
Por Kaio Phelipe
Ícone da cultura queer no Brasil, Edy Star foi o primeiro artista a se assumir publicamente homossexual no país, em uma entrevista concedida à revista Fatos & Fotos, em 1975. Durante a ditadura militar, enfrentou forte repressão: ao lado de Ney Matogrosso e Maria Alcina, foi censurado por três anos, impedido de aparecer na televisão e nos jornais. Sua carreira, no entanto, resistiu ao tempo e à opressão, marcada por irreverência, coragem e parcerias lendárias com nomes como Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Miriam Batucada.
Edy também dividiu histórias e momentos com grandes personalidades da música e da arte brasileira, como Caetano Veloso, Gal Costa, Jorge Lafond, Elke Maravilha, Mart’nália, Clara Nunes, Djavan, Áurea Martins e Silvinho Cabeleireiro. Sua trajetória foi recentemente registrada no livro Eu Só Fiz Viver: A História Oral Desavergonhada de Edy Star, escrito por Ricardo Santhiago com a colaboração de Igor Lemos Moreira e Daniel Lopes Saraiva. Ele também foi tema do documentário Antes que me Esqueçam, Meu Nome é Edy Star, dirigido por Fernando Moraes Souza.
Aos 87 anos, Edy Star enfrenta um momento delicado de saúde após sofrer um acidente doméstico. Ele está internado em estado grave, com risco iminente de falência renal – o que pode ser fatal na idade do artista.
Amigos próximos estão organizando uma campanha de apoio financeiro para ajudar no tratamento do artista. Quem puder contribuir pode fazê-lo via pix para o número: 11992521600 (Ricardo Santhiago/Nubank).

Como é ter um livro sobre você?
Eu só posso agradecer a quem fez o livro, ao autor e aos auxiliares. Só posso agradecer porque nunca pensei em ter uma biografia. Como o documentário também nunca tinha sido planejado. Apenas disse a quem quis fazer que eu toparia colaborar. Acho isso uma porra-louquice, uma loucura, mas não estou reclamando. Acho que está faltando algo no livro e no documentário. Não são tão picantes quanto eu gostaria ou quanto eu sou. Muita gente esperava cosias escabrosas, mas eu também não chegaria a esse ponto.
São dois livros. Um é biográfico e o outro não. São coisas que escrevi quando tinha dezessete e dezoito anos. O Ricardo Santhiago achou interessante publicar. São textos de outra época.
Pra viver, eu preciso fazer o que gosto. E eu gosto de pintar, de escrever e, acima de tudo, gosto de cantar, que é do que eu vivo. Do que me adianta tanta reportagem se eu não tenho trabalho? As pessoas não me chamam pra trabalhar. Agora me nomeiam de “artista maldito”. Pra conseguir um show, será que é preciso ficar chorando? Mas não vou fazer isso.
O que eu quero é fazer show. Preciso fazer show, preciso mostrar a minha arte. Estou com um disco pronto, mas sem poder lançar. Pra que vou lançar se não vou fazer show?
Estou com um disco pronto com músicas do Raul Seixas, meu amigo Raul. Gravei meu amigo Sérgio Sampaio e agora gravei Raul. O disco está pronto. Queria fazer uma série, queria também cantar Gilberto Gil e Zé Rodrix.
Você fugiu com um circo depois de ter trabalhado na Petrobras?
Não é que fugi com o circo.
Minha mãe é uma mulher do interior e meu pai era um cara de alta cultura, português, de uma família que tinha brasão dos Severos. Meu pai era filho de barão, e se apaixonou pela minha mãe em Juazeiro, no norte da Bahia. Aí casaram e a cultura do interior exigia que o casamento acontecesse lá. Minha vó sempre dizia pra minha mãe não dar antes do casamento. Quando minha mãe casou, meus pais vieram morar em Salvador.
Eu sempre acordei tarde. Até hoje acordo muito tarde. Mas minha mãe, interiorana que acordava às cinco da manhã, nunca admitia que eu acordasse às dez horas. Sempre acordava com ela aos gritos, me chamando de vagabundo e preguiçoso.
Eu estudava e aí resolvi mostrar pra minha família que eu podia arranjar um trabalho. Estudei, me formei como auxiliar técnico de produção de petróleo. Fui contratado pra trabalhar na Petrobras e fui pra Campo de Dom João (BA). Eu ganhava cinco vezes o valor que meu pai ganhava. Tinha bastante dinheiro e achava ótimo. Lá, eu tinha direito a carro e motorista. Eu fazia parte de uma classe selecionada, privilegiada.
Com um ano de trabalho, comecei achar que aquilo não me servia mais e que o ambiente não era pra mim. Já tinha provado pra minha família que eu podia trabalhar. Um dia, voltando pra casa, vi um circo e parei pra ver. Amei o que vi. Tinha um cara que cantava e eu achava ruim pra cacete. Falei isso com alguém e me perguntaram se eu cantava melhor. Respondi que sim, claro. Aí mandaram eu cantar. Ensaiei com uma bandinha, cantei e aí me chamaram pra trabalhar e seguir com eles.
Não fugi com o circo, fui embora com eles. Passei três anos pulando de um circo pra outro. Naquela época, os circos eram circos-teatros. A primeira parte do espetáculo era feita por trapezistas, palhaços, malabaristas. A segunda parte era uma peça de teatro, espetáculos dramáticos, A escrava Isaura, Os dois sargentos, O céu uniu dois corações.
Eu não servia só porque sabia cantar. Também auxiliava os palhaços nas esquetes e atuava nas peças. No circo, todo mundo faz tudo. O malabarista era galã, a bailarina era a mocinha, todo mundo trabalhava no teatro.
A minha família achava estranho, meu pai achava estranhíssimo. Mas era muito legal. Quando disse que ia embora com o circo, meu pai levantou da mesa e disse que na família dele nunca tinha tido isso. Eu respondi que então estava na hora de começar a ter. Foi um corre-corre dentro de casa, ele com o chinelo na mão querendo me pegar.

Qual é a sua ligação com a carreira do Caetano Veloso e da Maria Bethânia?
Conheci o Caetano quando ele ainda nem cantava. Conheci Caetano em 1959, quando eu trabalhava na Petrobras. Fui passar um final de semana em Santo Amaro e ficamos tão amigos, que o Caetano me convidou pra um baile no ginásio de Santo Amaro. Naquela noite, nós éramos quem melhor dançavam naquele salão. Ficamos muito amigos e descobrimos muitas afinidades em relação à cultura. Até hoje somos amigos.
Quando ele e Maria Bethânia já cantavam em Salvador, eu já conhecia o Roberto Sant’Ana. Falei pro Roberto que eles iam fazer um som maravilhoso no Teatro Vila Velha, que naquele tempo ainda era Teatro dos Novos, pertencia ao Grupo de Teatro dos Novos.
O Roberto foi e, graças aos deuses, gostou e reconheceu o talento de Gracinha – naquele tempo, a Gal Costa era Gracinha –, Tom Zé – que era maluco total –, Caetano, Bethânia.
Mas eu não sou o culpado disso, não. A culpa é do talento deles. Ninguém pode negar o talento desse pessoal.
Também conheceu a Gal Costa?
Gracinha? Conheci com outras amizades. A última amizade dela era um pouco tóxica. Era uma coisa que ninguém entendia. Tem fatos que a gente não entende. Nem a família dela, nem os irmãos. É até melhor não procurar entender.
Como foi a repercussão de Sweet Edy, seu primeiro álbum, lançado em 1974?
Eu estava vindo da boate mais famosa do Rio de Janeiro, a Number One. Eu estava substituindo a Maria Alcina, que tinha feito uma temporada de seis meses lá. Depois, eu fiquei sete meses cantando nessa boate, de quarta a domingo, com shows lotados. A Number One era a boate da alta sociedade carioca. A mídia tinha muita expectativa ao meu respeito. Saía notas diariamente sobre o meu show.
Aí fui chamado pra fazer o Sweet Edy. Mas quando o disco saiu, eu odiei, detestei, e nunca mais ouvi. Fiz clipe no Fantástico, fiz três meses de shows em São Paulo em uma boate. Mas achava o disco um terror, não era nada do que eu queria. Eu estava com outras coisas na cabeça.
Só fui ouvir o disco quase quarenta anos depois. Ele foi feito em 1973, lançado em 1974, e só fui escutar outra vez em 2007. Tinha ido a uma festa em Caieiras, em homenagem ao Raul Seixas, na casa de um grande fã dele chamado Bigode. Fui jantar na casa dele e colocaram música pra tocar. Era o meu disco. Essa foi a vez que escutei e prestei atenção.
Hoje, acho o Sweet Edy razoável, simpático. É o único disco com holograma no Brasil, isso é uma coisa maravilhosa. Tem uma capa bonita. E uma série de pessoas deu opinião sobre ele, mas não fui eu quem pediu.
Também não fui eu quem fez o disco. Quem fez foi o João Araújo, pai do Cazuza. O Cazuza era um garoto de doze ou treze anos, que depois se tornou um grande amigo. Ele e o Ney. Hoje, Sweet Edy tem quatro ou cinco versões.

Como foi se assumir publicamente em 1975, na revista Fatos & Fotos?
A Fatos & Fotos era uma revista grande e foi uma página inteira. Em 1975, eu fazia Rocky Horror Show. Em uma conversa com um jornalista, ele me perguntou o motivo de eu receber tantos convites, tantas pessoas me chamando pra trabalhar.
Naquele tempo, Cauby Peixoto era enrustidíssimo. Agnaldo Timóteo era superenrustido. Todo mundo sabia, mas ninguém se assumia. As pessoas perguntavam pro Agnaldo se ele era gay e ele respondia “não, eu sou Agnaldo Timóteo”. Vários artistas eram gays e todo mundo sabia, mas ninguém se assumia.
Quando aconteceu isso, eu tinha uma mulher. Minha mulher era modelo e estava voltando de um desfile em São Paulo. Naquela época, davam revistas pra gente ler no avião. Minha mulher abriu a revista e viu a página onde eu falava abertamente. Tinha uma foto minha de espartilho e a manchete era: “Eu assumi o que sou”.
Todo mundo queria saber sobre mim. Mas foi simples assim. Um jornalista me perguntou e eu respondi.
Não recebi nenhuma ameaça, não encontrei ninguém querendo me dar porrada na rua, não recebi nenhum coió, não perdi nenhum trabalho por causa disso. Pelo contrário. Adquiri muitos amigos depois que isso aconteceu.
Sofreu censura na ditadura militar?
Claro. Quem não sofreu censura na ditadura? Eu, Maria Alcina e Ney Matogrosso ficamos três anos sem poder aparecer em televisão e jornais. Não era pelo o que a gente cantava. A nossa imagem era atentatória a moral e bons costumes. Não era pelo o que a gente cantava ou dizia.
Várias vezes fui chamado na censura federal também pelas coisas que eu cantava. E eram músicas do Gonzaguinha, que eram consideradas subversivas. Eu cantava de forma subversiva também, descia do palco, metia o dedo na cara do público, cantando “tudo vai bem, tudo legal, amanhã vai acabar o seu carnaval”. Era uma coisa de querer acordo o povo.
Muita gente era chamada na censura federal. E eu ia sozinho. Depois, quando entrei pra Number One, fui duas ou três vezes com o Mauro – o dono da Number One –, e uma vez fui com advogada. Essa era uma fase que a gente entrava na censura federal e não sabia se ia sair. Era uma fase onde muita gente desaparecia. As pessoas eram jogadas da ponte Rio–Niterói, eram jogadas do avião.
Ser chamado na censura federal era uma coisa muito idiota. Na Number One, o meu show era variado, cantava músicas sérias e músicas jocosas. Uma vez, fiz um repertório sobre peito, com músicas que tinham a palavra peito e em outras eu trocava uma palavra por peito. Aí fui chamado na censura e perguntaram por que é que eu estava fazendo um pot-pourri de peito. Pra você ver a que ponto chegava a cultura da censura federal.
Mas isso não acabou com o fim da ditadura, não. Isso continuou de forma velada. Em 1990, continuei fazendo os meus shows, mas de vez em quando eu era chamado pra “conversar”, “tomar um café”. Esse convite pra tomar café era pra não falar que eu seria interrogado.
Uma vez, disseram que o único jeito seria sumir comigo. Aí bateu na minha cabeça de ir embora do Brasil. Fiquei enlouquecido. Nessa época, eu morava no Bairro de Fátima (RJ), perto da Roberta Close e do Agnaldo Timóteo. Comecei a pensar em ir embora, juntei um dinheiro, comprei a passagem e comecei a pensar em me suicidar. Minha ideia era passar um mês na Espanha, voltar e me suicidar.
Quando cheguei na Espanha, passei quatro horas andando pelo aeroporto porque eu não tinha pra onde ir. Aí passou uma mulher que já tinha trabalhado comigo em uma boate e veio perguntar o que eu estava fazendo lá, se eu estava maluca. Ela disse que eu poderia ter sido preso. Estava no tempo de ataques terroristas do ETA (Euskadi Ta Askatasuna) e a polícia podia ter me confundido e ter me levado preso. Ela me levou pra casa dela e foi trabalhar. No dia seguinte, ela me levou pro trabalho, que era uma boate de samba. Nessa época, os europeus eram encantados por samba. Muita gente do Brasil ia pra lá trabalhar.
Conversei com a dona do lugar onde essa amiga trabalhava, falei que sabia cantar e, no meu terceiro dia na Espanha, eu já estava empregado. Um mês depois, eu já tinha empresário, que lá a gente chamava de representante. Cada mês eu ficava em uma cidade pra trabalhar. Fiquei vinte e quatro anos morando fora.
Chegou a ser preso?
Não. Cheguei a ficar detido, mas preso não. E nunca por conta de censura.
Eu estava tomando um café em frente a uma delegacia na Lapa. O pires veio grudado na xícara e caiu, quebrou. O garçom fez um auê gritando que eu ia pagar a xícara. Eu disse que, já que ia ter que pagar a xícara e o pires, ia quebrar a xícara também. Fui e quebrei. Aí chamaram a polícia. Já que eu não pagaria só pelo pires, quebrei a xícara também. A polícia me pegou e me levou pra 3° DP, onde fiquei detido.
Mas fui parar na delegacia várias vezes por causa de brigas conjugais. Tive muitos causos. O policial, quando via a gente, já não se surpreendia.

Conheceu o Markito, a primeira pessoa pública a falecer em decorrência da aids no Brasil?
Conheci o Markito, ele era costureiro. Do Leblon. Foi um auê, ninguém sabia o que era, se dizia câncer gay. Não frequentava tanto o ateliê do Markito. Eu era amigo mesmo do Silvinho, o cabeleireiro. Frequentava muito a casa dele.
O Silvinho estava sempre com a Elke Maravilha. Conheci a Elke na casa do Silvinho, e depois frequentei muito a casa dela no Leme.
Mas eu não tinha muita intimidade com o Markito, acho que não tenho nem foto com ele.
Como foi acompanhar o Silvinho?
Eu não vi. Não sei lidar com morte. Recentemente, perdi meu namorado, há um mês. Meu namorado de doze anos. Ele sofreu um acidente e morreu. Ainda estou me levantando desse choque, fiquei muitos dias sem sair de casa. Ele era um garoto jovem, um bom menino, tinha uma família ótima, do interior do estado da Bahia.
Nunca soube lidar com morte. Quando o Silvinho apresentou sintomas, eu ainda estava na Espanha. Quem me dava notícias era a Elke. Comecei a ver as notícias, mas não tinha muito interesse em saber. Não sei mesmo lidar com a morte.
Não soube lidar com a morte da minha mãe, do meu pai, dos meus amigos. Eu não sei ir ao caixão. Não quero nem saber de quando estão sendo enterrados. Quero lembrar de todo mundo vivo, conversando comigo. Eu não quero ver ninguém morto. Não vi minha família morta. Não vi minha mãe morta, não vi meu pai morto, não vi meus amigos mortos. Lembro de todo mundo dando risada.
Lembro do Silvinho com aquele cabelo maravilhoso, nas festas de Natal maravilhosas que ele dava. Ele chamava a Elke de “mãe de todas”. Ele era muito peludo e tinha muito pelo no corpo. A gente ia pra piscina e ficava encarnando nele, falando pra ele tirar o casaco de pele. Não acompanhei a morte dele.
Fui visitar o túmulo de três pessoas apenas. Raul Seixas, Miriam Batucada e Sérgio Sampaio. Eu tinha prometido pra mim mesmo que ia visita-los.
Depois que voltei pro Brasil, fui ao Jardim da Saudade, na Bahia, pra ver o túmulo do Raul. Estive no interior de São Paulo pra ver o túmulo da Miriam Batucada. E estive em Vitória (ES) pra ver o túmulo do Sérgio Sampaio. Tirei foto dessas três vezes pra documentar. Foram meus grandes amigos e eu sentia que tinha que ir lá, como se fosse uma despedida.
Morte, se mantenha pra longe de mim, por favor.
Como foi trabalhar com Jorge Lafond?
Quando conheci o Lafond, ainda não existia a Vera Verão. A Vera Verão nasceu no nosso show. Ele, eu e a Leda Lúcia fazíamos um show.
O Lafond vivia na Cinelândia (RJ), perto da Câmara dos Vereadores, encostado em um carro, dando pinta, falando com todo mundo. Ele estudava dança.
Eu estava com vontade de montar um musical com três pessoas. Esse musical foi por causa de um amigo que não conseguia entrar no sindicato dos artistas. Ele queria ser ator, mas o sindicato exigia que você tivesse feito alguma obra pra comprovar que trabalhou. Montei o musical pra esse amigo trabalhar. Aí já tinha eu e a Leda Lúcia, estava faltando mais um comediante. Nós vimos a bicha dando pinta na Cinelândia e resolvemos chamar ela, era o Lafond.
O Lafond falou que não conseguiria aprender a decorar texto. Cada um de nós também faria um número solo. Eu fazia uma menina doida e que tocava violino. Leda Lúcia fazia um monólogo sobre uma mulher. E tinha que ter um monólogo pro Lafond, mas ele não queria falar de jeito nenhum. Foi um sacrifício pra ele falar. Comprei uma peruca pro Lafond e ele entrava com uma espada na mão, gritando “eu dou a rosca, eu sou She-Ra”. As pessoas já começavam a rir. De repente, ele começou a falar e foi um sucesso.
Tenho várias gravações dessa época, tenho muita coisa documentada. Toda minha vida está gravada.
Lá pras tantas, nós tivemos uma discussão, uma desavença. Fomos fazer um show no Tijuca Tênis Clube (RJ) e o presidente pediu pra gente cortar os palavrões, porque a mãe dele estaria lá naquele dia. Fui pro camarim, dei o recado e o Lafond falou “mona, eu não sei se vou conseguir falar sem palavrão”.
Eu entrei no palco, disse que se a gente titubeasse um pouco, não era porque esquecemos o texto, mas porque o presidente havia pedido pra cortar os palavrões. Uma senhora na primeira fila perguntou o motivo de não ter palavrão, e eu expliquei o que o tinham dito. Ela disse que era a mãe do presidente e que estava lá pra ouvir palavrão, e que se não tivesse palavrão ela e as amigas iam embora.
Logo depois disso, eu e Lafond tivemos uma briga e paramos de nos falar. Continuamos fazendo o show, mas sem trocar nenhuma palavra. Ele foi um artista perfeito e sempre muito profissional.
Eu ficava em uma ponta do camarim, ele ficava em outra e a Leda Lúcia no meio. Como eu era o diretor, ele falava “artista Leda Lúcia, pergunta ao diretor Edy Star se hoje eu posso ter um vale”, a Leda Lúcia repetia “diretor Edy Star, o artista Jorge Lafond está perguntando se pode ter um vale”, eu respondia “artista Leda Lúcia, diga ao artista Jorge Lafond que ele vai ter o vale”.
Jorge Lafond era desse jeito. Nunca mais nos falamos. Ele sempre foi um grande artista, um grande profissional. Foi nessa peça que surgiu a Vera Verão.
Depois, quando vi, ele já estava na televisão fazendo Vera Verão, seu grande sucesso. Não era nem personagem. Vera Verão e Jorge Lafond eram exatamente iguais.

Quando chegou ao Rio de Janeiro, como era a Cinelândia?
Era um lugar de muita pegação. Quem pegava muito eram os militares. Os marinheiros ficavam na Cinelândia. De um lado, ficava o Ministério da Educação, ali eram os fuzileiros. Os militares do exército ficavam no Largo da Carioca. Ali tinha um ponto de bonde que subia pra Santa Teresa e tinha o Tabuleiro da Baiana, onde os militares do exército ficavam. E fervilhava. Havia muitos bancos, muitos cinemas.
Tinha o Odeon, o Cine Palace, o Rival, o Teatro Dulcina, o Cine Orly. Na Carioca, o Cine Íris funcionava bastante. Cheguei a fazer show lá. Fazia um show às três da tarde e outro às seis horas.
Tinha algum lugar na Bahia que gostava de frequentar?
Tinha uma boate chamada Anjo Azul e era frequentada pela classe alta. Não era uma boate gay, mas muitos amigos frequentavam e a maioria era gay.
Eu não frequentava. Tinha a minha própria turma, que era a turma da quinta árvore – uma árvore que não existe mais, ficava na Castro Alves. Derrubaram todas as árvores. Eu e mais quatro amigos nos reuníamos ali. Fazíamos pegação, passeávamos pela cidade. Descíamos pra Cidade Baixa, íamos até a Escola de Aprendiz de Marinheiros, a Base dos Fuzileiros Navais.
Nessa época, eu era porradeiro. Amava arranjar confusão, brigava, dava porrada. Me chamavam de bofélia por causa disso. Eu era a bicha mais bofe, gostava de brigar, eu era a bicha que gostava de dar porrada.
Muitas vezes os caras não tinham o que fazer e vinham dar porrada nos viados. Eu ficava na Praça Castro Alves e uma vez apareceram duas bichas correndo, gritando “bofélia”. Os bofes tinham chegado pra dar porrada. Eu pegava o que tinha na frente, pedaço de pau, ferro, cabo de vassoura. Nunca briguei na não. Eu subia a rua com um pedaço de ferro e depois vinham cinquenta viados atrás de mim. A gente colocava os bofes pra correr. Tá pensando que viado é esculhambação? Não é assim, não, meu amor.
Como era a sua relação com a Clara Nunes?
Conheci a Clara Nunes na Bahia em 1959. Ela tinha acabado de lançar o primeiro disco. Eu tinha um programa de TV e o divulgador dela me pediu pra que ela fosse lá. Resolvi fazer melhor. Inventei uma gincana, falei que tinha uma cantora carioca em Salvador, famosíssima, no hotel tal, e desafiei alguém levar ela ao programa. Soltei as dicas e as pessoas foram até o centro da cidade, ela estava no Palace Hotel, e trouxeram ela para o programa. Nós ficamos grandes amigos.
No Teatro Clara Nunes, eu não pagava pra entrar e ficava na primeira fila. Ela passava e piscava pra mim. Fomos grandes amigos. Clara Nunes foi uma grande amiga e é uma grande cantora. Aplaudo de pé.
A primeira vez que os Novos Baianos apareceram na televisão, foi no meu programa. Eram três: Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor e Galvão. O Pepeu Gomes tocava no meu programa.
A primeira vez que Antonio Carlos e Jocafi apareceram na televisão, foi no meu programa, na TV Itapuã, em Salvador.
Maria Creuza também cantou no meu programa. Ela já tinha aparecido na televisão, mas também cantou no meu programa. Grande cantora e que hoje vive na Argentina.
Quando fui trabalhar, em 1973, na Number One, quem fazia meu backing vocal era o Djavan e a Áurea Martins. Eram os cantores da casa e, no meu show, eles faziam backing vocal.
No Carnaval, nessa época, eu fazia três bailes. Sexta-feira era o baile do Pão de Açúcar, promovido pelo Guilherme Araújo. No sábado, tinha outro. Na terça, tinha o Gala Gay, que era um baile imenso, no Scala. Meus backing vocals eram os filhos do Martinho da Vila. A Mart’nália, inclusive. Até hoje quando a gente se encontra, a gente dá risada. Aplaudo a Mart’nália de pé sempre, maravilhosa.
Qual é a importância do Raul Seixas e da Maria Alcina na sua vida?
O Raul conheci quando ele ainda não era Raul Seixas. Minha amizade com o Raul é muito antes do sucesso. Raul ainda morava na Graça (BA), antes de trabalhar na televisão.
Quando fui expulso da TV… todo mundo sabe que fui expulso da TV por cobrar o meu salário. Não era cachê, eu era contratado. Tenho as carteiras de trabalho pra mostrar. Fui expulso da TV em um sábado, e fui pro Centro da Cidade. Encontrei o Raul, que me levou pro Rio de Janeiro, pra gravar um disco.
Ele era da CBS e ia gravar um disco com direito a quatro artistas. Acabei sendo um dos quatro. Ele me levou e já tinha música pronta pra mim. A música era Aqui é quente, bicho. Eu gravei meu compacto e aí chegou o Sérgio Sampaio.
Sérgio Sampaio entra na história pra fazer o disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10. Hoje, dou uma risada, mas na época era coisa séria.
Raul sempre foi um grande amigo. Estivemos juntos um mês antes dele morrer em um show no Canecão (RJ). Nesse dia, senti que ele estava deteriorado fisicamente, das drogas que tomou. Ele estava fazendo tratamento de desintoxicação e já não cantava mais.
Raul foi um grande amigo e agradeço a ele por muita coisa, por ter conhecido ele. Um baiano do bairro da Graça. Agradeço a oportunidade de ter me levado pro Rio de Janeiro. Minha vida discográfica começa com o Raul.
Maria Alcina é minha irmã. Daqui a pouco, ligo pra ela chamando pra sair.
Quando cheguei ao Rio, fui trabalhar na região da Praça Mauá. Era um puteiro geral, uma boate em cima da outra. Tinha a Lapa e tinha a Praça Mauá. O proprietário do lugar onde eu trabalhava, também arrendou o Teatro Rival e transformou em Café Concerto Rival. Aí começamos a montar peças lá. Em uma das peças, eu imitava a Maria Alcina, que estava no auge do sucesso com Fio maravilha. Um amigo viu e levou a Maria pra me ver. Ela me viu e levou o empresário pra me ver. O empresário me viu e aí me contratou.
O Caetano Veloso acha essa história muito engraçada, o cara me contratando pra me vestir de Maria Alcina.
Quando a temporada da Maria Alcina acabou na Number One, veio a minha temporada, mas já sem fazer a imitação. Nessa época, eu fazia cinco shows por noite: oito horas da noite, dez, meia-noite, duas da manhã e o último às quatro horas. Isso era diariamente, com exceção de segunda-feira.
Quando acabou a minha temporada, fui pra São Paulo. Mas briguei com todo mundo lá e voltei pro Rio, pra Praça Mauá e a fazer quatro ou cinco shows por noite. Sempre trabalhando. Sempre na batalha.