‘Duna: Parte Dois’, uma alegoria sobre imperialismo e manipulação das massas

Por Cleiton Lopes
A volta de Donald Trump à Casa Branca tem assustado o mundo, ou ao menos as pessoas que têm o mínimo de bom senso. No entanto, atitudes como as do presidente estadunidense já ocorreram diversas vezes na história, frequentemente com o envolvimento do país de maneiras mais sutis, ou não. O escritor Frank Herbert, ao observar as peculiaridades da humanidade como essas, criou o livro de ficção científica ‘Duna’, lançado em 1965. A história, que já havia ganhado uma versão cinematográfica pelas mãos de David Lynch, chegou em sua segunda parte em 2024 com ‘Duna: Parte 2’. Dirigido por Denis Villeneuve, o filme foi uma das maiores bilheterias do último ano e está indicado em cinco categorias do Oscar, incluindo Melhor Filme.
Melange e o Petróleo
O principal objeto de disputa na trama de ‘Duna’ é o Melange, também conhecido como especiaria. É um item encontrado somente nas areias do planeta deserto Arrakis. O item é usado pelos habitantes locais de diversas formas, principalmente em rituais religiosos. A razão da cobiça é que o Melange também pode ser usado para viagens intergalácticas, tornando-o essencial para a economia mundial. Isso causa um ambiente de disputa entre governo – aqui um império –, empresas e diversos outros agentes pelo domínio do planeta deserto e seu item.
Podemos fazer um paralelo da especiaria do universo de ‘Duna’ com o petróleo em nossa realidade. Historicamente, diversos conflitos ocorreram, e ainda ocorrem, pelo domínio do combustível fóssil. Os Estados Unidos agiram diversas vezes como uma espécie de “polícia do mundo”, tentando apaziguar conflitos em regiões desérticas, mas, no fundo, seu interesse real era o domínio do petróleo. Basta uma olhada para o período da Guerra Fria (1947-1991) para encontrarmos diversos exemplos dessa ação.

Bene Gesserit e o cristianismo
Outro elemento usado em paralelo com a nossa realidade em ‘Duna’ é a irmandade de mulheres das Bene Gesserit. É uma comunidade com poderes místicos, como a capacidade de escolher o momento da gravidez e o sexo do bebê, controlar o metabolismo para sobreviver a envenenamentos e manipular as atitudes das pessoas através da voz. Politicamente, elas agem nas sombras como conselheiras dos grandes líderes, com o intuito de encaminhar a humanidade para a estabilidade, segundo seus próprios interesses e critérios, claro. Elas também trabalham com a manipulação genética, na junção de linhas de sangue com o objetivo de trazer um messias: um homem com poderes de uma Bene Gesserit e capacidade de prever o futuro.
A irmandade, o misticismo e, principalmente, a ideia de messias são um paralelo para as religiões. Desde sempre, as religiões foram usadas para manipular grandes massas. Em um passado recente, tivemos no Brasil um presidente que se dizia patriota, mas que batia continência para a bandeira dos Estados Unidos e adorava Donald Trump – mesmo que sem reciprocidade. Sua forma de chamar a atenção, principalmente da população mais humilde, entre outras coisas, envolvia a religião. Seu lema de campanha e governo era “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Constantemente era visto em templos religiosos e utilizando trechos bíblicos como “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8:32) para mostrar sua grande fé cristã. Inclusive, utilizava o “Messias” de seu nome como um possível sinal daquele enviado para salvar seu país dos “fantasmas do comunismo” e de demais perigos que pudessem assombrá-lo. Entretanto, durante seu governo, teve atitudes que nada tinham a ver com as palavras dos evangelhos, como debochar de pessoas morrendo de COVID, para dizer o mínimo. Após a derrota nas eleições, nunca mais foi visto em um ambiente religioso.

Sardaukar, os Fremen e as forças armadas.
Outro ponto é o uso da força. No universo de ‘Duna’, o Imperador tem como arma os Sardaukar. São homens treinados em um planeta prisão, passam pelos maiores tormentos que os transformam em homens duros, altamente habilidosos e que causam temor em todo o império. Em contrapartida, em Arrakis existem os Fremen. Eles são um povo que vive nas partes mais remotas do planeta. Utilizam o deserto como uma arma. Além de treinarem técnicas de luta, ainda são capazes de dominar os gigantes vermes de areia que vivem no planeta. Devido a muitos tratarem os Fremen apenas como lendas, eles ganham um elemento surpresa para contra-atacar as forças que querem dominá-los. Eles serão a principal arma contra o império em ‘Duna: Parte Dois’ e cruciais nos eventos dos demais livros da saga.
Os poderes armamentistas foram um dos principais pontos para que os Estados Unidos tivessem a ousadia de tentar impor seus desejos ao mundo. Um exemplo de sucesso é a Guerra do Golfo. O conflito durou de agosto de 1990 a fevereiro de 1991 e teve um fim breve devido ao uso de armas avançadas na época pelos EUA. O GPS era uma novidade, o que garantia que os ataques fossem mais precisos ao eliminar alvos importantes para garantir o fim da guerra. Entretanto, durante a Guerra do Vietnã (1959-1975), os EUA, mesmo utilizando grande tecnologia armamentista, foram derrotados por vietnamitas que sabiam sobreviver e criar armadilhas no meio da mata. E, para citar um exemplo brasileiro, temos Jair Bolsonaro e sua tentativa de golpe. Como demonstrado por investigações recentes, o presidente contava com a ajuda do exército brasileiro para se manter no poder. Após a derrota nas eleições, ele pretendia usar as forças armadas para garantir a continuidade do seu governo. Entretanto, a resistência de parte do exército fez com que o plano não tivesse êxito, evitando que ficássemos mais anos sob um regime militar.

Dos livros para as telas
Diferentemente da versão de David Lynch, Villeneuve dividiu o primeiro livro da saga em duas partes. A trama é complexa e cheia de nuances, o que torna difícil contar a história em apenas duas horas. Sendo a primeira parte lançada em 2021, a parte 2 conta os momentos conclusivos das mais de 600 páginas do livro. Por se tratar da conclusão, ‘Duna: Parte Dois’ tem mais ação, é mais ágil e envolvente que o primeiro. A parte 1 é indispensável para explicar a política e quem são os agentes e principais personagens da história. Não é possível assistir apenas à parte 2 como um capítulo da saga Marvel. As duas partes formam uma unidade só.
Por mais que pareça “exagerado”, as ficções científicas são interessantes por dialogarem de forma alegórica com a nossa realidade. Por trás de viagens espaciais, armas a laser e vermes de areia, existe uma reflexão sobre o nosso mundo, nossa realidade. Atualmente, está tão caricata que é até difícil separá-la de uma obra de ficção – como a gente gostaria de acreditar que fosse. Portanto, assistir ‘Duna’ é como olhar para nós mesmos, mas em uma embalagem mais atraente.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.