
A eleição de Robert Prevost, agora papa Leão XIV, é a continuidade da aposta no capital simbólico humanitário
Por Renan William dos Santos, especial para o Jornal da USP*

A fumaça branca já se dissipou, mas as nuvens de expectativas sobre o novo papa ainda vão pairar pesadamente sobre o Vaticano pelos próximos dias. A escolha do norte-americano Robert Prevost, agora Leão XIV, não parece indicar, porém, grandes rupturas no horizonte. O que se desenha, até aqui, é a consolidação da guinada simbólica iniciada por Francisco: o esforço calculado de retomar um protagonismo global para a Igreja e de reforçar aquilo que poderíamos chamar de seu “capital humanitário”.
O nome adotado pelo novo pontífice é uma boa evidência disso. Leão XIV retoma simbolicamente a herança de Leão XIII, autor da Rerum Novarum (1891), encíclica que marca o nascimento oficial da doutrina social da Igreja. Naquele momento, quase no raiar do século 20, o papado buscava responder aos dilemas do industrialismo europeu, à emergência da “questão operária” e à expansão dos ideais socialistas. A Rerum Novarum posicionava-se, assim, como alternativa cristã aos “extremismos” — nem o liberalismo insensível aos dramas sociais, nem o coletivismo revolucionário.
Sim, caro leitor, a famosa “terceira via” já existe há um bom tempo. Articulada em torno do ideal de justiça social, do trabalho com dignidade e da defesa da função social da propriedade, a doutrina delineada por Leão XIII seria continuamente reafirmada nos pontificados seguintes. E foi também ela, nos últimos anos, que constituiu a principal escora dos discursos socioambientais encampados por Francisco. Em outras palavras, a “ecologia integral” encampada pelo papa argentino passou longe de inventar a roda: tratava-se de um aggiornamento discursivo que substituía a linguagem do operariado pela dos “pobres da terra”, dos refugiados e da “casa comum”.
Ao retomar o nome do papa da Rerum Novarum, Leão XIV sinaliza, então, a institucionalização dessa linha que já vinha sendo seguida no papado anterior. Por isso, ainda que o estilo de Francisco dificilmente seja replicado — sobretudo por um cardeal como Prevost, que não parece dispor do mesmo carisma de seu antecessor —, o investimento na performance humilde e humanitária (ou ecológico-humanitária) deve ser não apenas mantido, mas consolidado na gestão do trono de São Pedro.
A origem agostiniana de Prevost contribui para isso. Ao contrário dos jesuítas (ordem à qual pertencia Bergoglio, apesar da escolha do nome “Francisco”), os agostinianos pertencem a uma tradição mendicante que institucionalizou há séculos o voto de pobreza, a pregação entre os pobres e a simplicidade do cotidiano. Leão XIV encarna, portanto, de forma mais orgânica, uma espiritualidade que trata como faces da mesma moeda a evangelização e a caridade.
Graças à sua trajetória pastoral, Prevost tem também as melhores condições para aprofundar a conexão entre preocupação social, ação evangelizadora e cuidado ambiental. Por ter atuado como bispo e depois como arcebispo na Amazônia peruana, ele teve contato direto com comunidades ribeirinhas afetadas pela devastação florestal, pelo avanço da mineração ilegal e pela precarização das condições de vida produzida pelos desequilíbrios climáticos.
É, portanto, bastante provável que o discurso socioambiental católico ganhe ainda mais força sob Leão XIV. Mas é sempre bom temperar as expectativas com o senso dos limites que a própria teologia institucional impõe. Afinal, ainda estamos falando de um ambientalismo cristão que, embora atualizado em sua linguagem, segue sustentando a hierarquia da criação, isto é, uma narrativa em que a humanidade permanece no topo, e a natureza continua sendo objeto de uso e “gestão”.
Nesse contexto, causa alguma estranheza o entusiasmo de certos setores mais esperançosos diante de uma recente fala de Prevost, segundo a qual o domínio humano sobre a criação “não deve significar tirania”. A frase foi celebrada como sinal de sensibilidade e como prova de um possível “progressismo” ambiental. Mas convém perguntar: será que a defesa de um “domínio benevolente” é o máximo que o discurso cristão consegue alcançar em termos de crítica ao antropocentrismo? Não sei quanto aos outros, mas a mim ainda soa bastante limitada essa versão ecológica de um certo malufismo que apregoa: “domina, mas não devasta”.
A estética do possível: limites e expectativas quanto ao “progressismo” na Igreja
O entusiasmo de parte da opinião pública com a eleição de Leão XIV já começa a produzir os conhecidos movimentos de interpretação caridosa, em que cada gesto de moderação e o mínimo de bom senso são imediatamente convertidos em prova de “progressismo”. Tal aferição é quase sempre pontuada com uma frase do tipo: “levando-se em conta tal ou qual aspecto retrógrado, temos um avanço!”. Em suma, vigora uma lógica compensatória que julga o progresso à luz do retrocesso, adotando como critério de inovação a distância percorrida em relação ao próprio atraso.
A propósito, falando de atrasos, vale lembrar que o próprio Leão XIV já se manifestou de forma bastante clara sobre a questão da milenar exclusão das mulheres das instâncias de poder da Igreja. Em declaração recente, argumentou que “clericalizar mulheres” não traria soluções aos desafios eclesiais, podendo, inclusive, “criar novos problemas”. Mais uma vez, nada de novo sob o sol, ainda que haja quem insista em ver auroras onde só há penumbra doutrinária.
O que tem sido mais lamentado por alguns comentaristas, porém, é o potencial recuo na pauta das identidades sexuais, dadas as declarações públicas do novo papa, sempre críticas à inclusividade. Mas, também aqui, a contraposição com Francisco parte de uma idealização sem fundamento. Quando ocupava o posto de arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio fez pronunciamentos inflamados contra a chamada “ideologia de gênero” e teve papel ativo nas mobilizações contra a legalização do casamento homoafetivo, votado na Argentina em 2010. Mais tarde, já como pontífice, não recuou em nenhum desses posicionamentos, apenas aprendeu a deslocar o foco das ações concretas (certamente ao alcance de um papa) para a valorização simbólica de termos como “acolhimento”, “discernimento” e “misericórdia”. A doutrina permaneceu intacta; o vocabulário foi suavizado.
Os que insistem em enxergar nesse arranjo uma forma de “progressismo possível” parecem esquecer uma lição sociológica elementar: a dominação simbólica não se sustenta por imposições explícitas, mas por mecanismos de legitimação que levam até mesmo os sujeitos subalternos a internalizar os limites do “possível” como se fossem dados naturais, e não construções históricas que podem ser tensionadas.
Esse horizonte de tolerância aos limites também se revela no tratamento dispensado ao histórico de Leão XIV com relação aos escândalos de abuso sexual dentro da Igreja. Quando era arcebispo, Prevost foi acusado por grupos de vítimas e ativistas de ter contribuído para silenciar casos de pedofilia clerical na região sob sua jurisdição. Os relatos apontam para uma estratégia institucional clássica: contenção de danos, negociação interna, afastamento discreto de suspeitos e absoluto controle sobre a publicidade dos casos.
Mas, para além da crítica à falta de proatividade na busca por justiça às vítimas, é importante compreender tal postura também como um ativo estratégico que pode ter pesado positivamente em sua eleição. Ao colocar, diante de tudo, o prestígio da Igreja (mesmo à custa da transparência ou da reparação), Prevost demonstrou sua lealdade à causa maior: a sobrevivência da instituição. Em outras palavras, ser discreto diante do escândalo é, nesse universo, mais virtude do que fraqueza. E não é improvável que essa disposição para o sigilo estratégico tenha contado pontos decisivos na Capela Sistina.
A geopolítica de uma Igreja entre dois hemisférios
A escolha de Leão XIV confirma, ainda, que a sobrevivência da Igreja passa por sua habilidade não apenas de administrar expectativas, receios e tradições, mas também de operar com maestria nas tensões geográficas, nas disputas por influência e nos delicados equilíbrios da geopolítica contemporânea.
Nos últimos anos, um dos focos mais visíveis dessas tensões tem sido a relação da Santa Sé com os setores conservadores do riquíssimo catolicismo norte-americano. Durante o pontificado de Francisco, essas frentes chegaram a ensaiar uma espécie de cisma silencioso: recusas em aplicar diretrizes papais, campanhas de desinformação em redes sociais, movimentos de desobediência doutrinária e um nacionalismo católico que tratava o papa como obstáculo, não como guia espiritual. O desconforto era evidente.
A eleição de um norte-americano para o trono de São Pedro também pode ser lida, assim, como uma manobra estratégica para o arrefecimento dessas tensões. Grosso modo, será mais difícil se contrapor abertamente a Roma quando o bispo de Roma compartilha o mesmo idioma, cultura e passaporte dos críticos. Claro, isso não anula as divergências, nem desmonta as agendas locais, mas dificulta sua mobilização, desarticula resistências e, sobretudo, transforma um ponto de atrito em ativo político.
Para tornar o equilíbrio ainda mais refinado, Leão XIV traz também um pé fincado no Sul global. Sua trajetória como missionário e depois arcebispo na Amazônia peruana lhe confere uma credencial dupla: é, ao mesmo tempo, uma autoridade respeitável dentro da maquinaria vaticana e um conhecedor das margens e dos marginalizados. Fala com propriedade tanto nos salões do Vaticano quanto nas palafitas de Iquitos. Isso o torna um operador versátil, capaz de circular e conciliar o centro e a periferia, o Norte e o Sul, a tradição e a mudança.
A eleição de Leão XIV resulta, enfim, de uma continuidade cuidadosamente balanceada, uma operação de gestão institucional de alta precisão. Seu nome remete à valorização da centenária doutrina social de Leão XIII; sua espiritualidade agostiniana reforça a estética da humildade já cultivada por Francisco; sua experiência amazônica o credencia como porta-voz da justiça socioambiental e dos marginalizados no Sul global; seu passaporte norte-americano ajuda a resolver embaraços transnacionais e a pacificar tensões geopolíticas. Não por acaso, a Igreja segue sendo uma das mais longevas e eficazes inteligências institucionais da história do Ocidente.
*Renan William dos Santos é doutor em Sociologia pela USP e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Sua tese “Orientações religiosas sobre a conduta ecológica“, orientada pelo professor Reginaldo Prandi, foi premiada como a melhor tese da USP na área de Ciências Humanas em 2024, além de receber Menção Honrosa no Prêmio Capes de Tese