
Por Daniele Agapito
Lírio, Loiro e Karen estão em Cannes — onde todo cineasta do mundo sonha estar agora. Tomando um vinho Rosé? Comendo um crème brûlée? Ou quem sabe um Ratatouille, enquanto veem celebridades desfilarem seus trajes de gala no tapete vermelho. Ou talvez estejam fazendo algo muito mais simples, mais a cara deles, conversando num boteco, sem frescura, de repente até já fizeram amizade com aquele ator que subiu as escadarias do Palais des Festivals vestido de peru, mas de qualquer modo estão celebrando. Porque hoje, 19 de maio, na sessão Cannes Classics — reservada para os gigantes do cinema — será a pré-estreia do documentário brasileiro Para Vigo Me Voy!, que concorre ao Olho de Ouro na mesma categoria.
O filme em questão, dirigido pelos pernambucanos Lírio Ferreira e Karen Harley, com fotografia do paulistano Loiro Cunha, é uma biografia — e também nosso último encontro com Cacá Diegues (1940–2025). Cineasta reverenciado neste festival, que sente sua ausência abertamente. Durante décadas, ele esteve ali — seja como indicado, como jurado ou como porta-estandarte do cinema brasileiro. Para os franceses, Exibir Para Vigo Me Voy! é, de certa forma, uma maneira de tê-lo por perto mais uma vez.
Cacá escancarou o Brasil no cinema. Revelou, como bem disse Lírio, o país “das diásporas africanas, dos morros, das feras do Rio, do carnaval”, de Deus. Sonhou o Cinema Novo ao lado de Glauber Rocha, Leon Hirszman, Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e tantos outros que lideraram um movimento engajado, visceral, político e humano — feito sem grandes orçamentos.
Mas o Cinema Novo acabou.
Nas palavras do próprio Cacá, em sua última entrevista à Folha de São Paulo: “O Cinema Novo acabou em 1968. Tem data marcada. Foi o Ato Institucional nº 5. Tiraram da gente a nossa matéria-prima, que era a realidade brasileira. Se não podia mais falar da realidade brasileira, acabou o Cinema Novo.”
Carlos José Fontes Diegues nasceu em Maceió, no dia 19 de maio de 1940. Mudou-se para o Rio com 6 anos e nos lança para dentro de filmes como Xica da Silva, Bye Bye Brasil, Tieta do Agreste, Deus é Brasileiro… Membro da Academia Brasileira de Letras, pensador, crítico, premiado, gente boa e generoso, como seus amigos fazem questão de frisar — viveu muitas glórias, mas também enfrentou o desconsolo de perder uma filha ainda jovem.
Para Vigo Me Voy! é sobre Cacá. E, por isso, também é sobre o cinema latino-americano — suas dores e suas glórias. Cacá faleceu em fevereiro deste ano. Não chegou a ver Ainda Estou Aqui ganhar o Oscar nos EUA, bem debaixo do nariz de Trump. Mas, no fundo, ele já sabia: nosso cinema tem fôlego para correr o mundo. E a gente não pode, jamais, se dar por vencido.
Nos preparativos para a grande estreia em Cannes — num clima de, como diz Lírio, “se fui pobre, não me lembro” — ainda consigo trocar áudios com a equipe do documentário. Confira o nosso papo!
Daniele Agapito: Karen, como é voltar ao festival falando de Cacá Diegues?
Karen Harley: A primeira vez que eu vim aqui foi há 20 anos, com Cinema, Aspirinas e Urubus. E o Gilberto Gil subindo o tapete vermelho com a gente… A gente era feliz e sabia. Depois, voltei com o Matheus Nachtergaele e A Festa da Minha Horta, em 2008. E agora venho com o Cacá Diegues, que é o nosso amor, o nosso mestre — mestre do cinema, da gentileza, da generosidade, da vida. Quem me colocou no cinema foi o Cacá! Em 94, eu montei Veja Esta Canção. Ele colocou toda uma geração no cinema. E hoje estamos mostrando o filme do Cacá, que é uma costura linda com a última entrevista que ele nos concedeu, cheio de brilho nos olhos, querendo dividir o amor dele pelo cinema. São 60 anos de vida dedicados ao cinema.Ele estava muito feliz na entrevista, e a gente mais ainda. Conseguimos filmar a última diária dele, de Deus Ainda é Brasileiro — o encontro e a festa com os amigos colaboradores de uma vida inteira. Isso tudo costurado com imagens íntimas, feitas pelo José, neto dele, sempre ao lado dele. Enfim, foi um presente estar tão perto do Cacá no último ano da vida dele. É um presente para mim, para você, para o Loiro, para o Lírio, meu co-diretor. Só felicidade poder mostrar esse filme hoje, nos 85 anos do Cacá.
Daniele Agapito: Lírio, antes de tudo, você é fã declarado do Cacá. O que esse filme representa pra você emocionalmente e como cineasta?
Lírio Ferreira: Pra mim, Cacá foi um norte desde o início da minha carreira, desde os meus primeiros filmes, desde quando fazíamos curta-metragem no começo dos anos 90. Cacá sempre esteve junto, assistiu, incentivou. É problemático ele não estar aqui, agora (…) pras pessoas que se aproximaram dele, mulher, homem, ele abraçou as pessoas. E fazendo filme foi que eu fui me dando conta do quanto ele me influenciou. Coisas que eu pensava de cinema e que, ali no meu subconsciente, apareciam. E eu via que tinha esse diálogo com a obra do Cacá. Fui vendo e revendo seus filmes, e mergulhando na profundidade da obra dele. E fui vendo o quanto é importante. Ele me influenciou em todos os sentidos.
Daniele Agapito: Como esse filme nasceu?
Lírio Ferreira: Eu fui convidado pelo Diogo Dahl, produtor do filme, e aí soube que a Karen também estaria junto. Isso me deixou muito feliz, porque eu sou muito amigo da Karen há muito tempo. Sou um grande fã da obra que ela tem desenvolvido. A gente sempre teve vontade de trabalhar juntos. Não existia uma proposta fechada, marcada, um estilo a ser procurado. Acho que o grande barato do documentário é essa viagem que você faz pra chegar num lugar sem muito controle, o acaso sempre regendo. Então isso nos aproximou, esse desejo que a gente tinha de trabalhar junto. Mais uma vez, a generosidade de Cacá nos uniu.
Daniele Agapito: Cacá faleceu em 14 de fevereiro, ainda durante as filmagens. Como foi receber essa notícia no meio do processo? Ele chegou a acompanhar o projeto?
Lírio Ferreira: A morte de Cacá foi uma grande perda para o cinema mundial, pra cultura brasileira, e pra nós que estávamos acompanhando e registrando ele tão de perto. O Brasil perdeu uma grande referência, um grande pensador de sua cultura. Apesar da sua idade e fragilidade na sua saúde, nós que estávamos ao seu lado, percebíamos ao mesmo tempo uma força de vontade muito grande, de continuar a trabalhar, de escrever, de pensar o Brasil, e de filmar. Então, perder Cacá na reta final do processo foi um baque. Ele acompanhou todas as filmagens, mas infelizmente não chegou a ver o filme pronto.
Loiro Cunha: O dia da morte do Cacá foi muito forte. Primeiro, porque eu não esperava… E segundo, porque pra mim ele não ia morrer. Nunca. Eu tinha a sensação e a certeza de que ainda havia encontros. A gente ainda tinha filmagens pra fazer. Algumas cenas estavam pendentes, e eu ficava sonhando com elas, chegamos a pensar em filmar parte em 35mm película, como fizemos em Super 8, por exemplo, numa parte do filme. Perder o Cacá é como uma cena que fica em aberto dentro da gente.
Daniele Agapito: Loiro, você costuma ter umas epifanias nos teus projetos. Qual foi o estalo em Para Vigo me Voy!?
Loiro Cunha: Para mim maior epifania do projeto foi o próprio convite: estar próximo do Cacá Diegues, trabalhando novamente com o Lírio Ferreira e com a Karen Harley. Desde o início, isso já mexeu muito comigo. Lembro da nossa primeira reunião no Rio de Janeiro, e fiquei pensando — como me aproximar do Cacá com uma câmera, sendo ele quem é? Um mestre absoluto do cinema, alguém que conhece tudo e viveu cinema…
Como chegar perto dele com uma câmera, pedindo permissão, seguindo uma postura de devoção mesmo, de cuidado com esse personagem tão grande que tando mudou nossa cabeça. A epifania, pra mim, foi esse reencontro com o Lírio, com a Karen, e com a figura gigante que é o Cacá.
Daniele Agapitp: Vi no Instagram do Loiro, um “still” marcante dos bastidores: Cacá Diegues descontraído, cercado de amigos muito conhecidos do público como Gilberto Gil, Antônio Pitanga… Como foi entrar nesse universo tão íntimo e afetivo? Que memória ficou daquela diária?
Loiro Cunha: Estar naquela festa e olhar pro Universo Afetivo do Cacá foi foi demais… Caca uma pessoa de muito afeto. Mas mais do que isso, o universo afetivo que o Cacá construiu é o nosso próprio universo de construção do imaginário brasileiro. É o cinema, a música, é a dramaturgia… É um universo que ajudou a construir um país. Estar ali, naquela roda de conversa, filmando Gilberto Gil, Antônio Pitanga, Marieta Severo, Betty Faria, Ruy Guerra, Antônio Fagundes… É entender que todas essas pessoas, esse afeto todo, nos formou como artistas, como cultura, como gente.
Lírio Ferreira: Um grande encontro, infelizmente, que se tornou o último grande encontro. Mas eu me lembro claramente no dia, naquela tarde — Cacá estava muito feliz. Uma coisa que eu me lembro claramente é da felicidade dele ao receber aqueles seus amigos, suas amigas, as pessoas com quem ele trabalhou, os afetos. E ter registrado aquele momento foi muito intenso, foi muito forte.
Daniele Agapito: Karen, você tem uma trajetória sólida como montadora, mas nesse filme o olhar final está nas mãos de outra pessoa…
Karen Harley: Olha, como montadora, estou acostumada a construir a narrativa de um documentário na montagem. Neste filme, como diretora, quis experimentar um formato onde entrego a montagem a outros profissionais. É realmente um exercício de entrega e confiança. Isso me possibilita ver o filme ser construído sob um novo ponto de vista e incorporar criativamente às ideias dos nossos colaboradores.
Daniele Agapito: Cacá teve um papel fundamental na fundação do Cinema Novo. Hoje, o Brasil vive um novo momento marcante no cinema. O que vem depois do “novo”?
Lírio Ferreira: Cacá foi um dos primeiros nomes do cinema moderno no Brasil, vamos dizer, modernista mesmo, a tratar com seriedade temas contemporâneos: a diáspora africana, os morros, as feras do Rio, o carnaval… toda essa complexidade. O corpo e a cidade. Cacá, visionário como era, já estava olhando pra isso tudo. A importância dele é enorme.
Ele viveu e atravessou a transição do cinema analógico pro digital, acompanhando de perto grandes evoluções que o cinema proporcionou. Mas também acompanhou, e enfrentou, os ciclos que o Brasil insiste em viver. Cacá nunca se conformou com isso. Sempre tentou transformar. No fundo, a grande briga dele era a grande briga do cinema brasileiro: de que não dá pra viver de ciclos.
Ainda bem que hoje a gente está resistindo. Ainda tem ajustes a serem feitos, sim, mas também tem uma possibilidade real de produção. Hoje se faz cinema de qualidade em todo o Brasil. Ainda tenho muita coisa pra lutar, pra brigar. E acho que esse é o legado do Cacá: o legado da luta. Da persistência. De não desistir do cinema que a gente acredita. Do sonho. Ele sempre esteve na linha de frente. E a gente ainda tem grandes brigas pela frente: a regularização do streaming, a discussão por um mercado mais justo… Tem muita coisa. A gente precisa manter os olhos abertos, porque o inimigo tá aí, e continua sempre à espreita. O Cacá deixa isso: A coragem de seguir acreditando no cinema brasileiro.
Karen Harley: O Cinema Novo buscou retratar a realidade brasileira com originalidade e crítica social. Hoje, a gente vê uma nova geração de cineastas explorando narrativas diversas, com pluralidade de vozes e mais busca por representatividade. O cinema brasileiro continua a se reinventar e a dialogar com seu tempo.
Continuamos trocando mensagens de voz. O trio conversa comigo diretamente de um boteco — exatamente como eu imaginava. Uma zoeira aqui, outra ali. Pernambuco aparece sempre na conversa. Também pudera, além de Lírio e Karen, ontem teve a estreia do filme de Kleber Mendonça, Agente Secreto. Rolou até frevo no coquetel.
O clima é de celebração. Lírio lembra que Cannes foi um lugar muito importante na vida de Cacá. Foi neste festival que lançou seu primeiro filme para o mundo. Participou de 12 edições na Riviera Francesa: três vezes como diretor competindo pela Palma de Ouro, outras três como jurado e uma como produtor.
Lírio também reforça: o cinema sempre foi — e continua sendo — uma ferramenta poderosa de combate às forças autoritárias. Os momentos de tensão que a geração dele viveu — e que a nossa sente tão de perto — não podem se repetir.
E volta a dizer, quase como um mantra: “Olhos abertos.”
Daniele Agapito: Qual é a importância de Para Vigo me Voy! em um momento em que o Brasil busca se reconstruir politicamente e o mundo enfrenta novos levantes autoritários?
Lírio Ferreira: E eu acho que o filme está em sintonia com o pensamento do Cacá. Um pensamento que sempre brigou com quem queria destruir a democracia no Brasil. Ele fundou o Cinema Novo junto com outros cineastas, enfrentou a ditadura militar por muito tempo e pensou um país da reconstrução. A gente vive voltando pra essa mesma história. Acredita que o passado passou, mas, nos últimos tempos, ficou claro que ele estava só escondido debaixo do tapete. Bastou um sopro pra esse fantasma voltar, e voltar com força. (…) A gente tá vivendo um momento muito complicado, porque a direita tá muito à direita. Mas deixa eu te dizer uma coisa: o Brasil é foda — e é muito complicado também! O Brasil vive precisando se reinventar. E o Cacá deixa pra gente esse legado absurdo: o de reinventar o Brasil. Vamos reinventar o Brasil, Pernambuco!
Loiro Cunha: A Dani é pernambucana, de Recife.
“¡Para vigo me voy!”, grita Karen ao fundo, num improviso de sotaque hispânico-pernambucano. Estamos bem na fita!