa história foi, para ela, um verdadeiro rito de cura.
Levanto a mão, me apresento, digo que sou atriz e colaboradora do Cine Ninja, afluente de cinema do Mídia NINJA, e pergunto:
— Num país com histórico de dar “calaboca” em quem faz denúncias ambientais contundentes, vocês não têm medo de seguir com a divulgação de O Silêncio das Ostras?
(Vale lembrar que empresas como a Vale, acionista da Samarco — responsável pelo rompimento das barragens em Brumadinho, o maior “acidente de trabalho” registrado no país até hoje — mantêm diversas iniciativas de patrocínio, festivais de cinema e apoio a projetos culturais. Isso acaba gerando esquiva na imprensa tradicional e em alguns realizadores de cinema ao abordarem o tema.)
Um pequeno silêncio paira na sala. Bárbara Colen e o diretor se entreolham e, mais uma vez, são sinceros: medo, não — “temos noção do nosso tamanho”. Mas portas se fecharam na cara. Notas tímidas na imprensa tradicional. Vetos em alguns festivais. Gente da própria classe artística com receio de dar nome aos bois. Diante disso, restou apenas uma saída: distribuir o longa na base da guerrilha, pelo boca a boca. Calar, porém, jamais foi uma opção. Não para eles, mineiros de carteirinha, que sofreram junto com seu povo as dores daquele buraco imenso que não cicatrizou.
Com distribuição da Olhar Filmes, O Silêncio das Ostras tem sessões confirmadas em Curitiba, Porto Alegre, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Fortaleza, Manaus, Belo Horizonte, Recife e Belém. Consulte a programação do cinema da sua cidade.