Edgar Morin, a humanidade e a ética (parte 3) – Jornal da USP

Por Ênio Alterman Blay, pesquisador do Centro de Inteligência Artificial no InovaUSP

Neste artigo sobre O Método, de Edgar Morin, vamos falar dos dois últimos volumes da série. O quinto tem por subtítulo “A Humanidade da Humanidade” e o sexto e último, “Ética”.

Naquele voltado à humanidade, Morin começa destacando as trindades:

• indivíduos/sociedade/espécie;
• cérebro/cultura/espírito;
• razão/afetividade/pulsão.

Essa forma de apresentação das tríades ressalta como cada grupo de conceitos (se os podemos chamar assim) está interligado; um conceito não existe sem outro. Se contrapõem, mas, ao mesmo tempo, se completam.

São muitas as ideias discutidas com relação às trindades apresentadas. Ou seja, difícil sumarizar. Um trecho que destaquei na minha leitura foi: “Seria um grande erro (além de ser uma crença mítica a mais) crer que o mito foi expulso da racionalidade moderna […]”. Então, ao chamar a atenção para aspectos frequentemente desconsiderados na razão contemporânea, ressalta a necessidade do permanente autoquestionamento na pesquisa.

Uma outra questão tratada neste livro é o homo ludens, ou seja, nossa necessidade humana de jogar, brincar. Apresenta a classificação proposta por Huizinga e Caillois: âgon (competição), alea (jogos de azar), mimicry (fantasias) e ilinx (vertigem – tipo bungee jump). Não deixa de ser surpreendente o quanto a sociedade contemporânea está involucrada neste tema; as recentes discussões de sistemas de apostas online o demonstram.

Uma outra oposição à qual Morin retorna várias vezes nesta obra e, na verdade, em outras também, é a de Homo Sapiens, Homo Demens. Esta representa a contraposição (e ao mesmo tempo, a complementaridade) humana entre usarmos a racionalidade e o senso de utilidade, ao mesmo tempo em que empregamos poesia e mito. Um extremo seria uma vida puramente racional, que seria impossível. Bem como seu oposto.

É na relação indivíduo/sociedade que vários dos conceitos criados ou empregados por Morin melhor se materializam: os princípios hologramático, recursivo e dialógico.

Hologramática é a relação na qual a parte está no todo e o todo na parte. Ou seja, indivíduos estão na sociedade e a sociedade está nos indivíduos; a relação recursiva é aquela na qual os indivíduos produzem a sociedade e esta os produz, em uma retroação. Por fim, Morin enumera diversas relações dialógicas. Destaco a relação antagônica na qual a sociedade, ou seja o conjunto das pessoas, cria regras que querem controlar a liberdade delas próprias. Ou ainda, o antagonismo do egocentrismo versus sociocentrismo. Há uma competição entre indivíduos, mas uma colaboração em situações nas quais as sociedades são ameaçadas, como guerras.

Mais à frente, Morin faz uma breve análise dos regimes democráticos como sistemas políticos complexos. Isso porque tais regimes existem com pluralidade, antagonismos e concorrências. Por isso os considera frágil e podem-se romper na exasperação dos conflitos. Assim, afirma que a democracia só pode se consolidar enraizando-se no tempo e virando tradição. Ao contemplarmos o cenário brasileiro, vemos como estas observações que explicam a desestabilização do sistema parecem bastante evidentes e as constantes rupturas do regime nos fazem sempre recomeçar.

“A Humanidade da Humanidade” vai se desenvolvendo, pulando de tema em tema, mantendo a sociedade como fio condutor. Num outro trecho que, para mim, merece destaque, Morin afirma que “[…] os progressos técnicos e científicos não são uma garantia de progresso intelectual e de progresso ético. Estou entre os que pensam que os desenvolvimentos técnicos e econômicos de nossa civilização estão ligados a um subdesenvolvimento psíquico e moral”. Deixo para você ponderar sobre esta ideia.

Para concluir os destaques deste volume, cito uma passagem na qual Morin afirma que aplicar modelos deterministas, racionalizadores, econômicos, para conhecer o ser humano, desprezam o essencial. Pois os humanos se orientam pela diversão, desperdício, exaltação, adoração do invisível, entre outras características da subjetividade.

Passemos ao último volume: “Ética”, o menor deles, publicado em 2004. Entre o anterior e este, passaram-se três anos, nos quais Morin publicou outras coisas.

É interessante ver a gênese desta grande obra, O Método. a saga é contada no livro A aventura de O Método, publicado no Brasil em 2020 pela editora Senac. Nesta rememoração, Morin conta que o capítulo “Autoética” fazia parte do livro “Meus Demônios”, de 1993; e acaba sendo incorporado neste derradeiro tomo. Vamos falar deste conceito mais à frente.

O livro se concentra no comportamento (ético) das pessoas. Gosto de uma colocação, logo no começo, na qual ele diz que “ser sujeito é associar egoísmo e altruísmo. Todo olhar sobre a ética deve reconhecer o aspecto vital do egocentrismo assim como a potencialidade fundamental do desenvolvimento do altruísmo”.

Morin é bastante crítico às ciências, tanto nesta como em todas as suas obras.

Fala da mancha cega que é a discussão da noção da ciência que toma consciência de si própria, como nas catástrofes nuclear e ecológica. Mas, diz ele, para a maioria dos cientistas “a ciência continua boa, a técnica, ambivalente e a política, má”. Essa concepção simplista ignora a interação entre as esferas. A consciência e a mentalidade de pessoas formadas, ignorando a complexidade das relações, não veem a ambivalência da atividade cientifica. Esta mancha cega, segundo Husserl, seria a consciência de si, que a ciência deixa de ter ao operar a disjunção com a subjetividade, ou seja, quando ela se desconsidera enquanto sujeito.

Mas, afirma Morin, cientistas são também pessoas privadas e cidadãos, seres com convicção metafísica e religiosa. Lista um conjunto de cegueiras: o determinismo e o reducionismo, a cultura disciplinar que fragmenta, a noção de si. A ignorância sobre a ecologia da ação; a ignorância de se transformar os fins em meios (como no caso do átomo e do gene).

Depois de elencar problemas e limitações de atitudes éticas, passa a descrever as estruturas morais necessárias para qualquer pessoa. São divididas em três âmbitos: autoética, socioética e antropoética.

Para a primeira, destaca a necessidade de termos uma longa lista de qualidades: autoanálise, autocrítica, honra, tolerância, luta contra a moralina (que é semelhante à ideia de uma cultura de cancelamento contemporânea), resistência à lei de Talião e tomada de responsabilidade. Para este texto entendo que esses itens são excessivamente resumidos e sua explicação simplificada mas o objetivo é mostrar as diversas dimensões consideradas.

A partir destas virtudes, devemos desenvolver uma ética de compreensão, entender desvios humanos e nos abrir para a magnanimidade. O próximo passo é uma ética de cordialidade, cortesia e civilidade. E atingimos nosso máximo em uma ética da amizade.

É claro que todos estes pontos são ricamente detalhados e discutidos e aqui posso somente indicar de forma breve os principais pontos destacados por ele. Ainda assim, o aspecto mais patente é um foco menor em modelos e sistemas normativos e uma ênfase na delegação da responsabilidade nas mãos dos sujeitos, que somos nós.

A socioética seria o patamar seguinte, aquele que envolve sociedades de diversos tamanhos, desde comunidades e empresas até países. Morin gosta de contrapor a ideia de dois termos em alemão: Gesellschaft e Gemeinschaft. O primeiro é um espaço social comum, com conflitos e competições, enquanto o segundo representa a ligação afetiva, um verdadeiro “nós”.

Em seguida são mostrados dois circuitos recursivos da sociedade. Os governos dependem dos cidadãos, que por sua vez dependem do governo. O segundo é que a democracia produz cidadãos e estes produzem a democracia. Desta forma, acredito, fica evidente a participação individual no todo; mesmo a inação equivale à participação já que estamos inseridos na sociedade, independentemente de nossa vontade.

Como um alerta, ele escreveu que a perda do saber (ou seja, pessoas comuns não conseguirem entender aspectos mais técnicos da economia, da tecnologia, das ciências) levanta o problema histórico essencial da democracia cognitiva, ou seja, cidadãos não conseguirem entender os mecanismos que os controlam. Hoje tal questão ficou evidente com populações inteiras sendo convencidas a escolher alternativas através de argumentos populistas, dada uma falta de capacidade de análise crítica.

Por fim, chegamos à antropoética, na qual Morin almeja englobar a humanidade. Fala que precisamos passar por uma tomada de consciência em nove níveis, que vão desde perceber a identidade humana comum, considerando sua diversidade, passando pela consciência de nossa incompreensão, atravessando a relação com a biosfera e culminando com a terra como comunidade de destino.

O livro acaba com duas conclusões. A do mal e a do bem.

Afirma que, tanto baseados na natureza física quanto na viva, não podemos isolar um princípio do Mal. É no espírito humano que a crueldade aparece, produzindo sofrimento e a consciência deste.

No que concerne ao Bem, diz que “a ética é complexa por ser de natureza dialógica e ter sempre que enfrentar a ambiguidade e a contradição. É complexa por estar exposta à incerteza do resultado e comportar a aposta e a estratégia. É complexa por não impor uma visão maniqueísta do mundo e renunciar à vingança punitiva”.

Conclui apresentando o que acredita ser a finalidade da ética. São duas faces complementares: resistir à barbárie e promover a realização da vida humana.

A ética proposta por Morin parece adequada aos tempos atuais. Apresenta valores e princípios, mas não os impõe; respeita as diferenças e diversidades. Oferece caminhos e alternativas, ilumina ideias e propostas, mas requer a participação dos sujeitos na construção de um mundo melhor e mais justo.

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